CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
A “desnatalidade” talvez possa inspirar um des-Natal, um movimento de libertação desta “quadra” que nos convoca coercivamente.
22 de Dezembro
de 2023, 10:20
É Natal. É
tempo de falar de natalidade. Em Itália é um assunto na ordem do dia porque o
“Inverno demográfico” transalpino é o mais frio de toda a Europa, que no seu
conjunto já está em estado de “colapso demográfico” há algum tempo – de tal
modo que, segundo os dados oficiais, em 1950 um europeu médio tinha 29 anos e
hoje tem 43. A palavra “desnatalidade”, que designa o défice da taxa de
nascimentos em relação à taxa de mortalidade, soa como um termo bizarro. Talvez
ela possa inspirar um des-Natal, um movimento de libertação desta “quadra” que
nos convoca coercivamente para uma mobilização total.
Ainda a Itália,
o bel paese por antonomásia: há alguns anos, quando a taxa de
natalidade já era baixa, mas ainda não tão “depressiva”, a Itália deitou-se no
divã para analisar os sintomas patológicos advindos de ser um país de filhos
únicos e produziu muita psicologia social. Desta “ciência” espontânea,
impressionista, resultaram algumas conclusões como esta: ser filho único
promovia a emancipação das raparigas (a quem, tradicionalmente, cabiam tarefas
domésticas e o dever de se inclinarem perante as prerrogativas masculinas dos
homens da família), mas tinha tornado os homens muito mais frágeis, uma
fragilidade que eles tentavam superar com atitudes de macho mimado, de maridos
insuportáveis que, uma vez divorciados, voltam a casa da mamma, de
onde na verdade nunca saíram.
Agora, já não
se trata da discussão sobre o “filho único” e as suas idiossincrasias, mas da
inexistência de filhos: “Porque é que em Itália já não se fazem filhos?”,
pergunta-se por lá com insistência. Até um filósofo como Giorgio
Agamben (do qual pensamos que só se interessaria por estas questões
demográficas na medida em que elas estão no centro da biopolítica
contemporânea) escreveu na rubrica que mantém no site da
editora Quodlibet um texto que é quase um obituário, logo no título “Finis
Italiae”.
Nele se afirma:
“Se existe na Europa um país em que alguns dados permitem certificar com sóbria
precisão a data do fim, este é a Itália (...). A perdurar, este declínio
[demográfico] conduziria em três gerações à extinção do povo italiano.” Quem
leu os escritos de Agamben sabe que jamais ele lamentaria esse facto em chave
nacionalista. Mas ele esclarece logo a seguir o que motiva o seu discurso
lutuoso: “O que me entristece é a possibilidade perfeitamente real de que não
exista mais ninguém para falar italiano, que a língua italiana se torne uma
língua morta. Que ninguém mais possa ler a poesia de Dante como uma língua
viva, como Primo
Levi a lia em Auschwitz ao
seu companheiro Pikolo.”
Evidentemente,
os Outonos e as previsões de Invernos demográficos como o da Itália, em toda a
Europa, não suscitam lamentos pela sorte que estará reservada a Camões (mas o
português está a salvo: é falado noutras latitudes de elevada fecundidade, por
enquanto) ou a Goethe (também nas questões demográficas a Alemanha já começa a
fazer a sua “viagem a Itália”).
A preocupação é
de outra ordem, consentânea com o “paradigma económico” que domina a política,
mas também a vida dos indivíduos: a queda drástica da natalidade ameaça a
estabilidade económica. E isso é suficiente para vê-la como um fenómeno crítico
para o qual as economias não estão preparadas porque o seu motor tem uma lógica
de funcionamento incompatível. Noutros planos que não o económico, a baixa de
natalidade oferece-se a uma discussão sobre se é uma coisa negativa ou
positiva.
A questão
fundamental é assim formulada: se há cada vez menos nascimentos e cresce a
população envelhecida, quem pagará, no futuro, os serviços de saúde e as
pensões? Mas este modo de declinar o problema omite a sua raiz profunda: o
capitalismo é uma religião do débito e cada criança que nasce já nasce
endividada, isto é, com uma “culpa” original (quantas vezes se insistiu, desde
a crise financeira de 2008, que a palavra alemã Schuld significa
“dívida” e “culpa”?).
O débito
público dos Estados e o débito privado são o pressuposto das actuais
modalidades de sujeição e implicam uma garantia: que haja no futuro quem os
pague. Evidentemente, este futuro, no caso do débito público (que nos
transforma todos em sujeitos devedores e se apropria das nossas potencialidades
individuais) é sem data. Por isso é que se diz que a dívida é para ser gerida,
isto é, reproduzida, mas não saldada. Mas esta condição implica que haja a
garantia de que a fábrica do homem endividado continue a produzir cada vez mais
sujeitos devedores. Se a fábrica de fazer filhos pára, deixa de haver
acumulação de “capital humano” à altura do investimento esperado. E dá-se o
colapso.
Livro de
recitações
“Estrangeiros
contribuem sete vezes mais para a Segurança Social do que beneficiam”
In PÚBLICO,
18/12/2023
Usando a
linguagem da economia utilizada no texto acima: à falta de “capital humano” e
mão-de-obra nacional, importa-se o que não temos do estrangeiro. Esta notícia
tem o efeito de contrariar alguns argumentos xenófobos e é potencialmente apta
a que muitos mudem de ideias e a que todos saudemos a vinda de trabalhadores
imigrantes. Mas devemos pensar para além deste factor pragmático: em última
instância, este modo de ver tais trabalhadores é análogo ao modo de ver a
cultura contra a qual Nietzsche se insurgiu. “Se acreditarmos que a cultura tem
uma utilidade, acabamos por confundir o que é útil com a cultura.” Se os
imigrantes são vistos exclusivamente à luz da sua contribuição para salvar o
nosso “paradigma económico”, eles ou são “paradigmáticos” ou são considerados
excedentes, supranumerários sem valor.
https://www.publico.pt/2023/12/22/culturaipsilon/cronica/desnatal-2074216
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