sábado, 24 de maio de 2008

O "império" da Publicações Europa-América



30 anos do 25 de Abril
Criado segunda-feira, 12 de Abril de 2004
Última actualização terça-feira, 27 de Abril de 2004

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Por António Melo
14.04.2004
Público
Foi aos 30 anos que lançou as bases daquele que veio a ser, ainda hoje, um dos mais fortes empreendimentos editoriais portugueses - a Publicações Europa - América, com a sua constelação de editoras especializadas, da Alfa, para o grande público, à Inquérito, para os círculos universitários.

O primeiro livro a sair do prelo foi "Centelha da Vida", de Erich Maria Remarque, que tinha por tema a vida clandestina e foi bem aceite pelo público. Pouco depois, do mesmo autor, saiu "A Oeste Nada de Novo", um dos primeiros êxitos editoriais da Europa-América, que durante os primeiros anos viveu no fio da lâmina, as vendas de um livro sustentando a publicação do seguinte.
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O golpe de asa, que é sempre um gesto de audácia, ocorreu quando a Bertrand deixou cair os direitos de publicação de "Cela de Morte", um comovente relato de um condenado à cadeira eléctrica, Caryl Chessman, que através do livro implorava mercê à toda a humanidade. Para não ferir susceptibilidades governamentais, dada a visita próxima a Portugal do então presidente dos EUA, general Eisenhower, a Bertrand desinteressou-se do que tinha na mão. Largou-o e foi Lyon de Castro quem o foi buscar. Fez dele um êxito editorial, ainda hoje difícil de bater: 120 mil exemplares.
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Foi o seu pecúlio para maiores voos. Com ele, e o auxílio de um empreiteiro, Amadeu Gaudêncio, também ele moldado na cultura operária dos anos 20, construiu a possante casa de Mem Martins, de onde passaram a sair vinte títulos mensais

