quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

“Caim” de José Saramago Por Berta Brás

Caim assassinando Abel em manuscrito do Século XV.


“Caim” de José Saramago
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Por: Berta Brás
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Um livro de fantasia, a fantasia poderosa de um espírito atento ao mundo e aos homens, insubmisso perante muitos dos valores estabelecidos, afundado  no desespero da impotência humana perante o problema do Mal e da Injustiça que regem o Mundo, mergulhado na orgia da sua própria imaginação e do seu próprio saber, na arte de uma linguagem escorreita, de verbo fácil e desinibido, de estilo tantas vezes chocarreiro, de um humor amplo de experiência humana fortalecida pela cultura livresca.

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No fundo, a história de Caim, apoiada nos sinuosos enredos do Génesis, com citação onomástica e toponímica frequentes, nele colhidas, não traduz mais do que um hábil manejo do narrador, que, identificado com o protagonista  da ficção, desmistifica  esses enredos, em função de uma tese que pretende troçar de Deus como criador do Céu, da Terra e dos seres animados, um Deus criado pelo Homem, à sua imagem, pondo em causa os critérios de justiça e pertinência que movem o Senhor, segundo as tais histórias bíblicas forjadas por homens, em séculos recuados.
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Deste modo Caim, o desesperado, por ter sido injustiçado, matará Abel – por não ter podido matar Deus - e à conta disso viverá exilado, mas salvaguardado, pelo mesmo Deus, afinal generoso – quem sabe se arrependido - com a marca protectora daquele na sua testa. Terá descendência, mas ao contrário de uma Bíblia omissa na revelação da sua vida e morte, Saramago entretém-se a transpor essa vida no tempo e no espaço, acompanhando-o no seu vaguear, em ziguezagueios anacrónicos que ora implicam o caso de Isaac, salvo por Caim, por atraso dos anjos destinados a evitar que Abraão consumasse esse sacrifício do filho, imposto por Deus, não tão injusto assim, porque o evitou, apenas desejando testar a obediência e devoção de Abraão; ora com a participação de Caim na confusão das línguas aquando da construção da Torre de Babel e sua destruição pelo Senhor indignado pela arrogância humana de atingir o Céu; ou nos sofrimentos e reconciliações de Job; ou na sua participação inesperada como passageiro da Arca de Noé, por imposição piedosa do mesmo Deus que, segundo a Bíblia, decidido a matar a humanidade pecadora por ele criada, só salvará do dilúvio o homem justo Noé e a sua família, mais um casal de animais de cada espécie terrena. Na ficção de Saramago, contudo, o rancor de Caim pelo Senhor que criou nele o remorso pelo fratricídio que cometera, fará que, embarcado na Arca, indiferente à bondade do Senhor para consigo, depois de conviver eroticamente com as várias mulheres dela, acabe por matar todos os passageiros da Arca, em gesto vingativo e desafiante ao poder de Deus, assim relativizado.
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Um desafio que já Torga, hostil à ditadura de Salazar, utilizara no conto dos “Bichos” – “Vicente” – o corvo rebelde que, farto da humilhação suportada durante quarenta dias fechado na Barca, se lança espaço fora à procura de terra e de liberdade, obrigando o Criador, “para salvar a sua própria obra” a fechar, “melancolicamente, as comportas do céu”.

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Uma mistificação afinal, não superior à da imaginação dos criadores das histórias em banda desenhada ou dos filmes de animação, férteis em proezas desmedidas de magia dos seus heróis, que vencem o tempo e as forças do homem real.
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Mas a obra de Saramago é escrita num estilo seguro, de intenção filosófica, de alguém que, recusando Deus, como pura criação do Homem, sem admitir a eterna angústia humana perante o Incognoscível, se propõe troçar das histórias criadas por homens, numa irreprimível vontade de destruição do mito, pondo em causa isso que várias gerações deixaram registado, e onde tantos souberam mergulhar para traduzir beleza, sensibilidade e também humor, ou paralelismo com as vivências próprias.
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É o caso do extraordinário soneto de Camões “O dia em que nasci moura e pereça”, transposto directamente das lamentações de Job, é o caso do exemplo infra, de Victor Hugo que, na “Légende des Siècles”, descreve, em terno quadro expressivamente romântico, o encontro em Belém da moabita Rute com Booz adormecido, a ela destinado. A aliteração, pelo predomínio dos sons f, fl, l da quadra citada, favorecem a recriação do ambiente, numa paisagem nocturna de estio acariciante, com uma brisa tranquila envolvendo o casal predestinado:
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“Booz ne savait point qu’une femme était là
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Et Ruth ne savait point ce que Dieu voulait d’elle.
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Un frais parfum sortait des touffes d’asphodèle

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Les souffles de la nuit flottaient sur Galgala. »
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E tantos mais  exemplos a referenciar, na literatura de todos os tempos, no cinema, na arte, para contrapor, à amargura e violência da tese de Saramago, algumas amostras de arte e beleza, presentes nesse livro que se tornou “O Livro” da Humanidade, no extraordinário engenho das suas várias revelações, síntese de uma religião –  credível ou não – que admite um só Deus Criador, contrariando outros mitos – igualmente belos e igualmente cruéis – mas poderosa e necessária a todos os que, com ou sem recursos de apoio às misérias humanas, aceitam no coração esse apoio único de uma fé salvadora.
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Berta Brás
PortugalClub - sáb 07-11-2009 16:17
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