“Thatcher
procurou tirar a Grã-Bretanha do marasmo”. E assim Keir Starmer fez da
protagonista contrarreforma neoliberal referência ideológica do Labour. Isto é
importante quando por aí se fala de radicalismo. Mesmo que o centro-esquerda
aceite os dogmas desde então instituídos, pelo menos não erga estátuas a
Thatcher. E não faça do que a direita tolera a bitola da “moderação”. Algum
amor próprio
“Thatcher
procurou tirar a Grã-Bretanha do marasmo, libertando o nosso empreendedorismo
natural. Tony Blair reinventou um partido trabalhista obsoleto e
desatualizado para aproveitar o otimismo do final dos anos 90.” O que Thatcher
disse uma vez por provocação – que o New Labour e Tony Blair tinham sido as
suas maiores conquistas – o atual líder dos trabalhistas, Keir Starmer,
escreveu como tese no The
Telegraph. Dá a Thatcher, uma das principais responsáveis pela
contrarreforma neoliberal, o estatuto de referência ideológica do que outrora
foi o centro-esquerda. Não foi o primeiro. O muito relevante trabalhista Peter
Mandelson já tinha dito, em 2002, em defesa da terceira via de Blair:
“economicamente, somos todos thatcheristas”.
Estou muito
longe do escândalo que tomou alguns deputados do Labour. Acho, aliás, que o
texto de Starmer, apesar da sua confrangedora banalidade – inevitável quando
decidimos ser subproduto de outros – na defesa da “terapia de choque” que impôs
ao seu partido, de uma louvável honestidade. As suas únicas divergências com os
conservadores, e apenas com parte deles, é a renegociação dos termos do Brexit
e se a imigração se resolve com acordos com Ruanda ou com medidas um pouco
menos desumanas. Talvez Thatcher subscrevesse as duas.
No essencial, a
crítica aos conservadores é falharem na sua própria agenda. É isto que o Labour
tem a oferecer: disputar aos conservadores o legado de Thatcher. Porque assume
que esse é o único eleitorado em disputa. O resto está agrilhoado aos trabalhistas,
sem outra alternativa política. É importante debater esta assunção orgulhosa de
uma derrota histórica quando por aí anda uma discussão vazia sobre radicalismo.
Pedro Nuno
Santos é radical por propor alguma coisa que não esteja alinhada com a agenda
programática tradicional do Partido Socialista? Nada me ocorre. É radical por
não ter apagado a “geringonça” do seu legado? Quem assim acha é cínico e pouco
astuto. Cínico, porque quase todos (curiosamente, os maiores críticos da
“geringonça”, que ficaram fora dela, apoiam o ex-ministro) deveram os seus
lugares no governo a esse entendimento. A começar por José Luís Carneiro. Pouco
astuto, porque ignoram que esses arranjo político sustentou o governo mais
bem avaliado deste século que deixou excelentes memórias para os
portugueses, reforçadas pela instabilidade da maioria absoluta. Quanto muito, o
seu radicalismo terá a ver com questões de temperamento, relacionadas com a sua
impulsividade. E aí, falta ao termo o rigor que o torne digno de debate.
A questão que
interessa é a que abre este texto. Dois acontecimentos do último quartel do
século XX marcaram a derrota da social-democracia (alguém distribua uns livros
a alguns dos nossos “liberais”, para que saibam o que o termo significa): o
papel de Thatcher (até com recurso à repressão) e Reagan na desregulação e
financeirização da economia, que nos atira para crises cíclicas cada vez mais
próximas e na desindustrialização do ocidente, que oferece as democracias à
extrema-direita; e a queda do muro de Berlim, que retirou ao centro-esquerda
(chame-se “social-democracia”, “socialismo democrático” ou “trabalhismo”) o
lugar charneira no sistema político e ao Estado Social o papel de dique ao
“perigo comunista”.
Depois destes
dois acontecimentos, Blair, Schroeder e Clinton foram, curiosamente,
aceleradores do processo de liberalização da economia global. Não foram apenas
thatcheristas. Foram para lá de Thatcher. Só não tiveram de fazer o combate
pela hegemonia ideológica neoliberal porque foram suas crias. O resultado é
conhecido: depois de um domínio da Europa, a social-democracia, muitíssimo
enfraquecida, resume-se a um vago apelo à decência social num terreno europeu
cada vez menos favorável. Não foi derrotada, recorreu à eutanásia.
Este contexto
levou a um desequilíbrio que favoreceu, naturalmente, a extrema-direita – com
uma esquerda derrotada, do centro até à ponta, não há, ao contrário do que se
tem dito, um crescimento dos “extremismos” na Europa. Porque sem a ala mais
centrista, a esquerda ficou acantonada na resistência, tendo boa parte optado
por resumir as novas conquistas à chamada agenda “identitária”, ela própria
filha bastarda do liberalismo individualista. Porque a alternativa ao
neoliberalismo passou a ser a sua versão musculada, só aparentemente social,
que culpa os imigrantes e os mais pobres por todos os males. E porque o debate
político se desequilibrou para a direita. Enquanto um social-democrata típico
defendia, sem qualquer problema, a presença do Estado na economia, propor,
hoje, que o Estado tenha uma presença em setores estratégicos indispensáveis é
sinal de radicalismo. E não aceitar os dogmas do thatcherismo é ser um radical.
