sábado, 17 de maio de 2008

40 anos de 1968: ''distopias ficam, utopias permanecem*



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13 DE MAIO DE 2008 - 17h11


por Diorge Alceno Konrad*

Em livro lançado há alguns anos, o jornalista Zuenir Ventura caracterizou o ano de 1968 como o ano que não terminou.[1]


Uma análise mais aprofundada daquele processo histórico deve considerar o que realmente se esgotou nos episódios da época e o que ficou para a lembrança dos 40 anos dos movimentos ou para o futuro das diferentes sociedades. Para isso temos que entrar na “memória de 1968. Densa e marcante. Exemplos de luta que inspiram o estudo de seus erros e acertos. Trajetórias que merecem análise, por tudo o que pretenderam, embora quase tudo esteja por conquistar, ainda hoje”.[2]

É cada vez mais necessário o rompimento com duas tradições de interpretação que no fundo se baseiam na mesma forma de ver o passado: a primeira delas é a crítica conservadora, na qual se vê o fracasso de 1968 como o fim das utopias ou o fim das possibilidades de transformação revolucionária das sociedades; a segunda delas é o saudosismo de setores de esquerda que busca nos anos 60 em geral, e de 1968 em particular, uma volta a um passado perdido.

No primeiro caso, o ano de 1968 é referência para estruturar uma visão de mundo de tentativa de negação da História, dando a ela um fim, acompanhada de propósitos que estabelecem também o fim das ideologias, o fim das classes sociais e suas lutas. Essa perspectiva, permeada por um recorte irracionalista, baseada em percepções pós-modernas ou pós-estruturalistas, parte de um paradigma de relativização absoluta da verdade e do conhecimento.

No segundo caso, o ano de 1968 é referência para determinar uma visão de mundo onde uma forma de romantismo estabelece uma idealização de um passado perdido que é perpetuado, não servindo de referência crítica para a possibilidade de transformação do presente.

As visões citadas acima se baseiam em visões conservadoras e tradicionalistas de sociedade, sendo um contraponto as mudanças que a realidade atual exige.

A história da formação sócio-econômica gaúcha, por exemplo, tem sua tradição de volta a um passado perdido, quando as classes dominantes rio-grandenses, diante da crise da pecuária no último quartel do século 19, idealizaram o “gaúcho” ou gaudério marginal do século 18, transformando-o na identidade de todos os nascidos no Rio Grande do Sul. Dessa perspectiva se criou uma história mítica: de uma suposta escravidão amena; de peões e patrões vivendo em harmonia social; de campos (latifúndios) sem aramados e que devem ser mantidos para todo o sempre; de “centauro dos pampas” valorizado por uma cultura patriarcal e machista; de um passado de lutas históricas pela fronteira que naturaliza e determina para sempre um estereótipo de gaúcho tão ao gosto dos que perpetuam formas de dominações sociais.

A formação social brasileira tem outros dois exemplos: as obras românticas indigenistas criaram uma espécie mítica de brasileiro original, modificando o seu conteúdo e a sua forma, voltando a uma idealização de um passado perdido pré-Cabralino.

Já as obras de Gilberto Freyre idealizaram a sociedade nordestina e brasileira, ao criar através de Casa-grande e senzala uma teoria mítica e conservadora de uma pretensa democracia racial na produção açucareira colonial e nas formas sociais posteriores, onde senhores e escravos, trabalhadores e usineiros representam dois lados de um mundo indivisível e complementar.

Por isso, a questão que se põe não é a negação histórica de 1968. Ele foi de importância ímpar para o Brasil e para o mundo.[3] Mas deve-se compreender que os acontecimentos de 1968 se deram em um momento de bipolaridade mundial com diferenças de contextos nos países capitalistas e nos países socialistas.

Nos primeiros, os trabalhadores e setores da pequena burguesia lutavam por melhoria de seus padrões de vida através da busca de inserção no mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que, principalmente por parte da juventude, se criticava a massificação do consumo e a concorrência individualista que estabelecia a exclusão de setores da população como os negros, as mulheres, os indígenas, etc, ao defenderem, entre outros a questão da extensão dos direitos civis. Exemplo desse processo foram as greves dos trabalhadores franceses no contexto do Maio de 1968 ou a luta pelos direitos civis dos negros, liderada por Martin Luther King nos Estados Unidos, acompanhada pela radicalização da causa pelos Panteras Negras ou pela liderança de Malcolm X. No segundo, aparecia a crítica as restrições de participação política e a um modelo burocrático de socialismo, como foi o caso da Primavera de Praga.

