Eliane Ventorim
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio
Resumo
Durante todo o período medieval o pensamento misógino ocupou os escritos clericais. A mulher era considerada um ser muito mais próximo da carne e dos sentidos e, por isso, uma pecadora em potencial. Afinal, todas elas descendiam de Eva, a culpada pela queda do gênero humano. No início da Idade Média, a principal preocupação com as mulheres era mantê-las virgens e afastar os clérigos desses seres demoníacos que personificavam a tentação carnal. A partir do século XI, com a institucionalização do casamento pela Igreja, a maternidade e o papel da boa esposa passaram a serem exaltados. Criou-se uma pedagogia da salvação feminina a partir basicamente de três modelos femininos: Eva (a pecadora), Maria (o modelo de perfeição e santidade) e Maria Madalena (a pecadora arrependida). Com base nesses três pilares analisei a concepção feminina contida no Livro das Maravilhas (1289) do filósofo maiorquino, Ramon Llull (1232-1316) que, através de exempla que demonstram situações cotidianas do século XIII, deixa transparecer sua posição quanto à misoginia, à santidade e aos possíveis caminhos para a salvação feminina.
Palavras chave: Mulher – Misoginia – Santidade – Ramon Llull.
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A participação e o lugar das mulheres na história foram negligenciados pelos historiadores por muito tempo. Elas ficaram à sombra de um mundo dominado pelo gênero masculino (BURKE, 2002: 75-79). Ao pensarmos no papel da mulher no medievo, esse quadro de exclusão se agrava ainda mais, pois além do silêncio que encontramos nas fontes, os textos que deixam transparecer o mundo feminino estão impregnados de uma forte carga misógina, a chamada aversão clerical (DUBY, s/d: 7-8).
Do século III ao XIII, tudo o que sabemos sobre as mulheres saiu das mãos de homens da Igreja, pessoas que deveriam viver completamente afastadas delas. Muitos clérigos consideravam-nas misteriosas, não compreendiam, por exemplo, como elas geravam a vida e curavam doenças utilizando ervas (DALARUN, s/d: 29). Dessa forma, a maior parte das autoridades eclesiásticas desse período via a mulher como um ser demoníaco, portadora e disseminadora do mal. Isso a tornava má por natureza e atraída pelo vício (PILOSU, 1995: 29-43). Esse desconhecimento da natureza feminina causava medo aos homens. Os clérigos se apoiaram no Pecado Original de Eva para ligá-la à corporeidade e inferiorizá-la. Isso porque, conforme o texto bíblico, Eva foi criada da costela de Adão (Gn 1,26-28; 2, 22-24), sendo, por isso, dominada pelos sentidos e pelos desejos carnais. Devido a essa visão misógina, acreditava-se que ela foi criada com a única função de procriar (BLOCH, 1995: 35-36).
A Igreja instituiu então o sacramento do matrimônio para saciar e controlar as pulsões femininas. No casamento a mulher estaria restrita a um só parceiro, que tinha a função de dominá-la, de educá-la e de fazer com que tivesse uma vida pura e casta. Somente assim as mulheres poderiam alcançar a salvação, pois mesmo que homens e mulheres estivessem inscritos nas fileiras dos agraciados com a vida eterna, só alcançariam a graça se vivessem dentro das regras cristãs (BÜHLER, 1996: 251-253). Fica claro assim que não é possível analisar o que as mulheres pensam de si próprias: o que nos foi transmitido pelas fontes são modelos ideais e regras de comportamento que nem sempre são positivos (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 138-142).
Para tornar eficiente a moralização desse gênero que apavorava e fascinava os homens, os pregadores lançaram mão de uma tríade feminina que foi o modelo básico para converter e salvar as mulheres: Eva, Maria e Maria Madalena (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 138-142).
I. Os três modelos feminino medievais
I.1. A Pecadora: Eva
No primeiro relato bíblico sobre a criação do Homem (Gn. 1, 27), Deus cria o homem e a mulher espiritualmente iguais, isto é, a sua imagem e semelhança. Sendo assim, o primeiro casal humano foi feito para ser companheiro um do outro, em igualdade de condições. Já no segundo relato, o mais utilizado durante a Idade Média para construir as idéias misóginas, Deus criou Adão e deu-lhe vida soprando em suas narinas, e da sua costela, Ele fez Eva:
Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem (Gn. 2, 21-22).
Os teólogos medievais se basearam nessa narrativa para desenvolver suas idéias misóginas de repulsa clerical e inferioridade da mulher por sua proximidade com as forças demoníacas. O primeiro argumento está na origem carnal feminina. Eva foi criada da costela de Adão, e por isso, a mulher estaria muito mais próxima de tudo o que é corporal e carnal, sendo mais suscetível ao pecado (BLOCH, 1995: 33-39). Enquanto o homem, por ter adquirido a vida por um sopro divino, estaria mais próximo a Deus e a tudo o que é espiritual. Além disso, Deus disse à mulher que ela seria a “auxiliar” do homem, o que a coloca em condição inferior a ele, transformando-a em sua servidora, com a obrigação de obedecê-lo.
