segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Grande entrevista a Urbano Tavares Rodrigues

A23 Online
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Prosador maior da nossa literatura, lançou esta semana a novela “Assim esvai a vida”, com a chancela da Dom Quixote, em entrevista exclusiva a A.23, Urbano Tavares Rodrigues desfia meio século de memórias e fala sobre a sua obra, o seu estilo e as suas influências.
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Por Ricardo Paulouro e António Melo Fotos Rui Dias Monteiro
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Começou a publicar há mais de 50 anos. Mas muito lhe devem a critica e a teoria literárias do século XX. “Assim esvai a vida” é a sua última obra que é, mais uma vez, um desejo de reflexão antropológica com o leitor. No tecido literário, Urbano Tavares Rodrigues cruza vários fios. Homem sedutor e generoso, é difícil traçar um retrato preciso de alguém que permaneceu fiel às suas convicções e à ética que lhe sustenta a literatura e a vida. Esta semana lançou o seu mais recente livro “Assim esvai a vida”, em entrevista exclusiva a A.23, Urbano Tavares Rodrigues desfia meio século de memórias
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Romance histórico: “O Campo das Promessas” e “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato”
No romance “O Campo das Promessas”, atraiu-me fundamentalmente o sonho do Vasco da Gama de ir à Índia e desbravar mares e terras, bem como o diálogo que se estabelece entre ele e o amigo. Um diálogo de um homem de acção e um homem de reflexão, que é o diário entre um homem da Renascença e um homem que já pertence ao futuro e que sonha com um futuro diferente. “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” foram feitos com prazer e com sofrimento. Não sei se será um livro de testemunho, um livro de testamento, certamente que é. Eu diria que é um livro da procura da serenidade, através da angustia e através do remorso, da perplexidade e da luta. O Prior do Crato não era exactamente o homem fadado para ser o rei de Portugal e para encabeçar a luta contra Espanha. Já Jorge de Sena o tinha sentido também, na peça de teatro o “Indesejado”. Aqui ele é um místico sem Deus, ou alguém que O procura através da sensualidade, através da batalha, através de múltiplas experiências, encontrando a sua serenidade, de certo modo, no final do livro. Ele recusou o lado obscuro, o lado proibitivo e, então, eu diria, a parte final do livro, quando ele já se encontra em França a envelhecer, é justamente de uma serenidade perturbada que está no encontro do homem com a totalidade.
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Testemunho ou Testamento
O Prior do Crato tem muito a ver comigo . Escolhi-o um pouco por isso. Ele é um herói de causas perdidas, como eu fui na luta durante a minha vida toda, durante o fascismo e,depois, lutando por uma democracia avançada, a caminho do socialismo.”Os Cadernos Secretos do Prior do Crato” retrata a agonia de uma pátria que só vai ressurgir em 1640. Mas é também um testemunho de mim próprio, até mesmo na relação dele com as mulheres. Há qualquer coisa de experiências minhas também, de uma reflexão sobre o direito que se tem de, no fundo, utilizar as mulheres como objectos de descoberta e prazer. É essa curiosidade do ser humano e essa sensualidade que ele sente como remorsos que me atraiu. Esse remorso é também testemunhal
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Deus
Foi uma necessidade minha para criar o Prior do Crato. Este livro é mais Prior do Crato do que Urbano Tavares Rodrigues porque o Prior do Crato é um homem que pensa no além e o livro em Latim mostra isso. No meu livro, a ideia de Deus esbate-se um pouco e o Prior do Crato já é outra vez Urbano Tavares Rodrigues, sem deixar de ser o Prior do Crato, nessa procura que é o Uno, que é a unidade de todas as coisas e que seria uma visão quase panteísta, algo que me é intrínseco.
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Regressar ao Alentejo
É sempre bom regressar ao Alentejo. Eu procurei isso mesmo, uma escrita muito limpa, mas ao mesmo tempo poética sem ser barroca. Uma poesia que não se deve sentir muito mas que está lá.
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As personagens femininas
Em “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato”, Elisabeth de Vignancour foi uma personagem criada por mim. A única referencia que tenho é que o Prior do Crato teve uma relação com uma senhora em França. Sabe-se que o Prior do Crato teve experiências eróticas acauteladas quando era governador de Tanger, mas não se sabe com quem Por isso inventei também Amina, uma algarvia levada para Marrocos e que depois se apaixona pelo Prior do Crato. Representa o encantamento erótico, o prazer quase puro, que é a mescla da sensualidade e da ternura e da aceitação de uma dádiva.