Nesse contexto, salienta-se a luta dos movimentos estudantis em países como Brasil, México, Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Guatemala, Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Tchecoslováquia, Suécia, Turquia, Argélia, Marrocos, Tunísia e Japão, os movimentos de contracultura na Inglaterra, Alemanha, França, Brasil e Estados Unidos, os movimentos contra a intervenção militar no Vietnã pelos Estados Unidos e os movimentos pela descolonização da Ásia e da África.

Assim, os anos 1960 ou 1968 não podem ser vistos de forma homogênea em todos os países. Se não estaremos negando a importância daquele momento histórico ou superdimensionando-o. Dessa forma não se cai em visões reducionistas e conservadoras, como aquelas criticadas anteriormente. Muito menos se referenda visões apologéticas e midiáticas que superlativam o maio francês. Não esquecemos que a radicalidade das barricadas de Paris produziram apenas um estudante morto, enquanto que apenas na praça de Tlatelolco, na Cidade do México, em outubro de 1968, se deu o mais violento acontecimento daqueles tempos latino-americanos, através do massacre que resultou em 26 estudantes mortos, 300 feridos e mais de mil aprisionados. Mas disso pouco se fala nos dias atuais.

Enquanto isso, mesmo no Brasil, no combate à reacionária ditadura civil-militar, iniciada desde os primeiros momentos de 1964, quatro anos antes, foram centenas e centenas de mortos, desaparecidos, torturados, exilados, depostos, perseguidos.

No caso do Brasil. 1968 tem significado extraordinário para os estudantes brasileiros (vide o assassinato do estudante Edson Luiz e a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro) e os movimentos políticos da época (principalmente na luta armada e clandestina contra a Ditadura). Mas devemos entender o contexto da época e aprender com eles. No Brasil, as expressões políticas, sociais e culturais do período estavam intrinsicamente relacionados com a realidade de um país envolvido em profundos contrastes. É evidente que parte destes contrastes permanecem até hoje, mas mudaram na forma e na qualidade. Para os que queriam mudanças, o momento era de busca de uma cultura popular aliada à procura de uma identidade nacional no rumo de uma transformação revolucionária para o Brasil. Para os que não queriam, tratava-se apenas de reordenar o país dentro de um modelo de desenvolvimento capitalista associado e dependente sustentado pela aliança conservadora de civis e militares em conjunto com o capital externo, principalmente norte-americano.

Por outro lado, o Maio francês não pode ser ensimesmado. Como não vê-lo influenciado pela Revolução Cultural Proletária da China de 1966 e por um redimensionamento do maoísmo. O combate ao colonialismo e ao neocolonialismo, sobretudo questionando a invasão francesa e norte-americana no Vietnã é anterior aos acontecimentos franceses. Afinal, a Primavera de Praga, iniciada em abril de 1968, não é cronologicamente anterior?

Ainda é preciso entender porque o Maio da França tornou-se um ano mítico, porque “1968” foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da época de uma maneira irreversível?[4]

Mas é um erro pensar 1968 como um ano fundador dos movimentos sociais ecológicos, feministas, anti-nucleares, dos movimentos negros e homossexuais.

Eric Hobsbawm, em Era dos Extremos, ao analisar os reflexos dos anos 1960, considera que “a revolução cultural de fins do século 20 pode assim ser mais bem entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais”.[5]

Podemos considerar que as visões irracionalistas reforçadas a partir de 1968, principalmente expressadas em segmentos da “Nova História” ou da “Nova Filosofia”, apresentam, nestes tempos neoliberais, boa parte destas perspectivas. Quando se dão as derrotas de 1968, diversos setores intelectuais passam a criticar as transformações globalizantes de mundo e as visões totalizantes de História. Reflexos dessa linha de interpretação são as proposições de visões fragmentárias de mundo, as quais entendem que o conhecimento só pode ser apreendido nas especificidades. Em decorrência, as ações dos movimentos sociais só poderiam se dar no particular, ou nas “tribos sociais”, como considera o sociólogo francês Michel Mafessoli. Estaria estabelecido o fim da utopia, entendida aqui como uma sociedade a ser construída.