Para fortalecer ainda mais esse sentimento de inferioridade, temos a narrativa do Pecado Original. Deus proibiu Adão e Eva de comerem da Árvore do conhecimento do Bem e do Mal, porém a serpente convenceu Eva a prová-la (Gn. 3, 1-7). Todos foram punidos por essa desobediência: a serpente foi condenada a rastejar e a ser hostilizada pela mulher. O primeiro casal humano foi expulso do Jardim do Éden. Adão foi condenado a cultivar o solo e retirar dele seu sustento. Já Eva ficou com a carga mais pesada da culpa, foi condenada a sentir dores nas gravidezes e ser dominada pelo marido. Essa condenação feminina serviu de instrumento para os teólogos medievais institucionalizarem o casamento e a moral cristã no matrimônio (BLOCH, 1995: 25).
Aqui também encontramos uma outra característica criticada nas mulheres pelos clérigos, a tagarelice. Afinal, foi por um pedido de Eva que Adão aceitou o fruto proibido, e por isso, ela foi considerada enganadora (BLOCH, 1995: 30). É nessa recriminação em ouvir o discurso feminino que se fundamenta a proibição da pregação feminina nos altos cargos clericais.
Todo esse anti-feminismo tinha dois objetivos básicos: afastar os clérigos das mulheres, institucionalizar o casamento e a moral cristã, moldada através da criação de um segundo modelo feminino, a Virgem Maria.
I.2. A Virgem: Maria
No século XII, intensificou-se o culto mariano na Europa Ocidental, assentado em quatro pilares: a maternidade divina, a virgindade, a imaculada concepção e a assunção (DALARUN, s/d : 41).
Maria foi a redentora de Eva, que veio ao mundo com a missão de libertar Eva da maldição da Queda (BLOCH, 1995: 91). Desenvolveu-se então a idéia de que Maria era a mãe da humanidade, de todos os homens e mulheres que vivem na graça de Deus, enquanto Eva era a mãe de todos que morrem pela natureza (DALARUN, s/d :42). Por isso, as mulheres eram exortadas a se manterem castas até o casamento, se a sua opção de vida fosse o matrimônio. Porém, a melhor forma de seguir o exemplo mariano era permanecer virgem e tornar-se esposa de Cristo, com base na idéia recorrente de que Maria era “irmã, esposa e serva do Senhor”. Eva simbolizava as mulheres reais, e Maria um ideal de santidade que deveria ser seguido por todas as mulheres para alcançar a graça divina, caminho para a salvação (DALARUN, s/d: 53).
A partir do século XIII, houve uma grande valorização da maternidade, Maria triunfou como mãe. Com base nesses dois dogmas ligados ao culto mariano, a virgindade e a maternidade divina, construiu-se o ideal de santificação de Maria, a Imaculada Conceição, que também teria sido concebida sem pecado. Por esse estado de santidade, após sua morte ocorreu sua Assunção corporal ao Céu, afastando-a de toda putrefação, e, consequentemente, da condição humana (DALARUN, s/d: 55).
Na iconografia ela se próxima da humanidade por seus trajes e seu luto pela morte do filho. Além disso, representa a virgindade, pois as virgens são consideradas mulheres perfeitas, tendo lugar ao lado dos santos no Paraíso, exaltando a superioridade da condição religiosa. Na terra são simbolizadas pelas religiosas que fazem voto de castidade (CASAGRANDE, s/d: 114).
A mulher que entrou para a ordo conjugati também deveria seguir o exemplo de Maria, um símbolo de maternidade e de fidelidade, que se tornam o caminho para a salvação feminina (CASAGRANDE, s/d: 121).
Mas como Maria era um ideal a ser seguido, inatingível pelas mulheres comuns, surge a figura de Maria Madalena, a pecadora arrependida, demonstrando que a salvação é possível para todos que abandonam uma vida cheia de pecados.
I.3. A Pecadora: Maria Madalena
No Ocidente, o culto a Maria Madalena surgiu na igreja de Vézelay, onde estariam enterrados os restos mortais da Santa (PILOSU, 1995: 133-143). Mas como as relíquias da santa teriam chagado até lá? O abade do santuário, Geoffroi, foi o difusor dessa idéia, no século XI. Em 1050 ele obteve a autorização para o culto à Madalena no mosteiro, e uma bula papal confirmou a existência dos restos mortais da santa naquela igreja em 1058 (DUBY, 1995: 42-43).
As “lendas”, construídas para serem lidas em forma de sermões, uniram as três narrativas bíblicas, citadas a seguir, e narram o que aconteceu a Madalena após testemunhar a ressurreição de Cristo. Madalena teria fugido da Palestina devido às perseguições do primeiro século, desembarcado em Marselha, com São Máximo, e participado da evangelização da Provença. Teve seu corpo sepultado em Saint-Maximin e, posteriormente, transferido para Vézelay (PILOSU, 1995 :135).