Amado e Redol
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O seu objectivo era editar livros que pudessem ter uma dupla leitura, capaz de iludir a censura e contribuir para o discernimento do leitor. Nesse aspecto ganhou alguns títulos de glória. Um deles, foi editar "Gabriela Cravo e Canela", de Jorge Amado, negociado asperamente com um chefe de gabinete de Salazar e tendo por argumentação a possibilidade de haver um premiado com o Nobel de língua portuguesa não editado em Portugal.
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Mas o que lhe dava maior prazer contar foi o modo como conseguiu evitar que o regime abafasse um escritor maior do movimento neo-realista, Alves Redol. O autor de "Gaibéus" entrara na lista dos escritores que não tinham autorização de ser editados sem passar pelo "exame prévio", ou seja, pela comissão de censura. Em 1958, Redol tinha concluído "A Barca dos Sete Lemes", mas sabia que quando o editor levasse o manuscrito à censura ele seria proibido.
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Lyon de Castro pediu-lho para ler e gostou do que leu, queria ser o editor daquele livro. Redol encolheu os ombros e deixou cair um sonâmbulo: "Como é que vais conseguir?"
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Picado no seu amor próprio, onde era ultra sensível, Lyon de Castro tirou-lhe o manuscrito das mãos e lançou-lhe num tom provatório: "Agora o livro já não é teu. Tiraram-to e tu não podes ser responsável pelo que outros fizerem". "Vê lá no que te metes", sussurrou o escritor, decidido a não fazer mais perguntas.
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"O importante foi conseguir uma tipografia que o imprimisse e nada dissesse do assunto", porque a estratégia para cortar as voltas à PIDE já ele a engendrara. Para evitar a apreensão, lançou uma mega-operação de lançamento na Livraria Portugal, local habitual de encontro com o António Sérgio e sua grande referência intelectual. Conseguiu que naquela dia toda a elite intelectual ali se reunisse, mesmo os que eram simpatizantes do Estado Novo, mas tinham alguma independência crítica. Foi um "estrondo", porque no dia seguinte o país todo tomara conhecimento da existência de um novo livro do Alves Redol.
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Ficou particularmente satisfeito quando, já depois do 25 de Abril, vieram dizer-lhe que a operação fora de facto um êxito, porque a PIDE recebeu da Comissão de Censura uma informação para apreender o livro, mas foi decidido nada fazer, pois com a divulgação que tivera, fazer a sua apreensão era uma tarefa inútil e só contribuiria para lhe dar maior destaque.
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Homem frontal, a tocar as raias do desafio, dizia só o que queria, mas respondia a todas as questões, sem rodeios. Não tinha em alta estima a maioria do outros editores. Entre eles só realçava um nome, Eduardo Salgueiro, fundador da Editorial Inquérito, que admirava pela sua coerência. De resto, quando este se sentiu forçado a abandonar a actividade, já na década de 80, foi ter com Lyon de Castro, para lhe deixar a editora e pedir-lhe que mantivesse a matriz original, o que ele afirmava ter feito.
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Quanto ao saber do ofício, "o mérito do editor está nas escolhas que faz. A Livros do Brasil limitava-se a reproduzir o que se publicava no Brasil. O importante é descobrir os novos autores". Quanto ao êxito de vendas, também era taxativo: "É fundamental a rede de distribuição no desígnio de ir a todo o lado". A sua divisa, neste campo, era: "longe e fundo" e não desistir a meio do caminho.
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A esse propósito contava como avançara para os livros de bolso, com a colecção das "3 Abelhas" e viu que a Verbo lhe queria tolher o caminho, conseguindo através de apoio estatal, que a RTP fizesse a promoção das suas edições com anúncios publicitários repetidos diariamente várias vezes.
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Não tendo poder para combater tão pesado fogo de artilharia, resolveu usar de astúcia para com o leitor. Fazia um curto anúncio, mas usando como sinal de distinção a abertura da 5ª Sinfonia de Beethoven, que fora o indicativo da BBC durante a II Guerra Mundial. O título que inaugurava a colecção era "Os Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes. Resultou, o leitor a quem se dirigia percebeu a "piscadela de olho" e a colecção entrou no gosto do público.
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O orgulho da "Ler"
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O seu orgulho pessoal, porém, foi a revista "Ler", um jornal literário e de ideias, mensal, que fundou, dirigiu e subvencionou de Abril de 1952 a Outubro de 1953.
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O modelo era o suplemento literário do velho "Times", referência de um jornalismo conservador mas isento de influências políticas e pressões económicas e a "Lettres Françaises", dirigidas por Louis Aragon.
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Juntou um naipe de colaboradores ecléctico, em que o critério era a qualidade intelectual de cada um. Assim se aproximaram nas páginas de um jornal nomes próximos do regime, como António Quadros, filho de António Ferro, ou de Alves Redol e Maria Lamas, próximos do PCP.
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Passou de início na censura com a indicação que era apenas um alargamento do Boletim da casa editorial. Mas depressa começou a levar "porrada", quer dos ideólogos e da censura do regime, quer da parte do PCP, cuja direcção aconselhou os intelectuais que controlava a afastarem-se da revista.
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Alguns assim fizeram e outros, para não atrair sobre eles a repreensão partidária, passaram a usar um pseudónimo, contra as regras inicialmente aceites de responsabilização pessoal. Citava o caso de António José Saraiva, que deixou de colaborar na 'Ler' quando entrou no PCP, ou Alves Redol, que passou a assinar com pseudónimo.
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O naipe de colaboradores fixos que convidou eram próximos ou tinham sido próximos do PCP, mas eram, antes de mais, espíritos independentes: Piteira Santos, João José Cochofel, Cardoso Pires, Maria Lamas, Mário Dionísio, Urbano Tavares Rodrigues. A par destes havia outros, de outras orientações filosóficas, mas todos conhecidos pela sua capacidade intelectual crítica: António Quadros, Delfim Santos, José Régio, Orlando Ribeiro, Tomás Ribas. O primeiro número teve uma tiragem de cinco mil exemplares e esgotou.
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A "Ler" passou a ser a referência da elite intelectual e criou em torno de si um cenáculo de reflexão política, mas os ataques que vieram quer pelas instituições do regime, quer pelo PCP, que detestavam, cada um a seu modo, os espíritos independentes, acabaram por vencer.
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Ao fazer o balanço dos combates que nesse campo travou era amargo: "Estou zangado com Portugal e com alguns portugueses. Há muitos preconceitos e ideias feitas por não terem estudados devidamente a história do país e a história das ideias ao longo da história"
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Em concreto, ficou ferido por os comunistas não o terem contactado para as homenagens que se fizeram no funeral de Bento de Jesus Caraça (25 Junho 1948) e, sobretudo, por continuarem a ignorá-lo já depois do 25 de Abril, numa apropriação da memória de Caraça que o irritou profundamente: "Convidaram-no para fazer papel de corpo presente. Tinham 'cozinhado' tudo à minha revelia, quando um dia o Dias Lourenço, de quem era amigo de longa data, me veio dar conta do que eu devia dizer na cerimónia. Explodi de indignação e desliguei-me da iniciativa".
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Era assim este homem pequeno que tinha a genica de uma chita.

