quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

João Miguel Tavares - O doutor Nuno Rebelo de Sousa, seu filho

OPINIÃO

Neste momento, o melhor exemplo de “fucked up dad” é o senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

João Miguel Tavares

6 de Dezembro de 2023, 20:54

Um dos poemas mais famosos do século XX começa assim: “They fuck you up, your mum and dad. / They may not mean to, but they do.” (Em tradução livre: “Fodem-te a cabeça, a mamã e o papá. / Podem não ter essa intenção, mas é assim.”) É realmente assim, mesmo que não seja essa a intenção. O poema de Philip Larkin continua por ali fora, com uma série de observações e conselhos sortidos, que incluem sair de casa o mais cedo possível e evitar procriar, pelas razões aduzidas no primeiro verso.

Larkin foi coerente com a sua poesia – morreu em 1985, aos 63 anos, sem ter tido filhos. Felizmente, para bem da perpetuação da espécie humana, há 385 mil bebés a nascer todos os dias, e 280 milhões de mamãs e papás a iniciarem a cada ano a nobre tarefa de lixarem a cabeça dos seus filhos. Aquilo que Larkin não diz no seu poema, talvez por ser mais evidente – e nessa medida menos poético –, é que o inverso também é verdadeiro: à sua maneira, os pais são igualmente “fucked up” pelos seus filhos, ainda que sejam eternamente absolvidos pela frase clássica “não fui eu que pedi para nascer”. Neste momento, o melhor exemplo de “fucked up dad” é o senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Note-se que Marcelo está em excelente companhia. Quem gosta de seguir a política americana sabe que um dos maiores pedregulhos no caminho da reeleição de Joe Biden se chama Hunter Biden, o seu filho absurdamente problemático, que durante anos andou a fazer dinheiro à sombra do pai, fosse na China, fosse na companhia de gás ucraniana Burisma, onde se rodeou de gente muito pouco recomendável. Até que um dia se esqueceu de um computador portátil numa loja de informática, cheio de documentação comprometedora e fotos com prostitutas que fizeram as delícias dos tablóides.

Nuno Rebelo de Sousa não perdeu nenhum computador – limitou-se a enviar um email para a Presidência da República a pedir favores para um amigo. Mas esse email pode estar para Marcelo como o computador perdido para Joe Biden – uma bomba impossível de desarmadilhar, porque se um Presidente, ou um primeiro-ministro, pode despedir funcionários, assessores ou declarar em público que não tem amigos, não há forma politicamente eficaz de um pai se afastar de um filho. Se corta com brutalidade é impiedoso – o que lhe fica muito mal; se o protege é cúmplice – o que lhe fica pessimamente. Até hoje, Biden não conseguiu resolver esse dilema. Duvido muito de que Marcelo consiga.

Infelizmente para Marcelo, Nuno Rebelo de Sousa não é um cidadão como qualquer outro

A profundidade do dilema de Marcelo está espelhada numa formulação bizarra, que repetiu mais do que uma vez na conferência de imprensa desta semana: “O doutor Nuno Rebelo de Sousa, Meu Filho.” Estranho cognome. Por um lado, procurou criar distância – o “doutor Nuno Rebelo de Sousa”, “cidadão como qualquer outro”, que se limitou a enviar correspondência para Belém. Por outro, foi obrigado a acrescentar “meu filho”, porque obviamente aquilo que está no coração deste caso é essa proximidade. Marcelo andou a brincar com as palavras ao longo de todo o processo: declarou que um filho de Presidente não tinha privilégios, enquanto privilegiava um filho de Presidente.

Infelizmente para Marcelo, Nuno Rebelo de Sousa não é um cidadão como qualquer outro. Aliás, a pergunta fundamental neste momento é saber quem realmente é Nuno Rebelo de Sousa, e porque é que mobilizou um Presidente, um Governo, vários médicos e o Infarmed para ajudar um amigo brasileiro, ao ponto de comprometer a reputação do seu próprio pai.

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/12/06/opiniao/opiniao/doutor-nuno-rebelo-sousa-filho-2072819


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