Para configurar a lenda, inseriu-se o exemplo de mais uma personagem: Maria, a Egípcia, uma prostituta arrependida que adotou uma vida eremita após o perdão de seus pecados (JACOPO DE VARAZZE, 2003: 352-354; DUBY, 1995: 43-44).
I.3.1. As descrições bíblicas
Três personagens bíblicas são utilizadas para descrever essa importante personagem feminina no credo cristão. A primeira referência está em Lucas (7, 36-50). Trata-se da pecadora que soube que Cristo estava na casa de Simão, o Fariseu, foi até Ele com um frasco de alabastro, banhou seus pés com suas lágrimas, enxugou-os com os cabelos, cobri-os de beijos e ungiu com perfume. Por demonstrar tanto amor a Cristo, ela teve todos os pecados perdoados.
A segunda narrativa também é feita por Lucas, onde encontramos a seguinte passagem: “Ele andava por cidades e povoados (...) Os Doze o acompanhavam, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios” (Lc. 8; 1-2).
O terceiro episódio se passa na casa de Simão, o Leproso. Nele a mulher que ungiu Cristo com um alabastro precioso, e que, segundo Ele, iria prepará-lo para o sepultamento, foi Maria, a irmã de Lázaro (Mt. 26; 6-13).
No século VI, o papa Gregório, o Grande, pregou em suas homilias que essas três mulheres eram uma só. Criou-se, então, a figura de Maria Madalena, a Santa que intercede pelos pecadores (DUBY, 1995: 32-34). E com essa imagem de mulher pecadora que se arrepende e segue o mestre até o calvário, Maria Madalena veio demonstrar que todos os pecadores são capazes de chegar a Deus (DUBY, 1995: 37).
A partir daí, foi concedido às mulheres, assim como a pecadora na casa do fariseu, o direito ao arrependimento, demonstrado pela prostração, humilhação e lágrimas, em oposição à tagarelice de Eva, que levou toda a humanidade ao pecado (DUBY, 1995: 38). Por isso, a pregação feminina deveria ser sem palavras, feita apenas pela mortificação corporal (L’HERMITE-LECLERCQ, s/d: 324).
II. O Livro das Maravilhas (1289)
A obra Félix ou o Livro das Maravilhas é uma das primeiras novelas medievais. Novela, em catalão medieval, tem o sentido de boa nova, novidade (GGL, vol. III, 1984: 436). Como afirmam muitos especialistas, a obra foi escrita por Ramon durante sua primeira viajem a Paris, entre 1287-1290, quando o filósofo esteve na corte do rei Felipe, o Belo (RAMON LLULL, OS, I; 1989; BONNER, 1989, p. 30). Nessa viagem, Llull foi à faculdade de Paris, onde expôs a sua Arte – um sistema de pensamento, aplicável a qualquer tema, que tem como base a existência verdadeira de Deus, e cujo principal objetivo era converter os infiéis –, ficou decepcionado, pois não foi compreendido pelos doutores de Paris, devido à sua maneira árabe de falar (COSTA). Isso está demonstrado no prólogo da obra:
Em tristeza e em languidez estava um homem em estranha terra. Fortemente se maravilhava ao ver como as gentes deste mundo conheciam e amavam tão pouco a Deus, que criou este mundo e com grande nobreza e bondade o deu aos homens a fim de que por eles fosse muito amado e conhecido. Este homem chorava e se lamentava por Deus ter neste mundo tão poucos amantes, servidores e louvadores. E, para que seja conhecido, amado e servido, faz este Livro das Maravilhas, o qual divide em dez partes, a saber: Deus, Anjos, Céu, Elementos, Plantas, Metais, Bestas, Homem, Paraíso, Inferno (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 19).
A novela tem características filosóficas, Llull pretendia simplificar e facilitar a compreensão de sua Arte, incompreendida pelos doutores de Paris, e sociais, pois ele pretendia reformar a sociedade, levando-a a um retorno aos moldes apostólicos do cristianismo primitivo, para o maiorquino, o mundo estaria perdido e poucos conheciam, amavam e serviam a Deus (CARRERAS Y ARTAU, 2001, vol. I: 630-631).
É uma obra de caráter enciclopédico e cosmológico, dividida em cento e vinte e um capítulos, inseridos em dez partes (Deus, Anjos, Céu, Elementos, Plantas, Metais, Bestas, Homem, Paraíso, Inferno), conforme a concepção de universo medieval (COSTA).
O conteúdo da obra é metafórico literário. O personagem principal, Félix, recebe de seu pai a missão de sair pelo mundo em busca de Deus, porque como o próprio Llull lamenta no prólogo da obra, que é autobiográfico, poucos são os homens que amam e conhecem verdadeiramente a Deus, e muitos dos que O conhecem menosprezam a morte de Cristo, pensado apenas nas coisas mundanas (BATLLORI, 1993: 13; COSTA).