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30 anos do 25 de Abril
Criado segunda-feira, 12 de Abril de 2004
Última actualização terça-feira, 27 de Abril de 2004


30 anos do 25 de Abril
O adeus de Lyon de Castro, o "pequeno grande homem" da Publicações Europa-América
Por António Melo
Público
14.04.2004
Francisco Lyon de Castro nasceu em Lisboa, "ali para os lados da Estrela", e fez-se miúdo a jogar à bola e a rabiscar histórias com que gostava de encantar os da sua idade e os mais velhos.

Foi colaborador do "Pim-Pam-Pum", o suplemento infantil de "O Século", e organizador de "excursões de eléctrico" aos Jerónimos e a Belém, com as quais entendia beneficiar os mais pobres do seu bairro de Campo de Ourique. Arranjava o dinheiro para os bilhetes a vender as suas estórias e outras artimanhas. Teve um particular orgulho quando no início dos anos 50 abriu a colecção de bolso das 3 Abelhas com "Os Esteiros", o livro que Soeiro Pereira Gomes dedicou "aos homens que nunca foram meninos".

Era o filho mais novo de uma prole de nove filhos, que Rosalina Lyon trouxe ao mundo. O marido, Adelino Castro, pequeno industrial madeireiro, viera de Óbidos para Lisboa, convencido de que aqui encontraria maiores proventos para sustentar a numerosa família.

O lado materno foi preponderante na vida do Francisco, que se recordava com orgulho do avô, Edouard Lyon, um escocês de distante aristocracia real, que no Porto casou com Delfina Rosa de Oliveira e acabou por descer até Óbidos, onde cuidava da administração da linha férrea Lisboa-Porto.

Tipógrafo na Imprensa Nacional

Fez os primeiros estudos na escola primária da Rua Saraiva Carvalho e os preparatórios na Escola Comercial Rodrigues Sampaio. Aos 14 anos, em 1928, entrou como aprendiz na Imprensa Nacional, alto centro da cultura operária portuguesa, a par do Arsenal da Marinha ou da Tabaqueira.

A influência anarco-sindicalista era ainda preponderante, mas as ideias de Lenine começavam a ter o seu curso, sobretudo entre as camadas mais jovens. O PCP fora fundado em 1921, mas só em 1929, com Bento Gonçalves, se dota de uma organização operária coerente e com influência sindical. A ele aderiu em 1932, aos 18 anos, quando a ditadura militar, vinda do movimento do 28 de Maio de 1926, evoluía para o corporativismo fascista, que Salazar fez plebiscitar em Abril de 1933, num acto eleitoral onde as abstenções foram consideradas como votos a favor.

O ponto de encontro para debater ideias e analisar a situação política era o Jardim da Patriarcal (Príncipe Real). Findo o trabalho, depois da 16h30, ali se juntavam tipógrafos da Imprensa Nacional, metalúrgicos do Arsenal da Marinha e do Exército e sindicalistas da CGT - a elite operária do país.

Francisco fazia parte de um grupo de jovens que se propunha criar uma associação, destinada a promover a cultura dos operários, através de conferências e debates. Para marcar o seu espaço e anunciar o seu programa, decidiram publicar um jornal, "Mocidade Livre", que começou a publicar-se em 1932. O momento alto das actividades da União Cultural "Mocidade Livre" ocorreu em 25 de Maio de 1933, quando Bento de Jesus Caraça inaugurou, com um texto luminoso sobre "a cultura integral do indivíduo", o primeiro ciclo de conferências que Lyon de Castro devia encerrar com um "Manifesto contra a Guerra" [ver "Mocidade Livre"].

Foi o seu período de "jornalista operário", como fez questão de sublinhar, orgulhoso da sua cultura operária: "A instrução primária adquiri-a no Aljube e no Governo Civil e os estudos avançados fi-los em Angra do Heroísmo", numa ironia às várias prisões políticas que sofreu ao longo da vida. Uma das mais fortes imagens que lhe ficou do seu bairro foi a dos mortos da intentona do 7 de Fevereiro (1927) a serem levados para o cemitério dos Prazeres, à beira da sua casa.

De Madrid a Paris

Em 1934 teve de se exilar em Espanha, numa fuga rocambolesca, na qual contou com a participação de um irmão maçónico, que pediu ajuda a um companheiro do Redondo para o fazer atravessar o Guadiana e o pôr a salvo em Badajoz.

