CRÓNICA
Kissinger era um intelectual judeu inteligentíssimo com uma pronúncia esquisita, com acesso privilegiado ao poder do império mais poderoso do mundo: o americano. What’s not to like?
* Miguel Esteves Cardoso
30 de Novembro de 2023
Uma coisa é certa: ainda é cedo para ver a vida de Henry Kissinger como uma comédia. Mas é uma comédia, uma comédia tão antiga como a própria comédia: a história do homem inteligentíssimo rodeado por burros e ignorantes.
Kissinger era inteligentíssimo e entrava em cada problema como se fosse o primeiro, para ser maior o prazer de tentar discuti-lo — e até talvez, quem sabe, resolvê-lo.
Despia-se do que sabia e achava, para poder ver a questão do nada, como alguém a pôr uma venda nos olhos para descobrir a arquitectura interior da própria casa, que conhece de ginjeira e da qual está farta.
A única vez em que as coisas correram bem a Kissinger foi quando pôde conspirar com dois outros homens inteligentíssimos: Nixon e Mao. Mas Nixon era um bêbado paranóico e preconceituoso, com um complexo de inferioridade ainda mais potente do que os próprios Estados Unidos da América. E Mao era pior ainda: era um comunista.
A comédia vem do poder da inteligência contra a teimosia humana de continuar a ser como se é: não é nenhum. A comédia – mais do que negra – está na quantidade de vezes que o inteligentíssimo Kissinger teve de recorrer à força bruta: quase todas.
Kissinger era um académico, uma pessoa que estava bem com outros académicos. Mas, de repente, viu-se no meio de políticos e militares, quase todos broncos, venais e teimosos, que desconfiam tanto das grandes inteligências como dos judeus e das pessoas com pronúncias esquisitas.
Kissinger era um intelectual judeu inteligentíssimo com uma pronúncia esquisita, com acesso privilegiado ao poder do império mais poderoso do mundo: o americano.
Como dizem os americanos, what's not to like?
Kissinger era, acima de tudo, um imperialista. Fez tudo para favorecer os Estados Unidos da América. Foi um patriota americano.
Mas foi um patriota desgostoso, sempre desiludido pela estupidez, pela esperteza saloia e pela arrogância injustificável dos seus fellow americans.
E dos humanos em geral.
O autor é colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2023/11/30/opiniao/cronica/rip-henry-kissinger-2072089
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