sábado, 23 de dezembro de 2023

José Pacheco Pereira - O que aprendemos no nosso gabinete de curiosidades

 OPINIÃO

Nós sabemos coisas que ninguém sabe, e isto pode parecer arrogância, mas não é.

José Pacheco Pereira

23 de Dezembro de 2023, 6:34

Hoje é dia de festas e como o mundo não está para festas aqui vai outra coisa de menos sinistro. No Arquivo Ephemera costumamos dizer que não há um momento de aborrecimento, never a dull moment. Mas, mais do que isso, aprende-se imenso. Nós sabemos coisas que ninguém sabe, e isto pode parecer arrogância, mas não é. Tem que ver com o que recebemos, estudamos e estimamos. Eis alguns exemplos.

Vida de um boxeur

Sabemos, nós, os “de cima”, como era a vida de um boxeur que vem “de baixo”? Como eram e quem eram os praticantes de boxe em associações populares? Sabem qual era a farmacopeia de um boxeur? Sabem como se recrutava para empresas de segurança há 40 anos?

Nós sabemos, porque temos um espólio de um boxeur.


Diário de uma prostituta

Um diário de uma prostituta, de casa e não de rua, ou de uma “trabalhadora do sexo”, como agora se diz, o que é que regista? Nomes dos clientes, local dos encontros, ementa de “serviços” com os preços detalhados, algumas observações sobre a actividade. Mas também poemas e desenhos.

Nós sabemos, porque temos um diário de uma prostituta.

Inventar o colchete português

João Paulo Martins (1870-1960), operário modelo, era serralheiro mecânico numa fábrica de colchetes. A fábrica trabalhava com colchetes com patente inglesa, o que lhe desagradava, porque achava que era capaz de fazer melhor. Propôs à administração uma nova técnica de fabrico, mas colocou como condição ser ele a concretizá-la. Recebeu um não. Não se ficou e num fim-de-semana alterou as máquinas e passou a fazer um novo tipo de colchetes. Recebeu uma dura repreensão, mas mais tarde percebeu-se a qualidade do colchete nacional e foi registada uma nova patente.

Nós sabemos, porque temos o seu espólio.

Biblioteca de um bruxo e TSF

Uma biblioteca com cerca de 150 livros que veio de França, pertencia a um astrólogo, alquimista, bruxo, que nos anos 20-30 do século passado se dedicava a estas práticas nos arredores de Paris entrou no Ephemera. Para além das notas manuscritas, este discípulo de Fulcanelli tinha livros sobre horóscopos em cavalos e em plantas, magia negra (o que me permite dizer que é um risco meterem-se comigo e connosco, porque podem ficar transformados em ratinhos), e… livros sobre a nascente TSF, a Telegrafia Sem Fios. Porquê? Porque se percebe que quem acredita que um meio qualquer invisível de influência podia ir de uma constelação do Zodíaco até um humano ou uma árvore, que acreditava na telepatia e na telequinésia achava que a ciência que permitia a TSF demonstrava o papel de um mundo de ondas invisíveis que estavam à nossa volta. A TSF legitimava com uma aura de ciência, o que o nosso bruxo praticava.

Nós sabemos, porque temos a sua biblioteca.

Como se tem uma profissão altamente especializada sem manuais

Em certas profissões especializadas com uma forte componente manual, mas que implicavam também lidar com máquinas, tornos, fresas, engates de vagões, peso e dimensão, prensas e resistência de materiais, soldaduras, com uma forte dimensão de conhecimento de física e de matemática, em particular de trigonometria, a formação de operários implicava manuais técnicos, tabelas e quadros, gráficos, desenhos e esquemas de peças de máquinas, etc. A formação, mas também a execução ou a operação com máquinas, como, por exemplo, locomotivas, vagões, engates de composições, etc. Sabem como é que se lidava com estes problemas quando não havia manuais disponíveis para acompanhar, por exemplo, um operário ferroviário? Fazendo-os manuscritos em pequenos cadernos escolares de linhas, com páginas e páginas de desenhos e números, copiados de algum manual impresso, num trabalho enorme de um bom profissional, sem apoios e sem ser pago.

Nós sabemos, porque temos alguns desses cadernos.

Podíamos acrescentar muitos mais exemplos. Como era a vida de um rapaz solteiro numa pensão nos anos 30. O que era ser cega e viver em instituição de assistência nos anos 40. Como é que um pai, operário, comunista, preso, nos anos 50, falava com a filha ainda criança em esperanto. A história de uma noiva anticlerical que queria casar pelo civil mas com um vestido de casamento “diferente dos da Igreja”. Como é que um administrador de posto numa localidade do interior de Angola, próxima da fronteira do Congo, passa de ter o seu nome próprio Tostoi para ser o escritor “Tolstoi Lusitano”. Como era volumoso um catálogo de mordidelas para administração da vacina da raiva, e quem eram os “mordidos”.

Isto são “curiosidades” em sentido pejorativo, em vez dos nobres espólios e arquivos dos “de cima”? São e são um grande motor para saber de muitas vidas e experiências que não estão em lado nenhum, a não ser no Arquivo Ephemera. Ah! E também sabemos como era a decoração das mansões dos mais ricos…

Por isso, não há de facto, um minuto de aborrecimento.​

O autor é colunista do PÚBLICO

Historiador

https://www.publico.pt/2023/12/23/opiniao/opiniao/aprendemos-gabinete-curiosidades-2074683

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