quarta-feira, 28 de maio de 2008

25 de Abril - «olhares» - «entrevistas» - «verdades» (27)

arestasdevento
Artes e Ideias por Ricardo Cardoso e Céu Campos

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maio 27, 2008
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Enquanto dois milhões de miúdos vivem na miséria,
os bancos obtiveram lucros de 7,9 milhões por dia.
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* Baptista Bastos

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O ranço Salazarista


Cada vez mais nos afastamos uns dos outros. Trespassamo-nos sem nos ver.
Caminhamos nas ruas com a apática indiferença de sequer sabermos quem somos.
Nem interessados estamos em o saber. Os dias deixaram de ser a aventura do
imprevisto e a magia do improviso para se transformarem na amarga rotina do
viver português e do existir em Portugal.
Deixámos cair a cultura da revolta. Não falamos de nós. Enredamo-nos na
futilidade das coisas inúteis, como se fossem o atordoamento ou o sedativo
das nossas dores. E as nossas dores não são, apenas, d'alma: são, também,
dores físicas.



Lemos os jornais e não acreditamos. Lemos, é como quem diz - os que lêem. As
televisões são a vergonha do pensamento. Os comentadores tocam pela mesma
pauta e sopram a mesma música. Há longos anos que a análise dos nossos
problemas está entregue a pessoas que não suscitam inquietação em quem os
ouve. Uma anestesia geral parece ter sido adicionada ao corpo da nação.
Um amigo meu, professor em Lille, envia-me um email. Há muitos anos, deixou
Portugal. Esteve, agora, por aqui. Lança-me um apelo veemente e dorido: 'Que
se passa com a nossa terra? Parece um país morto. A garra portuguesa foi
aparada ou cortada por uma clique, espalhada por todos os sectores da vida
nacional e que de tudo tomou conta. Indignem-se em massa, como dizia o
Soares.'
Nunca é de mais repetir o drama que se abateu sobre a maioria. Enquanto dois
milhões de miúdos vivem na miséria, os bancos obtiveram lucros de 7,9
milhões por dia. Há qualquer coisa de podre e de inquietantemente injusto
nestes números. Dir-se-á que não há relação de causa e efeito. Há, claro que
há. Qualquer economista sério encontrará associações entre os abismos da
pobreza e da fome e os cumes ostensivos das riquezas adquiridas muitas vezes
não se sabe como.
Prepara-se (preparam os 'socialistas modernos' de Sócrates) a privatização
de quase tudo, especialmente da saúde, o mais rendível. E o
primeiro-ministro, naquela despudorada 'entrevista' à SIC, declama que está
a defender o SNS! O desemprego atinge picos elevadíssimos. Sócrates diz
exactamente o contrário. A mentira constitui, hoje, um desporto
particularmente requintado. É impossível ver qualquer membro deste Governo
sem ser assaltado por uma repugnância visceral. O carácter desta gente é
inexistente. Nenhum deles vai aos jornais, às Televisões e às Rádios falar
verdade, contar a evidência. E a evidência é a fome, a miséria, a tristeza
do nosso amargo viver; os nossos velhos a morrer nos jardins, com reformas
de não chegam para comer quanto mais para adquirir remédios; os nossos
jovens a tentar a sorte no estrangeiro, ou a desafiar a morte nas drogas; a
iliteracia, a ignorância, o túnel negro sem fim.
Diz-se que, nas próximas eleições, este agrupamento voltará a ganhar. Diz-se
que a alternativa é pior. Diz-se que estamos desgraçados. Diz um general que
recebe pressões constantes para encabeçar um movimento de indignação. Diz-se
que, um dia destes, rebenta uma explosão social com imprevisíveis
consequências. Diz a SEDES, com alguns anos de atraso, como, aliás, é seu
timbre, que a crise é muito má. Diz-se, diz-se.
Bem gostaríamos de saber o que dizem Mário Soares, António Arnaut, Manuel
Alegre, Ana Gomes, Ferro Rodrigues (não sei quem mais, porque socialistas,
socialistas, poucos há) acerca deste descalabro. Não é só dizer: é fazer, é
agir. O facto, meramente circunstancial, de este PS ter conquistado a
maioria absoluta não legitima as atrocidades governamentais, que sobem em
escalada. O paliativo da substituição do sinistro Correia de Campos pela
dr.ª Ana Jorge não passa de isso mesmo: paliativo. Apenas para toldar os
olhos de quem ainda deseja ver, porque há outros que não vêem porque não
querem.
A aceitação acrítica das decisões governamentais está coligada com a
cumplicidade. Quando Vieira da Silva expõe um ar compungido, perante os
relatórios internacionais sobre a miséria portuguesa, alguém lhe devia dizer
para ter vergonha. Não se resolve este magno problema com a distribuição de
umas migalhas, que possuem sempre o aspecto da caridadezinha fascista. Um
socialista a sério jamais procedia daquele modo. E há soluções adequadas. O
acréscimo do desemprego está na base deste atroz retrocesso.
Vivemos num país que já nada tem a ver com o País de Abril. Aliás, penso,
seriamente, que pouco tem a ver com a democracia. O quero, posso e mando de
José Sócrates, o estilo hirto e autoritário, moldado em Cavaco, significa
que nem tudo foi extirpado do que de pior existe nos políticos portugueses.
Há um ranço salazarista nesta gente. E, com a passagem dos dias, cada vez
mais se me acentua a ideia de que a saída só reside na cultura
da revolta.

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