Tentava escapar às perseguições que se seguiram ao levantamento sindical do 18 de Janeiro de 1934, uma acção de protesto contra a publicação do Estatuto do Trabalho, em Setembro do ano anterior, que extinguia os sindicatos livres e os substituía por sindicatos corporativos, à semelhança da Carta del Lavvoro, do fascismo italiano. A greve insurreccional foi um fracasso e Francisco Lyon de Castro, que fazia parte da célula operacional que devia cortar no Cacém a circulação da linha de Sintra, passou à clandestinidade.

Chegou a Madrid precisamente no ano em que as forças conservadoras tinham regressado ao governo, nas eleições de Novembro de 1933, o que representou uma reviravolta na situação política espanhola, depois das eleições de Dezembro de 1931, que haviam abolido a monarquia e instituído a república. Esse foi o ano de uma feroz repressão da greve dos mineiros asturianos, feita sob a direcção de Franco, o general que em Julho de 1936 voltaria à ribalta política, para comandar a sublevação nacionalista.

Era então um jovem miúdo, de boina sempre agarrada à cabeça, que frequentava os meios oposicionistas portugueses, que Madrid tinha acolhido, depois do malogro do levantamento militar do 7 de Fevereiro de 1927, e, mais recentemente, do levantamento sindical do 18 de Janeiro de 1934.

Frequentava o Ateneu, ponto de encontro cultural dos meios progressistas e sobrevivia do que lhe enviavam os camaradas da Imprensa Nacional, o Socorro Vermelho e do que conseguia angariar numa subsistência precária de venda ambulante. Militava com os camaradas exilados no reforço das acções do Partido Comunista Espanhol e foi assim, ao lado de Dolores Ibarruí, a "Passionaria", que participou no socorro às levas de mineiros asturianos que chegavam a Madrid, escapando às razias de Franco.

Em 1935 decidiu ir para Paris, numa viagem que foi uma saga de sofrimento, ao atravessar os Pirenéus com meios diminutos, às vezes de carro, outras caminhando a pé.

Queria seguir para Moscovo, mas os representantes do PCP em França dissuadiram-no, preferindo que regressasse a Portugal para aqui prosseguir a luta política na clandestinidade.

Regressou em Outubro de 1935, para ser preso em Novembro. Foi enviado para Peniche, onde se impôs aos camaradas de prisão, como recordou Edmundo Pedro, pela abertura de ideias que trazia e pelo modo combativo como as descrevia. Durante a permanência em Paris pudera contactar com gente das letras e artes, e pudera, sobretudo, confrontar-se com a polémica das ideias. Mas fazia questão em dizer que as leituras de Trotsky não o tinham influenciado.

O degredo em Angra

Foi condenado a quatro anos de cadeia e deportado para o forte de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, célebre pela sua poterna e "portas falsas". A poterna era uma cela subterrânea, cavada na rocha, onde se cumpriam os "castigos", que passaram a ser mais frequentes a partir dos atentados anarquistas, que em 1937 agitaram Lisboa, sobretudo o que Emídio Santana preparou para Salazar, em 4 de Julho de 1937.

Estes atentados foram o modo como o movimento anarquista, ou que dele restava, tentou afirmar o seu apoio aos seus camaradas espanhóis. O que fez aumentar a repressão do Estado Novo aos oposicionistas, que atingiu tanto os presos como os que andavam em liberdade. O campo de concentração do Tarrafal abriu em Outubro de 1936 e só por um acaso, ou porque a "primeira leva" estava completa, é que Lyon de Castro ficou no forte de São João Baptista, onde, de resto, as condições prisionais eram muito semelhantes às de um "campo de morte lenta".

Continuou ligado ao PCP até à celebração do pacto germano-soviético [Agosto 1939]. A discussão foi então seca e curta com os camaradas da prisão, que aceitaram com total obediência partidária a decisão de Estaline de estender a mão a Hitler. Lyon de Castro recordava-a como se a estivesse a viver: "Como é possível que a União Soviética, país da revolução, possa entender-se com um criminoso confesso, chamado Hitler? Se os camaradas acham que é natural uma aliança com o regime nazi, então passem bem."

O respeito humano entre ele e os antigos camaradas manteve-se, mas as relações partidárias quebraram-se: "A partir daí ocupei-me em perceber as razões internas que levaram àquela aliança contranatura e não mais tive recaídas. Fiquei vacinado em relação a estruturas partidárias."

A discordância foi "inultrapassável" e sem retorno. A partir daí passou a ser "persona non grata" para o PCP, como sentirá mais tarde, quando lançar a revista "Ler", que permaneceu até ao fim da vida o seu enlevo de editor.

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