Por isso, Félix recebe essa missão, sair pelo mundo em busca de Deus, amá-Lo e conhecê-Lo em todas as coisas, afinal, tudo foi criado por Ele e para que o homem Lhe fizesse louvor e honra. E, de forma bem poética, Félix foi enviado por seu pai:
– Amável filho, quase mortas estão a sabedoria, a caridade e a devoção, e poucos são os homens que se encontram na finalidade para a qual Nosso Senhor Deus os criou. (...) Vá pelo mundo a te maravilhar porque os homens cessam de amar e conhecer a Deus. (...) Félix foi obediente a seu pai (...) E, com a doutrina que seu pai lhe transmitiu, andou pelos bosques, montes e planícies, pelos lugares ermos e povoados, encontrou príncipes e cavaleiros pelos castelos e pelas cidades, e se maravilhava com as maravilhas que existem no mundo. Perguntava o que não entendia, explicava o que sabia e se metia em trabalhos e perigos a fim de que a Deus fossem feitas reverência e honra (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 20).
Por sua jornada Félix exercita constantemente o ato de se maravilhar (mirabilia), que é muito próximo ao ato de admirar (admiratio), observar as coisas que acontecem ao redor de si e descobrir o mundo criado por Deus, descobrir as coisas e o porquê delas, sendo este um dos grandes questionamentos de Félix ao longo de toda a obra (BONNER I BADIA, 1991: 138-140). Assim, o maravilhar-se de Félix era a forma de conhecer as coisas como um reflexo da divindade, um ato de admiração que muitas vezes leva o personagem à reflexão, fazendo com que o seu intelecto se eleve para Deus (COSTA, 2000). Essa é uma das formas que levam o homem da vida ativa para a contemplativa e da contemplação ao êxtase místico. Foi isso que aconteceu com o próprio Ramon no Monte Randa, quando recebeu a iluminação divina que lhe mostrou como escrever o melhor livro do mundo para realizar a conversão dos infiéis (RAMON LLULL, OS, 1989, I: 23; VEGA, 2002: 30).
II.1. Os exempla lulianos
Todo o Livro das Maravilhas se desenvolve por meio de semelhanças que vão respondendo as questões postas por Félix a um eremita, a um filósofo ou outras pessoas que ele encontra pelo caminho. Dessa forma, ele vai construindo seu conhecimento na busca de Deus, hora admira as pessoas que encontra por sua confiança, ora cai em tentação e quase é levado ao pecado por observar como o mundo está em mau estado e poucos amam a Deus (BATLLORI, 1993: 137).
Essas semelhanças utilizadas por Llull ao longo da obra são exemplos ideais, pois ele não retira nada da realidade em que vive, porém traça um perfeito panorama da sociedade medieval da época com suas divisões, profissões, tudo como o objetivo de reformar a cristandade (CARRERAS Y ARTAU, 2001, 630).
Essas características particulares diferenciam os exempla lulianos da forma corrente desse tipo de narrativa do século XIII. O exemplum medieval clássico é sempre constituído de uma narrativa verídica, tem como objetivo convencer a platéia com uma lição moral, e é destinado ao público iletrado, feitos para serem lidos durante os sermões (COSTA; SCHMITT, 1999: 144). Já os exempla lulianos tem um caráter atemporal e utópico, e o objetivo de reformar toda a Cristandade (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 630 BONNER I BADIA, 1991: 114-115).
Para este artigo, que tem como objeto os modelos femininos lulianos no Livro das Maravilhas, selecionei o Primeiro Livro, De Deus, no qual Félix procura saber: 1. Se Deus existe; 2. O que é Deus; 6. Da criação do mundo; 7. Da encarnação do filho de Deus em Nossa Senhora Santa Maria, onde encontramos exemplos relacionados ao caminho para a conversão e salvação das mulheres, e também para o ensinamento de uma vida casta por mulheres que já amam e conhecem a Deus (BONNER I BADIA, 1991: 135-136).
III. A imagem feminina no Livro das Maravilhas
O ponto de partida dos exemplos lulianos no Livro das Maravilhas está na busca do amor, que pode ser de dois tipos: um já vivido e agora renunciado – o amor da dama; e, outro, buscado com fervor, a Deus (VEGA, 2002: 20-21). A busca do amor da amada foi à direção vida de Llull antes da conversão – quando ele ainda era trovador na corte de Jaime II de Maiorca. Essa profissão se torna uma das mais criticadas e pecaminosas para Llull, pois era usada para conquistar as mulheres e levá-las ao pecado da luxúria (COSTA, 2005). A busca do amor a Deus, que dirigirá sua vida após a conversão, depois de um período de vida dissoluta, levá-lo-á a desprezar tudo o que estivesse ligado aos sentidos e pudesse afastá-lo de Deus. Essa será sua missão, amar a Deus e ensinar os outros a amá-Lo também. Para isso são necessários: a reforma da cristandade e a conversão dos infiéis (VEGA, 2002: 20).