Qualquer
tentativa de descolar disto é tratada como manifestação de radicalismo até
chegarmos ao ponto de medidas de regulação do mercado da habitação em vigor em
países com governos liberais serem “soviéticas” e “chavistas”. É isto que se
faz num confronto pela hegemonia política: tornar excêntrico o centro, para o
ocupar. Desse ponto de vista, os temas culturais são uma bênção, porque
permitem que se tome como consensual o status quo económico,
matando a política no que ela tem de mais fraturante – a distribuição dos
recursos.
Nesta campanha,
José Luís Carneiro tem servido de lebre para o que a direita vai fazer na
campanha. É natural que ataque aquele que tem sido apontado como provável
vencedor e que esse se dedique a atacar a direita. É o que fazem os que vão
atrás e à frente. Mas ao escolher esta clivagem – e não apenas a impulsividade
e alguns episódios do passado recente de Pedro Nuno Santos, por exemplo –,
Carneiro contribui, conscientemente ou não, para retirar autonomia ideológica
(e não tanto estratégica) ao Partido Socialista. Faz do que a direita tolera e
não tolera a bitola da “moderação”. Torna excêntrica parte do centro-esquerda.
Carneiro acha
que está em melhor circunstâncias para vencer eleições porque agrada mais a
eleitores que nunca votariam no PS, pelo menos neste momento. Na realidade,
depois de oito anos de poder, a primeira dificuldade dos socialistas será
mobilizar os seus próprios eleitores. E isso faz alguém que lhes agrade mais –
está aí a vantagem de Pedro Nuno Santos – mas, acima de tudo, que tenha alguma
coisa mobilizadora para dizer.
A maior
identificação com os eleitores do PS faz de Pedro Nuno Santos um radical? Se
assim fosse, o debate poderia ser se o PS quer ser mais do que intérprete
secundário da agenda de terceiros num país onde, ainda por cima, o
centro-esquerda é liderante. Quem nos dera que o espaço de manobra que a nossa
atual democracia permitisse uma polémica de espectro tão largo. Quereria dizer
que a nossa democracia ainda nos oferecia muitas alternativas e que a
extrema-direita não continuaria a ser destino do voto desistente.
Ganhe quem
ganhar este fim de semana, o espartilho europeu inviabiliza programas
verdadeiramente social-democratas e até a promoção de um capitalismo nacional
que permita uma verdadeira industrialização e não a mera competição por via
fiscal ou pela liberalização laboral. Seria preciso muitíssimo mais do que uma
liderança mais à esquerda no PS para vencer os bloqueios europeus a uma agenda
social-democrata ou apenas contrária ao neoliberalismo. Com a atual correlação
de forças, Pedro Nuno Santos seria destruído em meses, se o tentasse.
Com o atual
estado do debate mediático, Pedro Nuno Santos fará no País, se vencer a luta
interna, o que fez no partido: ir buscar quem, à sua direita, lhe ofereça um
certificado de moderação. E se vencer e houver uma maioria de esquerda, uma
política diferente da dos últimos quatro anos exigiria uma correlação de forças
semelhante à de 2015, permitindo que o líder do PS fosse o ponto de equilíbrio
entre os partidos mais à esquerda e o centro. Não me parece um cenário
previsível. E não são as lideranças que determinam estas coisas. Se fossem,
António Costa nunca teria sido o obreiro do primeiro entendimento à esquerda em
Portugal. São, antes de tudo, as circunstâncias.
A única coisa
que faz de Pedro Nuno Santos um radical é aquilo que fez com que alguns poderes
se indispusessem com ele: não dar a mão aos Alfredo Casimiro, David Neelman e
Lacerda Machado desta vida. Infelizmente, e é neste ponto que estamos, o debate
português não é sobre linhas ideológicas. É sobre o capitalismo rentista que
ainda nos domina, seja por herança da ditadura, seja porque é o lugar que o
modelo de concentração europeia nos reserva. Um modelo ancorado nas rendas de
antigas empresas do Estado semi-monopolistas e, esgotado esse filão, na
privatização de serviços públicos com procura inelástica, recebendo as devidas
rendas do Estado.
Não sabemos se
Pedro Nuno Santos terá o engenho e a competência para resistir a esta cultura
política, sabendo que quem o faz tem mais dificuldade em conquistar o estatuto
da “discreta competência” reservada aos que nunca compram guerras para nunca se
magoarem. Mas o debate sobre o novo aeroporto, em que Luís Montenegro está
refém de Arnaut e das rendas que Passos (e antes dele o PS) distribuíram a
monopólios privados, dá centralidade ao tema. Mas nada disto tem a ver com
radicalismo.
Talvez a única clivagem que ainda exista na militância do PS, para lá dos pequenos jogos de interesses pessoais que sempre movem os partidos de poder, até seja, em parte, geracional. Há uma geração que entrou para o PS depois da derrota histórica da social-democracia na Europa. Quer, no sentido metafórico do gesto, que o centro-esquerda não erga estátuas a Thatcher. Não que faça grande diferença quando aceita boa parte dos dogmas desde então instituídos. Mas que sobre um pouco de amor próprio, à falta de melhor. Basta ouvir quem elogia José Luís Carneiro e a quem ele quer agradar (chama “sociedade civil” ao aparato mediático) para perceber que é mesmo só disso que se trata: algum amor próprio.
https://expresso.pt/opiniao/2023-12-14-Diretas-do-PS-algum-amor-proprio-a4ab06bd
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