A questão final e central que se coloca é: 1968 representou o fim das utopias, sendo um movimento emancipatório do que vivemos hoje. Não se pode negar esta relação, pois os discursos do pos-histoire estão aí para tentar estabelecer a fragmentação definitiva do conhecimento e a microscopia dos movimentos sociais, quando a resistência se daria apenas no âmbito da especificidade. No entanto, em momentos em que em nome de um suposto Estado de Direito se procura terminar com grande parte do direitos sociais e individuais dos trabalhadores e, mesmo assim, em todo o mundo, e em especial na América Latina, diversos setores da sociedade de colocam contra o avanço e as conseqüências do neoliberalismo, está novamente na ordem do dia a volta dos movimentos emancipatórios, no sentido utópico e transformador, a exemplo dos anos 60, sem repetir os erros daqueles tempos. Seria uma forma de conformismo absoluto crer que a única possibilidade de cidadania se restringisse a possibilidade de consumo dos produtos que o mercado tem a oferecer.

Para ultrapassar definitivamente os anos 1960, tem que se ir além da constatação de que aqueles tempos foram o início da crise da globalização centrada no modelo fordista de produção e acumulação. É fundamental considerar o poder do fetiche da mercadoria no capitalismo que pode transformar protestos mais ou menos despolitizados da contracultura e de outros setores sociais, como novas formas de consumismo. Enfim, a lógica que reconhece as diferenças, mas não muda o domínio do capital.

Nunca é demais deixar a pergunta: em tempos da chamada globalização, a quem interessa os discursos que reforçam a incognoscibilidade do real e a impossibilidade de visões globais de mundo? Também não é demais considerar que tais entendimentos são produto da crise de desenvolvimento dos anos 60, que permanecem no início do século 21, quando ainda temos movimentos sociais e políticos desarticulados, os quais não têm conseguido encontrar respostas para os seus dilemas.

Nunca é demais aprofundar sobre o espontaneísmo da “imaginação no poder”, da aparência de ruptura quando se “pedia o impossível” e da efemeridade histórica dos acontecimentos franceses, base material de muitas produções intelectuais idealistas, relativistas, individualistas e fragmentárias do pos-histoire, dos discursos da sociedade pós-industrial, do argumento do fim da sociedade do trabalho, do homem uni-dimensional marcusiano e, sobretudo, do anti-humanismo. Tudo isso poderia ser taxado de simplismo. Mas respondemos a isso com Luc Ferry e Alain Renault: “na verdade, é contudo a crítica do humanismo, do sujeito, da metafísica, da autonomia, da antropologia ou da verdade, que evidencia um impressionante e persistente simplismo”.[6]

Não é por nada que, 40 anos depois de 1968, aumenta a consciência de que hoje as contradições do desenvolvimento capitalista e neoliberal, em sua fase imperialista, ensejam novas rearticulações em torno do social e da grande política, em contraposição às saídas individuais e consumistas. Esta pode ser a retomada, em outros patamares históricos, da velha e tão nova utopia socialista.

Notas

* Este artigo é uma visão ligeiramente modificada e atualizada do artigo “1968: do passado para o futuro”. In. SCHERER, Amanda Eloína; NUSSBAUMER, Gisele Marchiori; DI FANTI, Maria da Gloria (orgs.). Utopias e distopias: 30 anos de maio de 1968. Santa Maria: Departamento de Ciências da Informação/Mestrado em Letras, 1999, p. 41-8.

[1] Ver - VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 14ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

[2] REIS FILHO, Daniel Aarão; MORAES, Pedro de. 68: a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988, p. 52.

[3] Para Patrick Rotman, cineasta e historiador, ‘nos anos pós-Maio de 68, a busca de si tornou-se uma prioridade e as questões relativas à intimidade entraram no debate político. Temas como a família, as relações entre pais e filhos e a liberação sexual entram na ordem do dia. O grande legado do movimento reside nestes questionamentos e transformações incorporados à vida cotidiana de milhões de indivíduos”. Cf. A geração das barricadas. In. História Viva, ano 5, n. 54. São Paulo: Duetto Editorial, abril de 2008, p. 39.

[4] Ver estas referências em SCHLLING, Voltaire. 1968: a revolução inesperada. In. http://www.zaz.com.br/voltaire/mundo/1968.htm. Acesso em 10/05/2008.

[5] Cf. HOBSBAWM, Eric. 1995. Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, p. 328.

[6] Ver FERRY, Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaios sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio, 1988, p. 264.




*Diorge Alceno Konrad, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP



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