A vida de Ramon se aproxima de certo modelo hagiográfico medieval, em que o convertido passa pelo arrependimento e pela conversão, processo que anula todo o passado do indivíduo. Mas toda conversão necessita do sofrimento e morte. Entendo como sofrimento, o reconhecimento, isto é, a tomada de consciência de que por longo tempo a pessoa esteve submersa no pecado e esquecida de Deus. A morte é simbolizada pela percepção desse ostracismo e o abandono completo daquela forma de vida que levaria sua alma para as penas infernais. Então se dá o renascimento e a vida seguida a posteriori é configurada na imitatio Christi (VEGA, 2002: 21-23). No caso luliano, essa nova vida vai ser moldada pela repulsa aos prazeres carnais e a todas as práticas cotidianas realizadas no início de sua vida, como o adultério e a atividade de trovador.
Apesar de Ramon nos deixar exemplo de sua crença na superioridade masculina, como no caso da educação dos seus filhos, – ele nunca escreveu uma obra dedicada a sua filha – e também, no próprio Livro das Maravilhas, quando Félix pergunta ao eremita por que as mães desejam mais ter filhos do que filhas, e este lhe responde, que é por que os homens são mais nobres, fortes e sábios que as mulheres, e, refletem mais os atributos divinos, a moral luliana, no Livro das Maravilhas, vai além da preocupação com as mulheres, pois busca uma mudança dos dois gêneros, e em alguns exemplos é a mulher que, por sua castidade e fé, converte o homem para uma vida mais santa (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 178; BATLLORI, 1993: 122-123).
Para analisar os exemplos da obra, torna-se necessário definir as designações femininas lulianas. Ao longo da obra, Llull, utiliza quatro palavras para designar a condição feminina: dona – senhora, donzella – donzela, muller – mulher e fembra – fêmea. Quando fala de virgens utiliza o termo donzela, já para as mulheres casadas com nobres ou burgueses, senhora ou mulher e fêmea para prostituta – ou também louca fêmea. Nessas designações não encontramos nada além da típica classificação eclesiástica das mulheres (DALARUN, s/d, 29-64).
III.1. A Pastora
Na primeira parte do livro sobre Deus, denominada Se Deus existe, Félix inicia sua missão. E, ao longo de sua caminhada por um bosque, a primeira pessoa que encontrou foi uma mulher, uma pastora. Pela simbologia do lugar por onde Félix anda, Llull nos dá referências daquilo que irá defender, a castidade e a busca do conhecimento pela contemplação. O bosque, assim como o jardim, é símbolo da “Virgem e da virgindade”, representando o paraíso perdido onde as pessoas buscam a meditação e o abrigo das tentações mundanas, mesmo que, na maior parte das vezes, também fosse considerado um lugar seguro para o amor proibido (CONTAMINE, 2004: 431).
Félix então questionou a pastora se ela não tinha medo se ser atacada por um lobo ou por uma besta má. A pastora então afirmou: “— Senhor, Deus é esperança, companhia e o conforto de minha coragem; em Sua guarda e virtude estou neste bosque, pois Ele ajuda a todos aqueles que n’Ele confiam, (...) pus-me sob Sua guarda e Sua companhia” (RAMON LLULL, OS, 1989 II: 21). Com essa afirmação, a pastora deu a Félix provas da sua confiança em Deus e provou Sua existência, pois Ele a protegia de todos os perigos que ela pudesse correr sozinha naquele bosque.
Logo após esse diálogo, Félix se despediu da pastora e continuou em sua caminhada. Porém, quando ia se afastando “ouviu a pastora gritar e chorar muito alto, e viu que ela corria atrás de um lobo que carregava um cordeiro” (RAMON LLULL, OS, 1989 II: 21). É nesse ponto da narrativa que Félix irá receber seu primeiro ensinamento:
Félix se maravilhou como a pastora tinha tanta coragem para perseguir o lobo. Enquanto a pastora perseguia o lobo e Félix corria para ajudá-la, o lobo largou o cordeiro, matou e devorou a pastora, foi às ovelhas e matou muitas ovelhas e carneiros. Assim que a grande maravilha aconteceu, Félix começou a pensar no que vira, e se lembrou das palavras que a pastora lhe dissera de Deus, em quem tão fortemente confiava (RAMON LLULL, OS, 1989 II: 21).
Esse exemplo inicial do Livro das Maravilhas é fundamental para compreendermos a visão luliana sobre a mulher. Primeiramente, temos que analisar porque a primeira pessoa que Félix encontrou em sua jornada foi uma mulher, e mais, uma pastora, que pertence a um dos níveis sociais mais importantes, segundo o maiorquino.
