As televisões adoram congressos partidários. O líder representa um papel de clown e suscita dos seus adversários respostas igualmente clownescas.
1 de Dezembro de 2023, 10:30
As televisões adoram congressos
partidários e os congressistas adoram as televisões. Tão grande amor estaria
condenado a desvanecer-se se não fosse estimulado por um imaginário erótico
comum, que a ambos excita. A fonte da excitação não é sempre a mesma, muda com
o tempo, de congresso para congresso, de partido para partido.
No congresso
do PSD, a grande fonte de excitação a alimentar uma demagógica dilatação e
endurecimento do discurso do líder foi o grotesco. Entendo aqui por grotesco a
atitude e o discurso que, numa versão ainda tímida, ensaiam uma mimese da
carnavalização da política, tal como ela tem sido exercida por uma nova
categoria de políticos-palhaços que conquistaram a governação em vários países:
o último da série, aquele que eleva o grotesco ao seu mais alto grau, é o
recém-eleito Presidente da Argentina. Essa atitude clownesca não se manifesta
só no discurso, mas também numa gestualidade patética.
Ainda não temos isso por cá, mas,
tal como muitas outras coisas de que nos orgulhávamos de não ter acabaram por
chegar atrasadas e em força, já ouvimos os seus passos ao longe, a correr para
nós. Uma das aproximações do grotesco deu-se neste fim-de-semana, num cenário
de espectáculo: o congresso. Aí, o líder proclamou perante o seu auditório, mas
para que todo o país ouvisse (a relação amorosa com a televisão e os media em
geral é, por definição, pública), que “o mais fanático defensor do gonçalvismo”
se chama “camarada Pedro e tem uma Cinderela chamada camarada Mortágua”. E
disse mais coisas no mesmo tom.
Entramos assim em pleno domínio
do cómico. O líder representa um papel de clown e suscita dos
seus adversários respostas igualmente clownescas. Talvez ele se tenha
convencido de que representar esse papel é produtivo e eficaz na comunicação
fusional com os eleitores. Mas se já se impôs a alguns líderes políticos esta
convicção é porque nos estamos progressivamente a aproximar do mundo tirânico
da palhaçada, à espera de que se instale definitivamente o que um escritor e
ensaísta francês chamado Christian Salmon caracterizou e analisou como “poder
grotesco”, em expansão.
Este poder grotesco faz parte da
mesma constelação a que pertence a vaga de violência, vinda sobretudo da
extrema-direita, que se está a difundir por todo o lado. Há um processo
assustador de regressão em curso, de comportamentos colectivos já excluídos da
nossa “civilização” e contra os quais nos julgávamos imunizados, que tem dado
azo a analogias com o percurso que conduziu aos fascismos. Estas comparações
entre épocas históricas diferentes merecem sempre muitas reservas, mas também
incitam a muitas cautelas.
Ousei escrever a palavra
“civilização” não para a opor, como se faz muitas vezes, à barbárie (na
verdade, já Burckhardt, o historiador suíço, mostrou, no final do século XIX,
que tal oposição era destituída de pertinência), mas para lembrar uma palavra de
que o Presidente francês Emmanuel Macron se serviu, num discurso pronunciado no
final de Maio, para fazer um diagnóstico da “doença” que, segundo ele, está a
afectar não apenas a França: décivilisation. Tal palavra suscitou
um enorme interesse e imediatamente toda a imprensa foi procurar a sua origem.
Não foi difícil: ela vem
do sociólogo Norbert Elias, o autor de O Processo Civilizacional,
que no seu último livro, publicado em 1990, pouco antes da sua morte, estudou a
emergência do nazismo, na Alemanha, como uma ruptura no processo da civilização
(esse processo de progressiva pacificação do espaço social, desde o final da
Idade Média). Esses “estudos sobre os alemães” (assim reza o título do livro)
pode ser classificado, no seu género, como uma psicologia histórica. É aí que
Norbert Elias dedica um capítulo ao “colapso da civilização”, à
“descivilização” (Entzivilisierung).
Acontece, porém, que essa palavra
já tinha servido, em 2011, para título de um livro do escritor de
extrema-direita Renaud Camus, o autor da teoria xenófoba da “grande
substituição” a que, segundo ele, está a ser submetida a “civilização”
francesa. As críticas que então foram então feitas a Macron lembravam que a
palavra tinha acumulado um outro sentido que não era o do estudo de Elias. Ela
vinha carregada com um sentido que, no fundo, legitimava a vaga de violência e
a emergência das sombras negras que pairam sobre a Europa e o mundo. O
grotesco, para além dos líderes partidários e congressos, é a inclinação
funesta deste nosso tempo.
Livro de Recitações
“Assassinadas 25 mulheres em
Portugal até 15 de Novembro”
In PÚBLICO,
22/11/2023
Para este crime, não há ainda um
nome fixado para o designar: ora se escreve “femicídio”, ora se escreve
“feminicídio”. Mas esta hesitação no nome significa que tal crime só
recentemente foi categorizado. “Homicídio”, que poderia designar o assassínio
dos homens pelas mulheres, designa o assassínio de qualquer ser humano,
independentemente do género (oh, a universalidade masculina!). E parece que
rara é a utilização da palavra “androcídio”.
Trata-se pois de um problema que
tem a sua origem quase exclusivamente no universo masculino. Esta doença que
leva os homens a matar as mulheres, quase sempre por ciúmes e porque acham que
só as aniquilando redimem a perda do poder de propriedade sobre elas, é um
flagelo em todo o lado.
Por estes dias, um crime hediondo
de “feminicídio” tinha sido perpetrado em Itália por um “bravo ragazzo”
de 22 anos, de boas famílias, o que pôs muitos cronistas, nos jornais, a
dissertar sobre a masculinidade, sobre as suas fraquezas que se manifestam na
prática de crimes hediondos, às vezes seguidos de suicídio. Mas porque é que
eles não decidem suicidar-se antes de matar?
https://www.publico.pt/2023/12/01/culturaipsilon/cronica/politica-grotesco-2071843
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