OPINIÃO -
(Expresso 2023 12 27)
Houve um tempo
em que a comunicação social relatava as campanhas, agora quer ser guionista. Os
candidatos não devem ser donos absolutos da narrativa política, sem o incómodo
de perguntas que perturbam a propaganda. Mas não têm de cumprir o papel de
atores em polémicas diárias para encher chouriços
Esta campanha
promete ser a mais longa de sempre. E temo que em vez disso permitir um maior
esclarecimento sobre o programa de cada partido ou para conhecer os líderes de
cinco partidos (dos oito com assento parlamentar) que concorrem pela primeira a
legislativas – Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro, Rui Rocha, Mariana Mortágua
e Paulo Raimundo –, sirva para deixar os eleitores exaustos, desmotivando-os.
Porque o efeito dos ciclos noticiosos de 24 horas não tem sido manter as
pessoas mais informadas, mas cansá-las mais depressa.
É natural que,
quando saímos de uma maioria absoluta e se espera um período de forte
instabilidade política, com dificuldade em construir maiorias de governo, o
tema das alianças e dos entendimentos esteja em cima da mesa. O crescimento do
Chega, a fragilidade da liderança do PSD, a chegada de Pedro Nuno Santos e a
possibilidade de refazer a “geringonça”, tudo empurra para esse tema. Mas a
três meses e meio de campanha têm de ser mais do que isso. Até por sabermos
que, quando os resultados eleitorais vierem e estivermos num impasse, muito do
que foi dito será necessariamente desdito. Temos de falar de grandes escolhas
para o país, quando é certo que quase todos os protagonistas serão diferentes.
Infelizmente,
já se percebeu o que as televisões, que acabam por marcar o ritmo de todo o
processo mediático, nos reservam. Com um ritmo noticioso permanente e a
necessidade de ter tema para comentar a cada hora, é preciso inventar uma
polémica diária. O modelo tem sido sempre a mesma e promete repetir-se em dose
aditivada. Já começou, aliás.
Um repórter que
acompanha o líder de um partido faz uma pergunta, quase sempre sem qualquer
conteúdo relevante para o futuro do país. O repórter que acompanha a campanha
adversária pede, tantas vezes por indicação do editor, reação à resposta do
outro. O jornalista que acompanha o primeiro pede nova reação ao primeiro sobre
a resposta do segundo. E dez comentadores passam horas a discutir o tema de que
ninguém se lembrará daí a uma semana. Os lugares em que as perguntas são feitas
– uma fábrica, uma cidade, um centro de investigação –, pensados pelas
campanhas como ilustração de uma determinada mensagem, proposta ou crítica,
passam a ser paisagem, a que se faz uma referência rápida. Podia ser ali ou num
estúdio.
Na realidade,
toda a campanha podia ser, para as televisões, feita em estúdio. Sem povo, sem
vida, sem outros intervenientes que não fossem os políticos e os jornalistas.
Sem outros temas que não fossem os que a própria comunicação social escolhe e
onde os políticos perdem a sua própria vontade e cumprem o dever de preencher a
programação de televisões em confronto por audiências.
Esta
colonização da política pela comunicação social é especialmente evidente quando
os lideres são obrigados a participar em dezenas de debates em estúdio (se se
seguir um modelo inicialmente pensado para cinco partidos, e não oito,
chegaremos este ano aos absurdos 24 debates), tempo que retiram à interação com
os eleitores.
Houve um tempo
em que a comunicação social relatava as campanhas, agora passou a ser guionista
das campanhas. A escolha dos temas não corresponde mais ao interesse geral do
que se fossem os políticos a escolher. É determinada pelas audiências, o que
implica polémicas de consumo fácil e rápido.
O ecossistema
mediático atual, totalmente dominado pela rapidez superficial de televisões em
confronto por uma audiência cada vez mais escassa – a restante migrou para as
bolhas das redes sociais, onde o algoritmo do ódio trata de radicalizar os
eleitores -, promove a superficialidade política. E neste ambiente, safam-se os
que, na política, dependem da superficialidade.
Há uns dias, e
só o pude ver porque vi na rede social do partido, Paulo Raimundo bem tentou
resistir às insistentes perguntas dos jornalistas sobre as declarações de
Passos Coelho, as afirmações de Pedro Nuno Santos sobre a “geringonça”, umas
frases de Rui Rocha sobre Pedro Nuno Santos e outras de Mariana Mortágua sobre
cenários eleitorais. Os jornalistas procuravam, desesperados, um novo ping-pong
entre dois protagonistas, fossem eles quais fossem. E, também desesperadamente,
o líder do PCP tentava que as decolações que passassem na televisão fossem
sobre temas substanciais. Não é o único que tenta, quase sempre sem conseguir
furar a barreira de fait-divers imposta pela comunicação social. Raimundo
estava na fábrica da Matutano, no Carregado, mas, para as televisões, aquele
lugar não passava de um cenário a dar colorido aos ecrãs. Raimundo estava ali
para falar de leis laborais, cortes na remuneração das horas extraordinárias e
as condições em que se trabalha por turnos neste país, coisas que afetam a vida
concreta das pessoas concretas que não habitam nos estudos das televisões.
O esforço do
PCP ou de qualquer outro partido raramente é bem-sucedido. Os jornalistas acham
que os políticos têm o dever de seguir o seu guião e que não o fazer é sinal de
desrespeito pela liberdade de imprensa. Mas é mesmo isto que os políticos devem
começar a fazer. De preferência nos diretos, quando a edição não permite
retirar tudo o que não cabe na história que já vinha escrita de casa.
Os candidatos
não devem ser donos absolutos da narrativa política, sem o incómodo de
perguntas que perturbam a propaganda. Mas também não têm de cumprir o papel de
atores em polémicas diárias para encher chouriços nas programações dos canais
de notícias e em telejornais com duas intermináveis horas. Até porque, no fim
da campanha, serão os mesmos jornalistas, editores, diretores e colaboradores
daqueles canais a explicar que tudo aquilo foi uma perda de tempo, uma campanha
vazia, confrontos sem ideias nem propostas. Que, enfim, são campanhas como
estas que desmobilizam os eleitores. Pois bem, está na altura dos candidatos
escreverem o seu próprio guião. A liberdade de imprensa não está em causa
quando aqueles que elegemos não aceitem ser apenas “conteúdo” do negócio
mediático.
https://expresso.pt/opiniao/2023-12-27-A-politica-nao-e-uma-fabrica-de-conteudos-8e234320
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