Os pastores têm a missão de guiar as ovelhas e protegê-las dos lobos, dos ladrões, isto é, homens e animais maus (COSTA, 2005). Assim ele faz uma alusão do trabalho pastoril com a parábola bíblica do Bom Pastor, que diz: “o bom pastor dá sua vida pelas suas ovelhas” (Jo 10, 11). O que foi feito pela pastora ao proteger o rebanho e ser morta para salvar a vida de suas ovelhas. Esse exemplo se encaixa perfeitamente na pregação luliana, afinal, o próprio Llull andou pelo mundo pedindo, a reis e papas, pastores para converterem os infiéis, tirando-lhes das garras dos lobos, que simbolizam os seres infernais, aos quais estariam destinados se não se tornassem cristãos (COSTA, 2005).
A pastora era uma figura recorrente nos textos literários medievais, conhecidos como pastorela provençal, onde ela era cortejada por um cavaleiro de passagem (DUBY e LARDREAU, 1989: 66; BONNER I BADIA, 1991: 87-90).
Diferente dos textos trovadorescos dos séculos XII e XIII, em que a pastora era cortejada pelo cavaleiro e dava-lhe lições de moral sexual, com um caráter educativo, o exemplo do diálogo entre Félix e a pastora, não tem nenhuma característica sexual, mas mantém o estilo educativo. Ela era uma mulher solitária e temente a Deus, e por essa devoção era também corajosa e agradável, o que cria entre os dois um sentimento de simpatia e não de desprezo como é comum encontrarmos nos relatos referentes aos rústicos (MITRE FERNÁNDEZ, 2004: 275-276).
A missão da pastora foi ensinar a Félix que Deus existe. Porém, ele caiu em tentação após sua morte e duvidou da existência de Deus, ao perceber que ela tanto confiava n’Ele e foi morta pelo lobo.
Félix andou por tudo aquele dia até que encontrou um eremitério, onde estava um santo homem que lhe explicou a causa da morte da pastora e de sua tentação. Quanto à pastora, Félix entendeu que: “– Existiam na pastora a virtude e a força da coragem quando ela perseguia o lobo. Se Deus fosse alguma coisa, ajudaria a virtude da pastora e não teria deixado falhar a virtude de amar a Deus que costumava existir em minha alma.” (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 23).
Depois o eremita explicou para Félix o porquê de sua tentação:
– Belo amigo, disse o eremita, em Deus existe caridade e justiça, e como a pastora amava e servia a Deus e n’Ele se confiava, Deus a tomou para Sua glória, vos deu o modo de ser forte contra as tentações e acreditar em Deus. De outra maneira não poderíeis entender que quem assumiu tão alto negócio como vós fizestes deve ter uma alta e forte coragem. Por isso, Deus vos deixou tentar pelo diabo, para que vos acostumeis a ser forte e firme de coragem, contra a tentação e o vício (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 23).
Assim, Félix pode entender o papel educador de seu encontro com a pastora e soube também que sua missão era algo muito difícil e que ele necessitava de muita força para se manter firme.
O fato de Félix encontrar uma mulher temente a Deus como primeira personagem em seu caminho demonstra que Llull não tinha características misóginas do cristianismo primitivo. Pelo contrário, ele acreditava ser possível a salvação feminina e, além disso, que as mulheres poderiam ensinar algo sobre Deus aos homens. Ao longo dos outros exemplos, veremos como se dava para Llull essa possibilidade. Como fruto do seu tempo, ele também acreditava na castidade como fator necessário para a salvação feminina.
III.2. O Cavaleiro e a Filha da Castidade
Na segunda parte do livro sobre Deus, que é denominada, O que é Deus, o eremita dá um exemplo a Félix para demonstrar a doutrina da primeira e da segunda intenção. Para Llull Deus criou o homem para compreendê-Lo, lembrá-Lo e amá-Lo. Assim, seguindo a primeira intenção, os homens poderiam desfrutar dos bens materiais, que devem ser amados pela segunda intenção. O pecado se estabelece quando os homens invertem a ordem das coisas, amando primeiro as coisas mundanas e Deus em segundo lugar (LLINARÈS, 1987: 222-226). Como no exemplo abaixo, em que filha da castidade ensina a um cavaleiro que vivia em pecado o verdadeiro amor: “– Senhor, disse Félix, um cavaleiro pediu a uma boa senhora, filha da castidade, que lhe fizesse amor com seu corpo, e a mulher lhe perguntou o que era o amor” (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 27).
Aqui temos uma importante característica do pensamento luliano, sua predileção por mulheres cultas, que entendiam de teologia e filosofia (BATLLORI, 1993: 122-123). A donzela ao desafiar o cavaleiro questionando se ele sabia o que é o amor, demonstrou ter conhecimento e utilizá-lo em favor da conversão das pessoas que estivessem em estado de pecado.
