LEI 10639/03
Marisa Antunes Laureano*
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“Resgatar a nossa memória significa resgatarmos a nós mesmos da armadilha da negação e do esquecimento, significa estarmos reafirmando a nossa presença ativa na história pan-africana e na realidade universal dos seres humanos..”
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Abdias Nascimento
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A Lei 10639/03 é o resultado de uma luta histórica. O movimento negro e todas as entidades que combatem o racismo e discriminação racial, de qualquer natureza, reconhecem que essas práticas são frutos do desconhecimento. A própria palavra preconceito na sua semântica já demonstra isso. Fazer um conceito prévio de determinada pessoa, que a denigre, resulta de um desconhecimento de suas verdadeiras características. E o povo negro sofre esse preconceito há séculos. E somente o conhecimento da história e de uma compreensão de sua cultura vai encaminhar a nossa sociedade para o rompimento com práticas preconceituosas e discriminatórias.
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Devemos primeiro entender a origem do racismo, pois este foi construído historicamente. O ser humano não nasce racista, ele aprende a ser. E na origem deste processo está o advento da sociedade capitalista. Quando a burguesia surge como classe detentora do capital, no século XV, ela estabelece novas formas econômicas que vão extinguir, aos poucos, as práticas feudais e erguer as práticas capitalistas. E dentro deste processo, de um novo modo de produção que surge, novas relações humanas passam a ser estabelecidas. O mercantilismo surge junto com a expansão marítima, onde os europeus, já não mais acreditando no mundo quadrado, passam a navegar e tentar encontrar novos caminhos para as índias. E neste percurso de conhecimento de outros povos (principalmente os africanos) os contatos são feitos ainda sem o racismo que virá quando surge o interesse pela dominação direta destes povos.
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O europeu navegador, que pensa-se descobridor de novas terras e vê-se como o centro do universo, cria então eurocentrismo. A Europa passa a ser o centro do mundo e os demais continentes devem ser submetidos, aprisionados, escravizados. A Europa passa a ter o sistema capitalista, que aos poucos vai dizendo para que veio e mostrando a sua cara cruel de exploração absoluta e de dominação, a lei do mais forte, o darwinismo social, a pólvora.
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Quando as novas terras passam a ser ocupadas com produções locais torna-se necessário uma mão-de-obra mais extensa. Neste caso, a mão-de-obra local vai ser usada (a indígena na América), mas a medida que esta mão-de-obra passa a ser exterminada e catequizada, concomitantemente, dois fatores vão levar à introdução da mão-de-obra africana na América: 1°) A afirmação da Igreja Católica Apostólica Romana da existência de alma nos índios e de não alma nos africanos. 2°) o lucro que o comércio de seres humanos passa a representar. (religião e dinheiro, eis a questão).
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O europeu tinha claro conhecimento da humanidade dos africanos, pois há muito tempo negociavam com eles, conheciam seus territórios, tinham uma relação histórica com os povos do norte da África. Por isso, para tornar escravo esse povo que tinha uma história muito antiga e rica (vide Egito Antigo), era necessário um argumento convincente. O religioso, que sempre funciona (até hoje), era o de que eles não eram cristãos (o termo cristão já sendo usado como sinônimo de bondade, pureza, dignidade, e as fogueiras queimando seres humanos.). Se não são cristãos, não têm alma, se não têm alma não são humanos. E caso sejam humanos são inferiores. Mas se são humanos por que são inferiores? Por que são diferentes, tem a pele escura, são pretos. O racismo começa a surgir. E o discurso foi tão forte e tão bem construído que predomina até hoje.
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Agora temos que desconstruir esse discurso da inferioridade do povo africano, para elevar à condição de igualdade todos os afro-brasileiros, que ainda hoje por sua origem são discriminados pelo aumento de melanina na pele.
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O primeiro passo para os professores, das mais diversas áreas, e não somente história, é trabalhar a origem dos afro-brasileiros, mostrar a África como ela realmente foi e como ela está hoje. O porque de sua desestruturação. Imagine que por 300 anos foram retirados deste continente todos os homens e mulheres em idade produtiva! Qual o resultado deste processo para o continente? Foi trágico. E não são os resultados que devemos trabalhar, mas as causas deles.
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A origem do ser humano também é muito importante ser trabalhada. Neste caso devemos saber que as questões religiosas vão sempre atravancar qualquer debate sobre racismo. As intolerâncias religiosas destroem civilizações, matam pessoas, denigrem comunidades, e até hoje não se encontrou uma paz de fato, pois em nome de deus os seres humanos ainda matam. Na hora de mostrarmos para nossas crianças a origem do ser humano isso deve ser feito de forma científica. E essa é parte mais difícil na hora de combater o racismo. Pois o professor não se vê como cientista e fica preso a convenções religiosas que não levam à emancipação humana, e sim ao atraso de pensamento.
