Guilherme d’Oliveira Martins
26 Dezembro 2023 — 07:00
O Risorgimento italiano
tem raízes muito antigas. Dante, Petrarca e Maquiavel fazem parte de um longo
caminho que culminou na unificação de Itália. Entre 1815 e 1870 confrontam-se
os partidários da Casa de Saboia e do rei da Sardenha e os companheiros de
Mazzini e Garibaldi. A saga contada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa
(1896-1957) em Il Gattopardo, imortalizada por Visconti,
desenha-nos o pano de fundo. A guerra patriótica contra o Império austríaco, os
ecos da Primavera dos Povos de 1848, a proclamação do reino de Itália e a
anexação dos Estados Pontifícios marcam um tempo que mudou o panorama europeu.
Napoleão dividira a Itália em vários reinos e o Congresso de Viena deixaria a
península subalternizada ao Império Austro-húngaro. O reino da Sardenha, com o
conde Cavour, economicamente moderno, tornou-se a locomotiva do novo Estado,
associada ao Risorgimento Letterario, que criou uma nação a partir
da língua e do génio poético presentes na grande Comédia de Dante,
tornada divina. A história é conhecida e até chegou a Portugal, com o trágico
exílo de Carlos Aberto e a sucessão em seu filho Vítor Manuel II, pai da nossa
Rainha D. Maria Pia.
Além dos
clássicos, o escritor moderno que muito contribuiu para a formação da
consciência italiana foi Edmondo de Amicis (1846-1908), autor de Coração,
uma obra sublime. Todos os jovens italianos desde 1886 até à geração de Umberto
Eco formaram-se a ler o livro de Amicis, talvez demasiado cheio de bons
sentimentos, mas indiscutivelmente marcante para a formação de uma consciência
cívica liberal e democrática. A obra relata, pela voz de Henrique, um ano
letivo dos alunos da 3.ª Classe de uma Escola, onde se lia em cada mês uma
verdadeira parábola sobre a liberdade, a generosidade, o respeito, o exemplo, o
altruísmo e a salvaguarda das diferenças. O Coração, que eu li
integralmente, com grande prazer, e que os meus pais me ajudaram a ler, numa
experiência inesquecível com meus irmãos, foi adotado como leitura obrigatória
nas escolas de Itália no final do século XIX. Daí a influência que exerceu em
diversas gerações também na Europa democrática. Longe do nacionalismo que
envenenou a mentalidade europeia - lembramos a carta em que se diz: "Eu
amo a minha terra porque a minha mãe nela nasceu; porque o sangue que me corre
nas veias é o mesmo sangue; porque na minha terra estão sepultados os mortos
que a minha mãe chora e meu pai venera." A cidade, a língua, os livros que
me educam, o grande povo no meio do qual vivo, a bela natureza que me cerca,
tudo pertence à ideia de pátria. E as histórias contadas pelo mestre-escola
ilustram a entrega e a generosidade, a abertura e a autonomia pessoal - como
nos casos do pequeno patriota paduano, do pequeno vigia lombardo, do
tamborzinho, da viagem dos Apeninos aos Andes - ou do sacrifício do pequeno
escrevente florentino - que nas altas horas da noite ajudava, às escondidas,
seu pai a realizar um trabalho árduo e repetitivo que compunha o ganha-pão
familiar. "Cursava a 4.ª classe. Era um gracioso florentino de 12 anos,
negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos
de ferro que, tendo muita família e pouco ordenado, vivia com
dificuldades." O filho, às escondidas, decidiu ajudar o pai a escrever
endereços em cintas para enviar revistas a assinantes. Mas se o trabalho
singrava, o pai não compreendia por que razão o aproveitamento do filho se
ressentia, até que descobriu que tal era fruto do cansaço pela generosidade...
Escritor dotadíssimo, de Amicis dá-nos exemplos de cidadania viva. A verdade é
que, em vez de um discurso abstrato, há valores exemplares. Mas além dos contos
mensais, há pequenos exemplos na relação entre os companheiros da turma
(perante uma dificuldade, uma doença, um acidente ou uma morte) que demonstram
a importância do respeito mútuo, do cuidado e da solidariedade. Eis como um livro
se torna influente.
Administrador-executivo
da Fundação Calouste Gulbenkian
https://www.dn.pt/opiniao/coracao-de-edmondo-de-amicis-17559844.html
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