Ao responder o questionamento dela: “O cavaleiro lhe disse que o amor era e é aquilo que ajusta vontades diversas a um fim”. Ela então lhe perguntou se aquele amor carnal que ele queria praticar com ela era digno da “glória de Deus” e se o levaria para o céu quando ele morresse. (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 27). Com isso, a filha da castidade além de pregar o amor a Deus, também, estava ensinando ao cavaleiro que para merecer as glórias do paraíso era necessário o exercício da castidade (RAIMUNDO LÚLIO, 1989: 61-62; 128-129; CARRERAS Y ARTAU, 2001: 377-379).
Com essa argumentação ela confundiu o cavaleiro. Aqui começa então o processo de entendimento dos exempla lulianos que levam os homens à elevação intelectual (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 465-468; BONNER I BADIA, 1991: 150). Depois de fazê-lo refletir, ela demonstrou o que o amor faz, provando que ele não conhecia o amor verdadeiro (BONNER I BADIA, 1991: 110-114). Ele então “disse estas palavras: ‘Por muito tempo eu estive submetido ao falso amor e tive ignorância do amor verdadeiro”’ (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 27).
A mulher então explicou ao cavaleiro o que faz o amor verdadeiro, aquele que afasta de todo pecado e aproxima de Deus. O cavaleiro, porém, queria conhecer o amor em si, já que tivera conhecimento de que vivia no “louco amor”. A mulher então orou e clamou a Deus que desse esse conhecimento ao cavaleiro. Esse era o caminho para o êxtase místico pregado por Llull, elevação intelectual, na buscas de respostas racionais para a existência de Deus, que se completa pela contemplação (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 27; CARRERAS Y ARTAU, 2001: 573-575).
III.3. A Rainha que não podia ter infantes
Na sexta parte do primeiro livro, denominada Da criação do mundo, Félix perguntou ao eremita porque Deus não criou o mundo antes, nem diferente do que era. O eremita respondeu com o exemplo da rainha que não podia ter filhos. Aqui Llull também utiliza uma alegoria para responder à pergunta feita pelo protagonista, de forma que, para compreender a resposta será necessário um esforço intelectual (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 507).
Disse o eremita: – Uma rainha era mulher de um nobre rei muito poderoso por possuir reinos e grandes tesouros. Aquela rainha não podia ter infantes, e temia morrer sem tê-los. Em grande tristeza estava a rainha por não poder ter infantes que reinassem após a morte do rei. Um dia aconteceu de o rei entrar em seu quarto e encontrar a rainha chorando e lamentando não poder ter infantes (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 41).
Vendo a tristeza da rainha e percebendo o grande desejo que ela tinha de ter filhos. Com um exemplo, o rei demonstrou a razão pela qual estava no ofício de rei, para que ela fosse consolada. O rei contou a história do bispo que ao saber da morte do sobrinho, que era arquidiácono e vivia em pecado, ficou irado porque o sobrinho não poderia lhe substituir no bispado. Quando, na verdade, o bispo deveria lamentar aquela morte e condenação às penas infernais, em vez de desejar que um homem mal acostumado exercesse um cargo religioso de grande importância (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 377-379; RAMON LLULL, OS, 1989, II: 42).
Dessa maneira, a rainha teve conhecimento de que seu marido era rei não para ter filhos que o substituíssem no governo, e sim, para ser justo e manter a paz, para que seus súditos amassem a Deus. Quando a rainha compreendeu, consolou-se e alegrou-se com a vontade de Deus. E Ele a recompensou, dano-lhe um filho que se tornou um rei muito sábio.
Ao contrário dos exemplos anteriores, neste a mulher recebeu o ensinamento para sair do erro, essa era uma das regras do sacramento matrimonial instituído pela Igreja. O homem deveria zelar pela educação e religiosidade da esposa (BARTHÉLEMY, 1990: 132-143). No exemplo aqui analisado, o rei ensinou a rainha que não deveria amar as coisas corporais – ter filhos, acima de Deus, pois tudo o que existe, só existe pela vontade Dele. Quanto a Félix, ele compreendeu que o mundo foi criado pela vontade de Deus, que fez tudo em seu lugar, da forma, na quantidade e no tempo certo (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 485-494).
III.4. A louca fêmea
Na sétima parte do primeiro livro, sobre a Encarnação do Filho de Deus em Nossa Senhora Santa Maria, Félix se despediu do eremita e continuou sua viagem. E após fazer suas orações da hora nona, parou para repousar próximo a uma fonte. Logo, aproximou-se daquele lugar uma louca fêmea que viajava para se encontrar com um prelado:
(...) uma louca fêmea passou pelo lugar onde Félix estava. Muito bem vestida, aquela fêmea estava cavalgando em um palafrém e viajava para se encontrar com um prelado, e o palafrém que cavalgava lhe foi entregue por um clérigo a mando do prelado. Quando Félix viu a louca fêmea perto de si, levantou-se com o vivo propósito de saudá-la, e a saudou. O palafrém que entrara na água se esquivou, e a louca fêmea caiu na água e molhou todas as suas vestimentas, afogando-se. No entanto, Félix e o clérigo que andava com a fêmea ajudaram-na e a tiraram da água (RAMON LLULL, OS, 1989, II: 43).
