OPINIÃO
A diferença entre ele e os sucessores foi ter-se mostrado cético e irónico com a retórica dos direitos humanos e da democracia com que quiseram embrulhar o que continua(va) a ser a mesma política.
* Manuel Loff
2 de Dezembro de 2023
Que dele se digam banalidades como as
do ex-primeiro-ministro e atual ministro britânico dos Estrangeiros David
Cameron (“grande estadista e um diplomata profundamente respeitado”), e que às
homenagens se juntem Putin (que dele guarda “as melhores recordações”) e
Zelensky, ainda dou de barato. Valem o que valem. Mas entre o “gigante da
História”, como lhe chamou o sempre pomposo Macron, ou o “mentiroso compulsivo”
que o neoconservador Edward Luttwak assegura que foi Kissinger, “quase sempre
por uma boa causa” ("The
two faces of Henry Kissinger", UnHerd, 1/12/2023),
fico-me com a tese de Luttwak, não só porque trabalhou na mesma Administração,
mas porque ele próprio, ao reproduzir na sua vida uma boa parte do perfil de
Kissinger, saberá bem do que fala. É o perfil dos académicos ambiciosos e bem
sucedidos nos departamentos de Ciência Política que aplicam ao campo da
política internacional (como assessores chorudamente pagos que, no caso de
Kissinger, passaram diretamente pela gestão governamental) a intelectualmente
mais cínica das teorias das Relações Internacionais, o realismo, a mais
adequada para quem quer defender relações de dominação e hegemonia.
A vida
de Henry Kissinger atravessou os últimos cem anos. Pelo menos em oito
deles (1969-77), enquanto foi conselheiro de segurança nacional e depois
Secretário de Estado dos presidentes Nixon (outra personagem que estava bem
para ele) e Ford, terá sido responsável direto e indireto de milhões de mortos
e rios de sangue em tantos pontos do mundo quantos aqueles em que o poder dos
EUA era capaz de ser decisivo: Vietname, Laos, Cambodja, Bangladesh, Congo,
Chile, Uruguai, Argentina, Chipre, Sara Ocidental, Angola, Timor… É graças
a esses anos, e à extraordinária arrogância da personagem, que em quase todo o
planeta a memória coletiva conserva o nome dele. Ele é pronunciado, contudo,
com emoções muito diferentes consoante a visão do mundo e a posição que se
ocupa na ordem internacional que a política de homens como Kissinger impuseram,
reproduziram e têm ajudado a conservar.
Terá sido responsável direto e
indireto de milhões de mortos e rios de sangue em tantos pontos do mundo
quantos aqueles em que o poder dos EUA era capaz de ser decisivo
Para os cultores do realismo
neoconservador de Kissinger, para quem “a desordem é pior que a injustiça” e “a
ordem é mais importante que a liberdade porque sem ordem não há liberdade para
ninguém” (Robert D. Kaplan, “The tragedy behind Kissinger’s realpolitik”, UnHerd,
30/11/2023), isto é, para a elite social e de Estado da quase totalidade dos
países nesta terceira década do século XXI, ele pode ser o “ser humano amável e
a mente brilhante que, ao longo de 100 anos, moldou os [destinos] de alguns dos
acontecimentos mais importantes do século”, como publicou Charles Michel,
presidente do Conselho da UE, a propósito da sua morte (pergunto-me quem é que
em Bruxelas escreve estas coisas aos eurocratas…). Para os muitos que, por todo
o mundo, o consideram(os) um criminoso de guerra que saiu desta vida
conseguindo evitar ser julgado pelos crimes que cometeu e ajudou a cometer,
Kissinger é um dos mais categorizados representantes de uma elite política que
apostou (e aposta ainda) tudo quanto pôde na preservação de uma ordem internacional
que desde há, pelo menos, 80 anos está em crise, que não conseguiu parar o fim
dos impérios coloniais e o avanço da emancipação dos povos do Sul Global, mas
que resiste ainda à perda da hegemonia ocidental.
A diferença entre ele e os seus
sucessores na diplomacia norte-americana é ter-se mostrado cético e irónico com
a retórica dos direitos humanos e da democracia com que os que lhe sucederam
quiseram embrulhar o que, afinal, continua(va) a ser a mesma política. Depois
de abandonar o governo (1977), com a derrota eleitoral de Gerald Ford,
Kissinger continuou a passear-se pelos meandros do poder e dos grupos
económicos que melhor lhe pagavam a sua assessoria, receoso, isso sim, daquele
que foi efemeramente, no final do século passado, um vento de mudança no
direito penal internacional, de que resultou a criação do tribunal homónimo, e
que teve na detenção em 1998 de Pinochet, um dos ditadores que Kissinger mais
protegeu, um momento simbólico que o obrigou, durante alguns anos, a tomar
precauções para evitar ser detido ele também, evitando viajar a alguns países
onde magistrados abriram processos contra si.
