OPINIÃO -
* Nuno Ramos de Almeida´
(Diário de Notícias 31 Dezembro 2023)
Gosto de
reescrever textos, para além de roubar tempo ao trabalho, é uma espécie de
mantra em que se pode convocar o passado e evocar gente que amamos, mas que não
está presente entre nós. As palavras são uma forma de encantamento que trazem à
vida quem determinou o nosso caminho e reafirmam as nossas fidelidades.
Persistimos em
pensar que não nos esgotamos na morte e que os que ficam são uma espécie de
continuidade sem nós, como os nossos persistem, no tempo, nos nossos atos.
É óbvio que o
que pensamos tem muito a ver connosco e a nossa circunstância e que não somos
nada, sem sermos em relação aos outros em que nos inserirmos. Mas vamos à
história recontada.
Numa altura em
que se branqueiam os negros tempos quando não tínhamos liberdade e transformam
os amigos dos ditadores de turno em heróis da liberdade, a memória torna-se uma
arma no presente. A única vantagem de ter vivido tempos é que eu sei o que é a
ditadura, a revolução que faz meio século e a liberdade, simplesmente porque
vivi. Aqui fica um conto sobre esse fio de tempo, como agora se diz.
Aproximava-se o
Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho.
Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não
me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha.
Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as
casas clandestinas onde viviam crianças. Era membro de uma comunidade, embora
não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma
quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como
chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas, na altura, isso fazia-me sentir
que não estávamos sozinhos.
Tinha a nítida
sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Nesse
coletivo estavam pessoas de muitas raças e países. Anos antes, andava na escola
francesa em Argel. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados políticos.
A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha corrido
pelas ruas. Milhões haviam morrido nos bombardeamentos dos franceses. A tortura
durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de
Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem
aguentar sem falar três dias - apenas três dias, para permitir mudar os
contactos e resistir à repressão. Depois da independência, a cidade viveu um
sonho estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações.
Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios
abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vivido em
prédios europeus. Mais tarde, o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite
tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrado com o nome de Che. Já
adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o
heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.
Eu frequentava
uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos
às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam,
batiam-nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos
espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as
agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos
agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que algumas das nossas
pedras lhe acertaram em cheio. Quando nos bateram a seguir, quase não doeu.
Anos mais tarde, em França, numa casa de apoio de camaradas do PCF (Partido
Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em
Portugal. Por causa dos "maus", a PIDE, tinha de escolher um nome. Um
nome diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio
que os meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era, de facto, grande.
Caminhei até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no
dia seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de
ferro. Chegámos a Lisboa e arranjámos uma casa clandestina. A minha mãe
mobilou-a com todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na
área social, para passarmos por uma família normal. Gastou menos que o
previsto, estava feliz. Mas, mais tarde, o camarada responsável pelas casas
criticou-a por ter gasto dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu
esquecer o facto. Quando, anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos
o aparelho clandestino, pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e
respondeu, dura: "Diz ao fulano (o camarada com quem ela tinha discutido)
que compro tudo menos o esquentador."
https://www.dn.pt/opiniao/um-dia-escreverei-um-texto-novo-para-2024-mas-nao-sera-hoje-17583454.html
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