O que faz do livro de Oliveira Martins um livro de história não é parecer-se mais ou menos com um romance. É, como em toda a grande história, dar voz ao que pessoas achavam que se podia estar a passar
Miguel Tamen
Colunista do Observador,
Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de
Lisboa
24 dez. 2023, 00:16
“Sua Majestade fora a Belém comer
uma merenda.” Começa assim o melhor livro de J. P. Oliveira Martins
(1845-1894), o esplêndido Portugal contemporâneo, publicado em 1881. Em dois
volumes Oliveira Martins elaborou uma versão da história portuguesa entre 1826
e 1868. Muitos dos seus contemporâneos não gostaram da ideia. Aconselha-se
ainda hoje os historiadores a não tentar escrever sobre o presente. Oliveira
Martins, ignorou alegremente esses conselhos. Seria porém história aquilo que
tinha feito? Teria ele escrito como um verdadeiro historiador? E o que é
escrever como um historiador?
O Portugal antigo acabou para
Oliveira Martins com a morte do rei D. João VI; e Portugal contemporâneo começa
como um romance rural. Nessa altura Belém não fazia parte de Lisboa: era um
sítio onde se podia fazer piqueniques e onde imaginamos os visitantes a acampar
em cima de uns penhascos, como no conhecido poema de Cesário Verde, onde
“penhascos” rima com “damascos.” Não sabemos se a merenda terá sido ao ar
livre; mas o rei era conhecido por gostar de comer. A ideia de que uma época
inteira acabou no dia em que um rei foi lanchar aos arrabaldes é importante
para Oliveira Martins. Foi uma espécie de última tarde portuguesa.
Oliveira Martins conta que o
público supôs na altura que o rei tinha sido envenenado: “a peçonha fora
propinada nas laranjas da merenda de Belém.” A História conta-nos aquilo que
aconteceu realmente; e isso inclui sempre coisas que as pessoas na altura achavam
que poderiam ter acontecido. Será a crença num envenenamento menos histórica do
que a ocorrência de um piquenique? Muitas centenas de páginas depois, o livro
acaba com a morte de D. Pedro V, bisneto de D. João VI, em 1861. Esse segundo
rei também teria sido envenenado: “Tinham envenenado o rei! Tinham envenenado
tudo!” Acusou-se Portugal contemporâneo de dar voz a boatos e rumores, à
opinião inconsistente e indocumentada. Para um historiador, no entanto, boatos
e rumores são factos históricos: acontece muitas vezes que as pessoas se
referem àquilo que poderia ter acontecido, que não aconteceu, ou que não sabem
se aconteceu; é um facto que os nossos antepassados ocasionalmente exageraram.
Um boato não é só por si menos
histórico que um piquenique ou uma morte: depende de quem se fala, e de quem
come as laranjas ou os damascos. Da mesma maneira, nenhuma frase de um livro de
história é só por si historiográfica. A historiografia não é um género
literário nem uma região linguística demarcada. Não é porém também um tipo de
ficção. O que faz do livro de Oliveira Martins um livro de história não é
parecer-se mais ou menos com um romance. É, como em toda a grande história, e
ao contrário da história pequena, dar voz ao que pessoas da altura achavam que
se poderia estar a passar: aos erros, conjecturas e fantasias de pessoas que
existiram.
https://observador.pt/opiniao/plano-nocional-de-leitura-xv/
Sem comentários:
Enviar um comentário