quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Daniel Oliveira - Diretas do PS: algum amor próprio

OPINIÃO

Daniel Oliveira

“Thatcher procurou tirar a Grã-Bretanha do marasmo”. E assim Keir Starmer fez da protagonista contrarreforma neoliberal referência ideológica do Labour. Isto é importante quando por aí se fala de radicalismo. Mesmo que o centro-esquerda aceite os dogmas desde então instituídos, pelo menos não erga estátuas a Thatcher. E não faça do que a direita tolera a bitola da “moderação”. Algum amor próprio

“Thatcher procurou tirar a Grã-Bretanha do marasmo, libertando o nosso empreendedorismo natural. Tony Blair reinventou um partido trabalhista obsoleto e desatualizado para aproveitar o otimismo do final dos anos 90.” O que Thatcher disse uma vez por provocação – que o New Labour e Tony Blair tinham sido as suas maiores conquistas – o atual líder dos trabalhistas, Keir Starmer, escreveu como tese no The Telegraph. Dá a Thatcher, uma das principais responsáveis pela contrarreforma neoliberal, o estatuto de referência ideológica do que outrora foi o centro-esquerda. Não foi o primeiro. O muito relevante trabalhista Peter Mandelson já tinha dito, em 2002, em defesa da terceira via de Blair: “economicamente, somos todos thatcheristas”.

Estou muito longe do escândalo que tomou alguns deputados do Labour. Acho, aliás, que o texto de Starmer, apesar da sua confrangedora banalidade – inevitável quando decidimos ser subproduto de outros – na defesa da “terapia de choque” que impôs ao seu partido, de uma louvável honestidade. As suas únicas divergências com os conservadores, e apenas com parte deles, é a renegociação dos termos do Brexit e se a imigração se resolve com acordos com Ruanda ou com medidas um pouco menos desumanas. Talvez Thatcher subscrevesse as duas.

No essencial, a crítica aos conservadores é falharem na sua própria agenda. É isto que o Labour tem a oferecer: disputar aos conservadores o legado de Thatcher. Porque assume que esse é o único eleitorado em disputa. O resto está agrilhoado aos trabalhistas, sem outra alternativa política. É importante debater esta assunção orgulhosa de uma derrota histórica quando por aí anda uma discussão vazia sobre radicalismo.

Pedro Nuno Santos é radical por propor alguma coisa que não esteja alinhada com a agenda programática tradicional do Partido Socialista? Nada me ocorre. É radical por não ter apagado a “geringonça” do seu legado? Quem assim acha é cínico e pouco astuto. Cínico, porque quase todos (curiosamente, os maiores críticos da “geringonça”, que ficaram fora dela, apoiam o ex-ministro) deveram os seus lugares no governo a esse entendimento. A começar por José Luís Carneiro. Pouco astuto, porque ignoram que esses arranjo político sustentou o governo mais bem avaliado deste século que deixou excelentes memórias para os portugueses, reforçadas pela instabilidade da maioria absoluta. Quanto muito, o seu radicalismo terá a ver com questões de temperamento, relacionadas com a sua impulsividade. E aí, falta ao termo o rigor que o torne digno de debate.

A questão que interessa é a que abre este texto. Dois acontecimentos do último quartel do século XX marcaram a derrota da social-democracia (alguém distribua uns livros a alguns dos nossos “liberais”, para que saibam o que o termo significa): o papel de Thatcher (até com recurso à repressão) e Reagan na desregulação e financeirização da economia, que nos atira para crises cíclicas cada vez mais próximas e na desindustrialização do ocidente, que oferece as democracias à extrema-direita; e a queda do muro de Berlim, que retirou ao centro-esquerda (chame-se “social-democracia”, “socialismo democrático” ou “trabalhismo”) o lugar charneira no sistema político e ao Estado Social o papel de dique ao “perigo comunista”.

Depois destes dois acontecimentos, Blair, Schroeder e Clinton foram, curiosamente, aceleradores do processo de liberalização da economia global. Não foram apenas thatcheristas. Foram para lá de Thatcher. Só não tiveram de fazer o combate pela hegemonia ideológica neoliberal porque foram suas crias. O resultado é conhecido: depois de um domínio da Europa, a social-democracia, muitíssimo enfraquecida, resume-se a um vago apelo à decência social num terreno europeu cada vez menos favorável. Não foi derrotada, recorreu à eutanásia.

Este contexto levou a um desequilíbrio que favoreceu, naturalmente, a extrema-direita – com uma esquerda derrotada, do centro até à ponta, não há, ao contrário do que se tem dito, um crescimento dos “extremismos” na Europa. Porque sem a ala mais centrista, a esquerda ficou acantonada na resistência, tendo boa parte optado por resumir as novas conquistas à chamada agenda “identitária”, ela própria filha bastarda do liberalismo individualista. Porque a alternativa ao neoliberalismo passou a ser a sua versão musculada, só aparentemente social, que culpa os imigrantes e os mais pobres por todos os males. E porque o debate político se desequilibrou para a direita. Enquanto um social-democrata típico defendia, sem qualquer problema, a presença do Estado na economia, propor, hoje, que o Estado tenha uma presença em setores estratégicos indispensáveis é sinal de radicalismo. E não aceitar os dogmas do thatcherismo é ser um radical.

