sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Poesia de Manuel Gusmão

* Manuel Gusmão



 aprende a falar – diz
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos. põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. Então falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue, de assombro em
assombro.
CANÇÃO PORQUE (NÃO) MORRES
Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido – aquele
era o último e depois que alguém viesse
fechar a porta contra o som do mar.
– Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
– Ah e não esqueças: – deitar fora a chave
Canção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?
Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
– já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós-
quem falou agora? – Que importa quem falou?
– Que importa? Nada e nonada. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasses quem
tivesse chamado.
Canção, o teu sopro é quente
e têm sede os teus ventos, esses animais
do ar que por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até à flor do sangue.
depois, as palavras em que te perderas serão
cinzas sobre o mar e espuma suja
entre as rochas. Que atraso ou afecto
te prende ainda a esta margem
Por quem esperas tu
canção ainda
agora
que já por todo o céu
a terra nos esqueceu
Morresses, agora, canção
enquanto corres ainda pelo sangue
de quem escuta – e
morrerias no fulgor último
que ao fundo, no horizonte
da linguagem,
da própria linguagem
se afasta já, e abandonando vai
os seus bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza dos migrantes derradeiros;
queimando página a
página
os últimos barcos.
ELOGIO DA TERCEIRA COISA
Entre mim e ti há a terceira coisa
aquela que nos põe ao alcance da mão
os nomes todos das coisas e as coisas sem nome
quando a multidão sagrada dos pronomes pessoais nos
permite dizer nos contra o tempo e o vento
Nós que aos cinco sentidos acrescentamos os outros
Nós a sensibilidade que imagina o comum
quando uma multidão deixa de ser
um rebanho de escravos para começar a ser
uma assembleia de humanos livres
de pé no chão da terra discutimos o que fazer
pelas mãos em concha bebíamos a água
onde a luz do sol cintila irisando-a
nós que para além de ti e de mim somos
a terceira coisa o fantasma o espectro
que lhes continua a assolar o mundo
a terceira coisa : a promessa sem garantias
a invenção do incomum que partilha o comum
o comunismo que vem connosco
e para além de nos recomeça.
Manuel Gusmão in Três Poemas em Memória de Álvaro Cunhal

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