domingo, 30 de agosto de 2009

Uma mão cheia de nada , outra de coisa nenhuma - Irene Lisboa

Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma

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Uma mão cheia de nada , outra de coisa nenhuma *
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E se a vida não for isto?
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E se o que estou a viver agora for apenas um sonho, um pesadelo, uma mescla disto e de tudo o mais?
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E se eu for uma pedra, uma árvore ou uma mulher sentada na ombreira duma porta qualquer, os olhos perdidos no fio do horizonte, os lábios gretados e o rosto tão marcado como um tecido velho e rasgado?
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A mulher olha sem ver. E tanto pode ter na sua frente um deserto árido e áspero, como uma outra porta mesmo encostada ao rosto, sem lhe deixar sequer estender as pernas.
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Não tem idade e sonha dia e noite com a minha vida e por isso mesmo vive aparvalhada, sem perceber o que se passa, ao que veio e o que vai ser dela.
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Se isto não for realmente a vida, então assim eu compreendo esta sensação permanente, este mal-estar que dói dentro de mim, este atordoado na minha cabeça, com tantas vozes a falarem ao mesmo tempo, tanta gente que eu não conheço, tantos sítios que vejo e que não posso saber porque nunca lá estive.
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Eu estou aqui e agora mas não estou nunca aqui e agora.
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Metade de mim ficou presa no passado e a outra metade anda perdida no futuro. No futuro da mulher sem idade agachada na soleira da porta a olhar o nada.
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Mas nunca estou a viver o hoje.
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E é terrível! É tão triste não saber saborear aquilo que vem com os dias, o sol, as trovadas secas e a música da chuva.
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É tão triste este viver sem viver e estar sempre com um pé no que foi e outro no que podia vir a ser.
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Às vezes, já nem é uma tristeza, é antes um vazio que gela os ossos, gela tudo o que me rodeia onde quer que esteja porque é como se eu trouxesse comigo o vazio do Universo, o buraco negro do Cosmos.
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A mulher que se calhar sou eu, sentada na soleira da porta, com a saia a comer o pó da terra, não tem olhos, afinal.
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Tem dois buracos negros e em vez de lábios tem uma prega caída, uma em baixo, uma em cima.
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Foram os bichos que lhe devoraram as carnes, de tanto estar queda e imóvel, tomaram-na por morta, por uma pedra ou uma árvore.
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*Titulo de livro de contos de Irene Lisboa, 1955
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