OPINIÃO
Feitas as devidas proporções de tempo e população total, por cada ucraniano morto morreram já 246 palestinianos em Gaza. Parecem poucos?
Manuel Loff
27 de Dezembro de 2023, 7:00
2022, 2023. Dois anos, duas
guerras. Há um ano, com a propaganda macarthista, a preto e branco, a propósito
da guerra na Ucrânia, já se percebia bem que, na narrativa
dominante ocidental, a vida não tem o mesmo valor dependendo de quem a perde.
Era assim no colonialismo, é assim hoje. Um ano depois, os mesmos governos
ocidentais que asseguravam ver genocídio no comportamento das tropas russas (9,7 mil civis mortos nos
territórios sob controlo da Ucrânia em 19 meses de guerra)
ainda não viram nada que os levasse a denunciar Israel (como denunciaram a
Rússia) no Tribunal Penal Internacional, depois de as tropas israelitas terem
matado o dobro (19,7 mil) de palestinianos em Gaza só
nos primeiros 2,5 meses desta nova campanha de represália, de terrorismo de
Estado. Feitas as devidas proporções de tempo e população total, por cada
ucraniano morto morreram já 246 palestinianos em Gaza. Parecem poucos?
Para Biden, Von der Leyen (ou para
António Costa), quanto custa uma vida palestiniana? Quanto custa a vida de
milhares de crianças, das centenas de profissionais de saúde, jornalistas,
trabalhadores e voluntários das agências das Nações Unidas e das ONG humanitárias
que, todos os dias, as bombas do ocupante israelita eliminam com, até agora,
total impunidade? Face a todas as provas de um genocídio em curso contra um
povo sujeito a ocupação, nenhum governo da NATO ou da UE impôs sanções a Israel
(que viola o direito internacional há 75 anos e ocupa ilegalmente territórios
palestinianos há 56) como impôs à Rússia ao fim de horas da invasão de
território ucraniano. Não se abriram de par em par fronteiras para acolher
refugiados palestinianos como se abriram para milhões de ucranianos, não se
romperam relações comerciais, não se montou esquema algum de boicote cultural
contra Israel como, de forma precipitada e desproporcionada, se montou contra
escritores, artistas ou orquestras russas – pelo contrário, a campanha de
boicote (BDS) que desde há anos está organizada contra a ocupação israelita é
criminalizada em vários estados ocidentais (EUA, Alemanha) por ser
“antissemita”!
Gaza ilumina com uma luz muito crua
a nossa visão ocidentalista, preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o
habita. Podem os israelitas matar, sequestrar (prender sem acusação nem
julgamento é o quê?), violar todos os dias direitos humanos, que os Estados
NATO não deixam de lhes fornecer, desde há décadas, apoio militar. Se se
aplicasse a mesma retórica que se aplica na Ucrânia, não deveriam os mesmos
Estados enviar armas para apoiar os palestinianos e o seu direito à
autodeterminação, reconhecido em todos os tratados e resoluções das Nações
Unidas?
Gaza ilumina com uma luz muito crua a nossa visão ocidentalista,
preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o habita
Gaza proporciona todos os dias, de
forma trágica, esse permanente “momento da verdade” de que falou Guterres. Hoje
percebemos melhor até onde está a chegar a censura e o ataque à democracia que
se sustenta neste discurso “choque de civilizações” que Israel tem imposto aos
seus aliados ocidentais. Um dos mais extraordinários episódios é o da censura
da escritora judia Masha Gessen. Por ter considerado “o termo 'gueto' mais
adequado (...) para descrever o que está a acontecer em Gaza agora. O gueto
está a ser liquidado” (The New Yorker,
9/12/2023), uma fundação ligada aos Verdes alemães suspendeu a
entrega do prémio que lhe havia concedido. Teve sorte: por muito menos,
professores têm sido expulsos das suas universidades, manifestantes presos,
trabalhadores despedidos.
Os governos dos países NATO, na sua
tradicional arrogância, falam como se pela voz deles falasse a “comunidade
internacional”. Na sua descarada duplicidade, esta voz é mesmo só deles, e o
que se ouve é pura hipocrisia. Até um antigo assessor para questões de
segurança do governo israelita percebeu que “a Palestina ocupa atualmente um espaço simbólico.
É uma espécie de metamorfose de rebelião contra a hipocrisia ocidental, contra
esta inaceitável ordem global e contra a ordem pós-colonial” (David Levy, Guardian,
26/12/2023). E contra a crescente “israelização” a que assistimos do Ocidente:
consenso nacional-religioso contra o “inimigo” interno, paranoia racista e
muros contra os inimigos da “civilização”. A receita da extrema-direita.
O autor é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2023/12/27/opiniao/opiniao/gueto-liquidado-2074897
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