É importante relembrar que uma louca fêmea era uma prostituta. Ela estava indo ao encontro de um prelado, um escolhido de Deus, o que tornava o seu pecado de luxuria ainda mais grave (DUBY, 2001: 11-15). Outra característica que a distingue das mulheres dos outros exemplos são suas roupas. Como vimos na passagem acima, ela estava bem vestida. Na Idade Média as pessoas se diferenciavam por sua vestimenta em todas as etapas da vida. Por isso, a roupa era considerada muito mais que uma cobertura para o corpo, era uma expressão moral e religiosa. No caso das mulheres, usar roupas luxuosas, pintar-se e usar jóias era visto como uma ofensa à obra do Criador, pois elas estariam modificando o que foi moldado por Sua mão (SCHMITT, 1999: 224; BLOCH, 1995: 58-62).
Depois que foi retirada da água, a louca fêmea blasfemou e maldisse Félix por tê-la feito cair de seu cavalo. Enquanto ela demonstrava toda a sua ira agredindo-o, ele perguntou ao clérigo que a acompanhava, para onde eles se dirigiam. Quando ele respondeu que a louca iria se encontrar com um prelado para pecar, Félix foi até a fêmea e lhe disse:
– Oh, louca fêmea! Como me fazes muito maravilhar! Tu choraste quando caíste do palafrém na água e molhaste tuas vestimentas, ornamentadas para poder usá-las na sujeira da luxúria. Louca fêmea, por que não choras por cair da celestial glória para a qual foste criada? Tu mesma te enterraste no caminho pelo qual cairás no abismo infernal, pois tens destruído e sujado teu lembrar, teu entender e teu amar no fedor da luxúria. Chora louca fêmea, porque perdeste Deus e porque sujastes tua alma em tal vil obra.
Entre os sete pecados capitais que condenam os homens à danação, Llull combate com muita veemência a luxuria (CASAGRANDE E VECCHIO, 2002: 337-350). Talvez pelo fato de ter sido trovador e esse pecado ter sido o que ele mais cometeu antes da conversão e principalmente, por que esse pecado vai contra a castidade que é o estado daqueles que estão mais próximos de Deus na terra, os clérigos (LITTLE, 2002: 225-241).
Conclusão
Os três modelos femininos difundidos por toda a Idade Média (Eva, Maria e Madalena) deixam claro o papel civilizador e moralizador desempenhado pela Igreja Católica ao longo de, aproximadamente, mil anos de formação da sociedade ocidental. A própria passagem da visão de corporeidade e danação feminina, pautada no modelo de Eva, vista como aliada do demônio. Esse estado de maldição foi amenizado com o culto à Virgem Maria, que trouxe consigo a reconciliação entre a humanidade e Deus, contudo, essa reconciliação ainda era restritiva, pois somente aqueles que vivessem na graça divina alcançariam à salvação. Com Maria Madalena se estende a possibilidade de salvação a todos que tinham caído no erro, mas foram capazes de se arrepender.
Nesse contexto, de ampliação do perdão que se inseriu a pregação de Ramon Llull. Mesmo com toda influência misógina difundida ao longo dos séculos, ele via o ser humano e não seu gênero. E, no Livro das Maravilhas tem como principal ensinamento o caminho que leva ao amor de Deus. Caminho que devia ser ensinado a todos aqueles que estivessem esquecidos de Deus.
Essa característica ficou clara das citações da obra, que têm como característica importante o papel educativo, pois a teologia luliana era uma teologia racional e apologética. Llull pretendia explicar racionalmente a existência de Deus e provar que o Cristianismo era a única religião verdadeira.
Assim, a pastora ensinou a Félix que ele deveria ter confiança na existência de Deus mesmo nas situações mais adversas. A filha da castidade demonstrou ao cavaleiro que ele estava perdido no caminho do falso amor e o fez buscar o verdadeiro. O rei ensinou à rainha a aceitar a vontade de Deus, pois somente se Ele assim desejasse, ela teria um filho. Com esses três exemplos Llull demonstra a forma de alcançar salvação.
No último exemplo, da louca fêmea, o maiorquino alertou para o grande perigo de se cair em tentação e por conseqüência perder a glória do outro século por viver em pecado. Infelizmente, essa era a forma de vida seguida pela maioria dos homens do seu tempo. Isso, ele demonstrou, já no prólogo da obra, lamentando como tão poucos homens no mundo conheciam e amavam a Deus.
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Dedico esse artigo à minha querida amiga, Tatyana Nunes Lemos, que também é uma grande amante de Ramon Llull, e também a Ricardo da Costa, querido professor e amigo que me abriu as portas para o conhecimento do medievo.
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Siglas
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