segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

António Rodrigues ENTREVISTA SALIKOKO MUFWENE

 


A língua de Darwin ou a linguagem em estado de permanente evolução

Por entre palavras mortas, germinam viçosas novas espécies. O linguista Salikoko Mufwene diz que “falar da evolução da linguagem não é metáfora”. Uma teoria geral das espécies aplicada à comunicação.

António Rodrigues (texto) e

Matilde Fieschi (fotografia)

24 de Dezembro de 2023, 8:02

  

Todos os dias morrem palavras, todos os dias nascem palavras. A forma como falávamos ontem não é a forma como falamos hoje e não será igual à maneira de falar de amanhã. “Há palavras comuns hoje que vão estar extintas no futuro.” Nesta constante evolução das espécies aplicada à linguagem, uma pessoa de 60 anos já não fala como uma de 40 e muito menos como uma de 20. “Somos parte de gerações diferentes, as nossas experiências não são idênticas e a perda de identidade vem com a perda de algumas palavras.”

Salikoko Mufwene, professor de Linguística da Universidade de Chicago, uma das grandes referências mundiais na área, escreveu em 2001 um livro fundamental para compreender a evolução natural da língua, The Ecology of Language Evolution – uma teoria geral da evolução das espécies aplicada à linguagem.


Ecology Of Language Evolution

Autoria: Salikoko S. Mufwene

Editora: Cambridge University Press

274 págs., 46,34€

Já nas livrarias


“A linguagem que usamos evolui porque nos adaptamos uns aos outros, ao mesmo tempo que nós próprios evoluímos”, explica Mufwene, que em 1979 se doutorou na Universidade de Chicago, onde ensina desde 1991. “As linguagens reflectem as formas como evoluímos socialmente. Não é evidente que as pessoas se apercebam da nossa evolução biológica, mas, de uma forma geral, com as práticas sociais, estão sempre a evoluir.”

É como se em todos os momentos tivéssemos a teoria de Darwin na ponta da língua, salvo seja.

“Falar da evolução da linguagem não é uma metáfora, porque a evolução tem lugar em qualquer espécie, em qualquer comunidade”, sublinha o professor, nascido na República Democrática do Congo há 76 anos, mas a viver nos Estados Unidos desde os anos 1970 e com nacionalidade norte-americana desde 1996.

“A linguagem que usamos evolui porque nos adaptamos uns aos outros, ao mesmo tempo que nós próprios evoluímos”, explica Mufwene

“As linguagens evoluem de uma forma muito similar aos vírus, sabe? Por exemplo, o vírus da constipação. Eu tenho-o. Alguém pode ter sido contaminado por mim e apanhá-lo. Mas esse vírus adapta-se ao novo hospedeiro e pode ser transmitido a outra pessoa e volta a adaptar-se. Esse é um dos problemas para curar uma população de uma dita epidemia, porque o vírus passa por mutações e cada mutação é uma espécie de evolução.”

Com as palavras acontece o mesmo. Por mais que as academias queiram fixar a língua, esta passa o tempo a fintar pontos finais parágrafos de dicionários.

De uma forma muito simples, a linguagem serve para comunicar, logo, ela está sempre a adaptar-se para melhor transmitir aquilo que quer comunicar e para estabelecer uma “espécie de relação especial com o outro”. Cada vez que usamos uma linguagem em particular estamos “indirectamente a estabelecer um vínculo”, a nossa forma de falar também se pode adaptar, pois, a quem nos escuta.

“Vivemos em sociedades e é aqui que entra a dimensão social, porque as pessoas com quem interagimos, mais ou menos determinam a forma como iremos comunicar com elas e como moldamos as peculiaridades das nossas línguas”, explica. É assim ao longo do tempo, porque “somos uma população migrante”. Como estamos sempre a mudar, de um lugar para outro, de um bairro para outro, “continuamos a fazer ajustamentos às nossas línguas, particularmente cruciais a outro nível” – em vez da palavra que habitualmente usamos, vemo-nos obrigados a usar outra: “O ónus de aprendermos a palavra que eles usam recai sobre nós [, mas,] se são eles a migrar para a nossa comunidade, acontece o contrário.”

“As nossas línguas entram em contacto com as outras indirectamente, através das nossas interacções e vão sendo remodeladas e é isso que vemos na história da humanidade. Tomemos o português, por exemplo – foi levado para o Brasil, mas o português falado no Brasil já não é como o português falado em Portugal.”

