segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Carlos Coutinho - Divagação salvífica

`Carlos Coutinho

DÚZIA e meia de pessoas à mesa. Isto não é uma sala de jantar familiar - é um refeitório de comilões. Vou tentar preservar-me da voracidade geral e tentar ficar-me pelos queijos e queijinhos das entradas.

A bacalhauzada com batatas, couves e broa, ao gosto dos anfitriões, corre bem com um espumante rosé - um reserva talvez pensado para a classe média endinheirda.

Dois goles na altura própria, bem antes da sobremesa ultravariada em que não toquei. E ninguém viu que eu já tinha dado por cumprida a minha missão nesta consoada. Mais exatamnte, nesta comezaina desbragada.

Como raramente alguém olha para mim ou me interpela, ninguém pôde aperceber-se de que o meu pensamento andava longe, pelas faldas do Marão, com pinarras e garranos à solta, com águias e aibões no ar, com muita miséria e muita superstição na minha aldeia e nas outras todas à volta. Do que havia agora de me lembrar?

De sentidos proibidos, das palavras castiças que caíram em desuso, de estratégias pedagógicas, etc.

Chegada a troca das prendas, apareceu de tudo – do útil ao fútil, barato é que nada. E o meu pensamento voltou para o tempo quem nem sei como restaurar na memória.

Vejamos.

“Nunca as mãos lhe doam”, dizia-se antigamente à pessoa que, sem recorrer aos tribunais para meter alguém na ordem, ia às fuças desse alguém, com aparente justiça e sentido da urgência disciplinar.

Por exemplo, a mãe ou o pai que tivesse afinfado uns tabefes bem dados na cara ou um valente cascudo no cachaço de um filho malcriadão ou ratoneiro de cozinha ou de salgadeira, estaria a caminho de merecer o respeito de toda a população.

Hoje – e com alguma razão – dir-se-ia que se trata de um caso típico de violência doméstica, ou, pior ainda, de uma situação deplorável de justicialismo arcaico.

Enfim, sem perorar por conta própria, sempre direi como um certo Luís Vaz que só via de um olho: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…”

Tenho, no entanto, a certeza de que a minha avó paterna nunca aceitaria que, por exemplo, se desse o nome de Sicó a uma serra, porque no tempo dela sicó era o nome de um instrumento musical de percussão com a forma quadrada, ou, por identificação cultural, a dança ao som dessas coisas de antanho.

E muito menos aceitaria que o nome de Arganil fosse dado a uma simpática terra, já que podia confundir-se com arganel, aquele arame que se espetava e dobrava no nariz de um leitão já crescidote que se acabasse de ir comprar ao Viso, para que ele não desatasse a fossar na pocilga, então conhecida por loja do reco.

Mas é a tal coisa – mudam-se os tempos… E a forma de consoar.

 2023 12 25


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