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A trajetória do ser humano pela Terra e seu processo evolutivo demonstra claramente a origem africana do ser humano e a existência atualmente de uma única raça: a raça humana. A construção da idéia de raças diferentes, que ocorre fortemente no século XIX, surge para justificar a segunda fase da dominação dos povos africanos e, a partir de então, também os asiáticos. Não era mais possível a argumentação da existência de alma ou não, em um século que vai ser o século da ciência. Era preciso usar a ciência para justificar a dominação sobre outros povos. Assim surge a Eugenia, que por séculos vai fazer parte das ciências biológicas, e vai justificar a dominação pela inferioridade de determinadas raças. Então, é importante desconstruir isso também. A eugenia, ciência utilizada pelos nazistas, foi utilizada no Brasil até os anos 50 para prender pessoas ou afastá-las do convívio da sociedade. Os afro-brasileiros sofreram muito a marginalização a que foram colocados em função de sua diferença física, argumentada pela eugenia como passíveis de desvios de conduta.
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O Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de negros, tem metade da população assumindo a sua negritude (fora os que não assumem), mas também é um dos países mais racistas do mundo (segundo pesquisa feita pela ONU). Esse quadro tem que mudar, e como tudo é através da educação que devemos fazer isso:
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As escolas devem procurar trabalhar interdisciplinarmente a valorização da identidade negra, através do conhecimento da história da África e da cultura afro-brasileira. Existem diversas formas de trabalhos que podem ser realizados, principalmente na semana da consciência negra, que dentro da lei consta como data que deve ser destacada nas escolas com alguma atividade.
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Alguns exemplos de trabalho:
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História => A história da África, principalmente mostrando o quanto foram grandiosas as civilizações dos diversos países africanos, a começar pelo Egito.
Geografia => Mostra que a África é muito grande, que é um continente que abriga diversos países. Discutir com os alunos a diversidade étnica dentro do continente, e como a divisão forçada no século XIX origina até hoje disputas internas que não precisariam existir se não fosse a mão dos europeus ali.
Sociologia => Trabalhar as semelhanças sócio-econômicas entre os países africanos e o Brasil, ou outros países do terceiro mundo. Por que víamos somente negros na televisão quando passou o furacão nos EUA?
Ciência ou Biologia => Trabalhar a origem do ser humano. O continente-mãe que é a África. Por que mais ou menos melanina na pele? A caminhada dos homens pré-históricos pelo planeta e suas mudanças físicas para adaptação ao meio.
Matemática => Onde surgiu a geometria? Como os egípcios construíram as suas pirâmides? Quanto cálculo foi necessário para eles chegarem aquelas formas perfeitas? A engenharia que utiliza cálculos surge no Egito. Quando pesava cada pedra colocada na pirâmide? Quantas pessoas foram necessárias para carregar as pedras?
Língua estrangeira => Os professores de língua inglesa trabalham muito com música. Que tal trabalhar também a origem destas músicas? Trabalhar com músicas de origem negra, como o blues, o jazz, o rock, o reggae. Trabalhar com texto de líderes negros norte americanos, como o famoso discurso de 1963 de Martin Luther King: I Have a dream.
Português => As palavras de origem africana que existem na língua portuguesa são as mais diversas, é possível um debate sobre estas palavras, as quais os alunos conhecem. A literatura trabalhada deve mostrar a criança negra presente. Os poemas de Castro Alves são ótimos para trabalhos em aula, demonstrando além do talento do poeta a luta negra no Brasil.
Artes => Que tal construir máscaras africanas de forma criativa, discutindo a origem delas e o significado religioso das máscaras para os africanos, e também a transposição destes significados para outros símbolos de religiões afro-brasileiras.
Educação física => É importante trabalhar com os alunos o negro e o esporte. Desmistificar algumas coisas tipo: o negro joga futebol, mas não pode ser nadador. O negro pode ser qualquer coisa dentro do esporte. A Daiane dos Santos prova que o negro poder ser um ginasta, coisa impensada até bem pouco tempo, por ser este um esporte de meninas ricas. Mostrar a anatomia de cada um: a raça é a mesma, mas temos diferenças de cor, de força, em função de nossa origem pré-histórica e misturas étnicas ao longo dos séculos.
Ensino religioso => Talvez a disciplina mais importante para acabar com preconceito. O compromisso do ensino religioso deve ser o de debater identidades religiosas, respeitando a diversidade. E o estudo das religiões afro-brasileiras deve ser tratado em sala de aula para acabar com o preconceito que remonta ao período de escravidão. A umbanda, o candomblé, batuque, e as diversas formas de expressão religiosa de matriz africana são religiões brasileiras que tem sim uma matriz africana, mas a sua mistura, configuração final, foi dada no Brasil. É, depois dos cultos indígenas, a única religião realmente brasileira. Portanto, deve ser apresentada como tal.
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15/12/2005
* Professora e Mestre em História
http://www.atrincheira.com.br/artigos/mariLei10639.htm
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