Além do Chile e da Argentina,
Kissinger teve de, em maio de 2001, deixar a França à pressa, depois de ter
recebido uma intimação do juiz Roger Le Loire, que investigava o plano Condor,
destinado a eliminar os opositores das ditaduras latino-americanas.”(Le
Monde, 30/11/2023). Foram os anos em que, como escrevia o seu
biógrafo Christopher Hitchins, “o homem rechonchudo de gravata preta na festa
da Vogue não é, certamente, o homem que ordenou e sancionou a
destruição de populações civis, o assassinato de políticos inconvenientes, o
rapto e o desaparecimento de soldados, jornalistas e sacerdotes que se
atravessaram no seu caminho? Oh, mas é. É exatamente o mesmo homem” (“Why has he got away with it?”, Guardian, 24/2/2001).
Teve de, em maio de 2001, deixar a
França à pressa, depois de ter recebido uma intimação do juiz Roger Le Loire,
que investigava o plano Condor, destinado a eliminar os opositores das
ditaduras latino-americanas
A mão de Kissinger esteve por detrás
do pior, do mais sangrento, do mais cínico que a política norte-americana fez
nos anos 1960 e 70. Golpes de Estado, operações de sabotagem, guerra suja
contra opositores políticos de aliados dos EUA. You name it e
o nome de Kissinger aparece sempre. Em todos os casos, ou houve iniciativa sua,
ou foi com o seu conhecimento e autorização.
O caso chileno é seguramente um dos
mais evidentes: estratégia de desestabilização social e sabotagem económica do
governo de Unidade Popular de Salvador Allende (1970-73); depois de ter tentado
impedir que Allende tomasse posse em 1970, promovendo, sem sucesso, uma
conspiração que as chefias militares chilenas do momento rejeitaram (o que fez
com que Kissinger ordenasse a preparação do sequestro de René Schneider, o
chefe do Estado-Maior chileno), é a partir de Washington que se prepara o golpe
de 11 de setembro de 1973, com o cerco e bombardeamento do Palácio de La Moneda
onde morre Allende. Na brutal repressão que se segue, os mais de 20 mil mortos
nada devem ter impressionado o homem que em tantas entrevistas se recordava de
ter sido repetidamente agredido por nazis até à sua família fugir da Alemanha,
em 1938, onde nascera 15 anos antes. "Você é uma vítima de todos os grupos
de esquerda do mundo", disse Kissinger a Pinochet em 1976, "e o seu maior pecado foi ter derrubado um governo que se estava
a tornar comunista".
Foto - Kissinger numa reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, em Moscovo, em 2008 EPA/MAXIM SHIPENKOV
Tudo somado, as mais pesadas terão
sido as suas responsabilidades na condução da guerra americana do Vietname, e
em particular na opção em bombardear o Camboja durante 14 meses seguidos
(1969-60), provocando um milhão de mortos e abrindo caminho à tomada do poder
pelos Khmeres Vermelhos (que os EUA ajudarão depois contra o Vietname). Mas
dois outros casos têm diretamente a ver com a descolonização que a Revolução
portuguesa levou a cabo depois do 25 de Abril. É Kissinger que, em visita a
Jacarta juntamente com o presidente Ford, dá luz verde ao governo indonésio
para invadir Timor-Leste (dezembro de 1975) por forma a impedir que o país se
tornasse numa “Cuba do Sudoeste Asiático”. Já tinha feito o mesmo poucos meses
antes com o Sara Ocidental, dando o beneplácito dos EUA à invasão marroquina.
Quando Timor-Leste se tornou independente, depois de 25 anos de apoio
norte-americano à ocupação indonésia e os 300 mil mortos que ela provocou,
Kissinger fazia parte do júri que concedeu a Xanana Gusmão um prémio internacional.
No discurso de entrega do prémio, escreveu que "os americanos podem
orgulhar-se do papel que o seu país desempenhou no culminar destes
acontecimentos".
Poucos meses depois, em 1976, perante
a intervenção cubana para salvar a independência de Angola ameaçada pela
invasão sul-africana com o apoio norte-americano, Kissinger terá ficado
“apoplético” e propôs o bombardeamento de Cuba no que seria um gesto
que, como em 1962, poderia simplesmente provocar uma confrontação nuclear.
O mais inconcebível de toda a sua
biografia foi ter recebido, em conjunto com o negociador vietnamita Lê ĐứcThọ ,
o Prémio Nobel da Paz em 1973, por ter assinado o acordo de Paris e, segundo a
Academia Nobel, ter "acabado com a guerra e restaurado a paz no
Vietname". Não só Thọ rejeitou o prémio, lembrando ao mundo que continuava
a não haver paz no Vietname (a retirada dos EUA só se dará em 1975), como dois
membros abandonaram o Comité Nobel em protesto. Como disse o compositor e
humorista Tom Lehrer, "a sátira política tornou-se obsoleta quando Henry Kissinger
recebeu o Prémio Nobel da Paz".
Para Tony Blair, “se é possível que a
diplomacia ao seu mais alto nível seja uma forma de arte, Henry era um artista”
(Expresso, 1/12/2023). Só Blair, outro com pesadas culpas no cartório, para
dizer coisas destas... Não. A melhor síntese de todas é o título do artigo que a Rolling Stone publicou: "Henry Kissinger, o criminoso de guerra
amado pela classe dominante da América, finalmente morre".
O autor é colunista do PÚBLICO e
escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2023/12/02/opiniao/opiniao/kissinger-amado-criminosos-guerra-2072293
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