Evolução não é uniforme

Fazemos a linguagem que falamos e “modificamo-la de acordo com as nossas necessidades e de acordo com as pressões dos diferentes lugares onde evoluímos”. Porque a evolução não pára na interacção, porque nós próprios evoluímos e a linguagem connosco.

E a evolução da linguagem é tudo menos um processo uniforme, muito menos quando se lida com uma população, afirma Salikoko Mufwene, numa conversa na Faculdade de Letras de Lisboa. Veja-se o que aconteceu com o português em Angola.

“Os portugueses colonizaram Angola, mas não falavam português com todas as pessoas. E como o número de administradores era bastante limitado por razões financeiras, era mais prático ter funcionários coloniais indígenas que ajudavam na administração da colónia e essas pessoas aprendiam português e tornavam-se o intermediário entre a população colonizadora e a população colonizada.”

A seguir, aos poucos, as pessoas começaram a ir à escola e, se passavam um certo nível, esperava-se que falassem português. “Mas nem todos temos a mesma atitude de aprendizagem, alguns têm mais aptidão para aprender outras línguas do que outros.” E, mesmo para quem tinha as mesmas aptidões, nem sempre tinham “as mesmas oportunidades para interagir com pessoas fluentes em português”.

“Falar da evolução da linguagem não é uma metáfora, porque a evolução tem lugar em qualquer espécie, em qualquer comunidade”

O que acontece, então, é um “fenómeno a que se chama ‘interferência’”, quando elementos da linguagem que a pessoa vinha usando se intrometem na nova linguagem. A forma como um angolano fala “é influenciada pelas práticas de comunicação, o que explica porque o português de Angola não é falado da mesma maneira que o português em Portugal, nem da mesma maneira que o português do Brasil”.

É uma questão de ecologias, explica Mufwene, mas também uma questão prática. “Quem são as pessoas que precisam do português para conseguir emprego? Qual a extensão da família que ainda vive no campo e não encontra qualquer uso para o português?” As elites podem decidir cortar com a família mais extensa por razões de estatuto e “educar os filhos em português para lhes dar uma vantagem competitiva”.

“Há outras partes em África onde não se falam línguas indígenas, sim”, como acontece em Luanda. “Há uma minoria que, no entanto, pode não saber falar a sua língua ancestral, mas compreende-a. E essa é a diferença entre competência activa e competência passiva.”

Todavia, como explica, podem ser fluentes em “outra linguagem indígena, como a linguagem da cultura popular, e podem ser fluentes nessa linguagem específica”. “Não sei muito sobre Angola nesse aspecto, mas no Congo, por exemplo, se vives em Kinshasa, não podes sentir-te realmente integrado, se não falares lingala.”

Em Luanda, usam uma linguagem urbana que assume o quimbundo, que o mistura com o português urbano, eivado de corruptelas e neologismos, como uma forma de identidade, uma identidade luandense, uma linguagem que não podia ser de outro lugar.

“Exactamente, é simbólico. Têm de mostrar que ainda há valor na cultura indígena.”

O que importa saber é que “a evolução de uma linguagem ou de uma cultura em particular não é uniforme, que uma linguagem varia de acordo com a geração, de acordo com o género, de acordo com a subcultura e de acordo com o tempo”.

O importante é que as línguas estão sempre a evoluir – por exemplo, as palavras que entram na forma de falar dos portugueses vindas directamente de Angola ou do Brasil, ou passadas de Angola para o Brasil e depois arribadas a Portugal pela aculturação das telenovelas. Haverá, no entanto, algum momento em que essa contínua introdução de termos de outras línguas deixa de ser bom. Pode uma língua morrer por invasão de estrangeirismos?

Invasão do inglês

“Não vejo que seja mau para uma linguagem, porque há termos que são mais bem expressados com palavras estrangeiras do que com as nossas próprias palavras. Os europeus colonizaram, mas também aprenderam uma série de coisas novas que não conheciam, familiarizaram-se com novos alimentos e a melhor forma de os nomear foi usar as palavras indígenas. Veja-se, por exemplo, a palavra ‘piripiri’.”

Mas hoje a forma como o inglês se tornou omnipresente na linguagem urbana de muitas cidades do mundo não é por si ameaça?