Qualquer tentativa de descolar disto é tratada como manifestação de radicalismo até chegarmos ao ponto de medidas de regulação do mercado da habitação em vigor em países com governos liberais serem “soviéticas” e “chavistas”. É isto que se faz num confronto pela hegemonia política: tornar excêntrico o centro, para o ocupar. Desse ponto de vista, os temas culturais são uma bênção, porque permitem que se tome como consensual o status quo económico, matando a política no que ela tem de mais fraturante – a distribuição dos recursos.

Nesta campanha, José Luís Carneiro tem servido de lebre para o que a direita vai fazer na campanha. É natural que ataque aquele que tem sido apontado como provável vencedor e que esse se dedique a atacar a direita. É o que fazem os que vão atrás e à frente. Mas ao escolher esta clivagem – e não apenas a impulsividade e alguns episódios do passado recente de Pedro Nuno Santos, por exemplo –, Carneiro contribui, conscientemente ou não, para retirar autonomia ideológica (e não tanto estratégica) ao Partido Socialista. Faz do que a direita tolera e não tolera a bitola da “moderação”. Torna excêntrica parte do centro-esquerda.

Carneiro acha que está em melhor circunstâncias para vencer eleições porque agrada mais a eleitores que nunca votariam no PS, pelo menos neste momento. Na realidade, depois de oito anos de poder, a primeira dificuldade dos socialistas será mobilizar os seus próprios eleitores. E isso faz alguém que lhes agrade mais – está aí a vantagem de Pedro Nuno Santos – mas, acima de tudo, que tenha alguma coisa mobilizadora para dizer.

A maior identificação com os eleitores do PS faz de Pedro Nuno Santos um radical? Se assim fosse, o debate poderia ser se o PS quer ser mais do que intérprete secundário da agenda de terceiros num país onde, ainda por cima, o centro-esquerda é liderante. Quem nos dera que o espaço de manobra que a nossa atual democracia permitisse uma polémica de espectro tão largo. Quereria dizer que a nossa democracia ainda nos oferecia muitas alternativas e que a extrema-direita não continuaria a ser destino do voto desistente.

Ganhe quem ganhar este fim de semana, o espartilho europeu inviabiliza programas verdadeiramente social-democratas e até a promoção de um capitalismo nacional que permita uma verdadeira industrialização e não a mera competição por via fiscal ou pela liberalização laboral. Seria preciso muitíssimo mais do que uma liderança mais à esquerda no PS para vencer os bloqueios europeus a uma agenda social-democrata ou apenas contrária ao neoliberalismo. Com a atual correlação de forças, Pedro Nuno Santos seria destruído em meses, se o tentasse.

Com o atual estado do debate mediático, Pedro Nuno Santos fará no País, se vencer a luta interna, o que fez no partido: ir buscar quem, à sua direita, lhe ofereça um certificado de moderação. E se vencer e houver uma maioria de esquerda, uma política diferente da dos últimos quatro anos exigiria uma correlação de forças semelhante à de 2015, permitindo que o líder do PS fosse o ponto de equilíbrio entre os partidos mais à esquerda e o centro. Não me parece um cenário previsível. E não são as lideranças que determinam estas coisas. Se fossem, António Costa nunca teria sido o obreiro do primeiro entendimento à esquerda em Portugal. São, antes de tudo, as circunstâncias.

A única coisa que faz de Pedro Nuno Santos um radical é aquilo que fez com que alguns poderes se indispusessem com ele: não dar a mão aos Alfredo Casimiro, David Neelman e Lacerda Machado desta vida. Infelizmente, e é neste ponto que estamos, o debate português não é sobre linhas ideológicas. É sobre o capitalismo rentista que ainda nos domina, seja por herança da ditadura, seja porque é o lugar que o modelo de concentração europeia nos reserva. Um modelo ancorado nas rendas de antigas empresas do Estado semi-monopolistas e, esgotado esse filão, na privatização de serviços públicos com procura inelástica, recebendo as devidas rendas do Estado.

Não sabemos se Pedro Nuno Santos terá o engenho e a competência para resistir a esta cultura política, sabendo que quem o faz tem mais dificuldade em conquistar o estatuto da “discreta competência” reservada aos que nunca compram guerras para nunca se magoarem. Mas o debate sobre o novo aeroporto, em que Luís Montenegro está refém de Arnaut e das rendas que Passos (e antes dele o PS) distribuíram a monopólios privados, dá centralidade ao tema. Mas nada disto tem a ver com radicalismo.

Talvez a única clivagem que ainda exista na militância do PS, para lá dos pequenos jogos de interesses pessoais que sempre movem os partidos de poder, até seja, em parte, geracional. Há uma geração que entrou para o PS depois da derrota histórica da social-democracia na Europa. Quer, no sentido metafórico do gesto, que o centro-esquerda não erga estátuas a Thatcher. Não que faça grande diferença quando aceita boa parte dos dogmas desde então instituídos. Mas que sobre um pouco de amor próprio, à falta de melhor. Basta ouvir quem elogia José Luís Carneiro e a quem ele quer agradar (chama “sociedade civil” ao aparato mediático) para perceber que é mesmo só disso que se trata: algum amor próprio. 

https://expresso.pt/opiniao/2023-12-14-Diretas-do-PS-algum-amor-proprio-a4ab06bd 


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