Mufwene escreveu um artigo sobre o assunto, intitulado English as a lingua franca: Myths and Facts (O inglês como língua franca: mitos e factos, em tradução livre) em que refere que “o inglês se espalhou pelo mundo à custa da sua indigenização nos novos contextos de actualização, à medida que se adapta às necessidades comunicativas e aos hábitos comunicativos anteriores dos seus novos falantes”.

“Há palavras inglesas noutras línguas, porque, provavelmente, é mais fácil transmitir o significado com as palavras inglesas do que com as palavras indígenas. Mas é também uma forma de mostrar que alguém está actualizado no conhecimento do mundo. No entanto, se olharmos para o inglês em si, muito do seu vocabulário vem de outras línguas. Tem, por exemplo, palavras do francês, sobretudo, mas também de línguas africanas: a palavra ‘banana’ de onde vem?”to com as outras indirectamente, através das nossas interacções e vão sendo remodeladas e é isso que vemos na história da humanidade

Aos que temem ver o mundo todo a falar inglês, Salikoko Mufwene responde: não vai ser assim. “Não penso que o inglês vá substituir outras línguas.” E lembra como no Brasil lutou para se fazer entender; como em Belo Horizonte comeu por acaso uma refeição que não sabia nomear, porque ninguém falava inglês e ele não falava português.

“Quando fui à China, reparei numa coisa muito interessante. Fui a um mercado de artesanato e, para minha surpresa, os vendedores eram bastante fluentes no inglês, ao contrário de alguns professores universitários que o não eram. “Quando precisamos da língua, fazemos um esforço para a aprender. No mercado, precisavam do inglês para vender as suas peças, enquanto para um professor que aprendeu em chinês e dá aulas em chinês, o inglês é secundário.”

Silogismo: se o inglês é útil para comunicar e as línguas são feitas para comunicar, logo o inglês será usado para comunicar. Mas um português não vai falar inglês com um português, nem um espanhol inglês com outro espanhol.

“É certo que se pode esperar encontrar alguém que fale um pouco de inglês, mesmo em alguns dos lugares mais remotos do mundo actual, em grande parte graças ao empenho dos sistemas educativos nacionais no mundo não anglófono em ensinar inglês como língua estrangeira.” Porém, “mesmo que o inglês se tenha tornado uma língua franca útil em todo o mundo, não podemos deixar-nos enganar e contar muito com isso”, porque o seu “valor de mercado varia consoante os indivíduos, nomeadamente do local onde se vive e do que se pretende ganhar com isso”.

É comércio e não invasão, soft power e não conquista. O inglês faz-se útil, quer-se útil.

O inglês não é um império, mesmo que a superpotência que mais contribui para o exportar tenha tiques imperialistas. Aliás, para o professor americano-congolês isso de a língua ser uma pátria, como Fernando Pessoa alegava em relação ao português, só serve para países onde a hegemonia interna deixou língua e território com a mesma fronteira, como Portugal.

Para Mufwene, nascido num país como a República Democrática do Congo, que tem uma língua oficial (francês), quatro línguas nacionais (kituba, lingala, suaíli e tshiluba) e 250 línguas étnicas, a afirmação pessoana não faz qualquer sentido.

“Para quem é de um país tão diverso linguisticamente como Angola ou o Congo, não podemos realmente pôr as coisas nesses termos ou acabaríamos com pequenas nações monolingues, como existiam antes da colonização”, explica. Os Estados que saíram das lutas de autodeterminação assumiram outros critérios para se definir. Em vez de tentarem reverter o colonialismo, assumiram as fronteiras fictícias da herança, com base nas quais construíram os seus Estados plurilinguísticos.

Mesmo os Estados Unidos não têm o inglês como língua oficial a nível federal (é-o em 32 estados), apesar de volta e meia a ala mais à direita levantar essa bandeira. O ex-Presidente Donald Trump falou muito disso durante a campanha eleitoral de 2016, mas acabou por não concretizar nada em relação ao assunto durante o seu tempo na Casa Branca.

A ideia de uma língua/uma nação, diz o linguista, é uma política introduzida no século XIX na Europa que “não funciona muito bem noutras partes do mundo”. Aliás, “mesmo aqui na Europa, estamos sempre a ser lembrados de que há pessoas que não se sentem confortáveis com isso”.

tp.ocilbup@seugirdor.oinotna

tp.ocilbup@oleber.edlitam

 https://www.publico.pt/2023/12/24/mundo/entrevista/lingua-darwin-linguagem-estado-permanente-evolucao-2073527


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