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As duas são completamente diferentes. Uma é só sentidos, a outra é a cabeça.
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Misericórdia
A palavra misericórdia é uma palavra que tem um valor não só cristão mas tem também um sentido universal, quer dizer a compaixão, partilhar do sofrimento dos outros. A entre-ajuda é um valor que está presente em toda a minha obra. Eu sou marxista mas nunca achei que lutar pela transformação do mundo seja suficiente. É preciso lutar no concreto por cada ser humano.
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O que posso saber, o que posso fazer, o que me é licito esperar
O que é licito esperar é aquilo que qualquer ser humano, em alguma fase da sua vida, se terá interrogado: o que há para além da morte? Eu sou um agnóstico, não acredito em Deus mas não nego a possibilidade de haver uma experiência de energia, ou uma forma superior de matéria que nos sobreviva e que seja, portanto, uma continuação da espécie. O Oscar Lopes creio que partilha um pouco esta minha idéia, sendo também marxista. Isto é, não vejo a divindade de Jesus, mas tenho uma grande simpatia pela figura de Jesus como alguém que vem pregar uma fraternidade, que procura uma redignificação da mulher, que tem ao seu lado os mais pobres e deserdados. A mensagem de Jesus é uma mensagem que a igreja católica tradicional hoje condenaria. Se Ele cá voltasse seria outra vez cuxificado, seria outra vez o Cristo.
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Do marxismo ao capitalismo
Eu diria que não há dúvida que o desaparecimento da União Soviética veio demonstrar que havia certos erros que não podem  voltar a ser cometidos. O repensar as possibilidades do socialismo no futuro é absolutamente legítimo. Creio que o marxismo nunca foi tão importante como hoje, que é preciso lutar contra a forma extremamente egoística do capitalismo de mercado livre que conduz à miséria e à exploração, bem como à escravização de muitos seres humanos.
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Obras completas
Eu tinha a necessidade de publicar tudo sob a forma de “Obras Completas”, mesmo as coisas mais fracas, como por exemplo, “As horas perdidas”, que deve ser o meu romance mais fraco, escrito ainda antes dos vinte anos. Talvez porque me queria rever por inteiro com as minhas idéias, a minha sensibilidade, com aquilo que fui, com aquilo onde falhei, com aquilo onde acertei.
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Família
A Isabel (Fraga) tem mais influência da mãe, embora também tenha algumas marcas do pai. Acho que é uma escritora cheia de talento. Ela é uma escritora como a Maria Judite de Carvalho, um pouco secreta, que não gosta de se expor. Geralmente tenho o privilegio de ser o seu primeiro leitor.
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Geração
É curioso, eu não sou surrealista mas sofri uma grande influência do surrealismo francês que li desde muito cedo. O Manuel Gusmão, numa analise à minha escrita, refere elementos surrealistas muito sensíveis, no Alentejo mágico, em a “Porta dos Limites”, em muitos textos da “Noite Roxa”. Até hoje nunca desapareceram completamente as marcas existencialistas, nem as marcas surrealistas.
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Maior escritor português do século XIX
Para mim é o Eça de Queiroz. A omissão de Eça em Teixeira Gomes é fruto de uma moda. Ele o Fialho de Almeida toda essa geração reage contra o Eça. É a vontade de matar o Pai.
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Existencialismo e Neo-realismo
Eu regressei a Portugal e comecei a trabalhar como jornalista no Diário de Lisboa. Isso deu-me uma imagem da vida e do poder. O fascismo português repugnava-me. Eu tinha uma ânsia de luta enorme que faz com que escreva livros de resistência que se confundem com o Neo-realismo, um período onde escrevi “Uma pedrada no Charco”, “Os insubmissos”. No entanto, mesmo nesse período, nunca abandonei características que não são neo-realistas, como a convicção de que não se pode separar o conteúdo da forma, quer dizer, tenho preocupações estéticas ao nível da linguagem que o Neo-realismo nunca teve, ou teve muito pouco. Por outro lado, não tenho um herói colectivo e os meus livros desaguam muitas vezes em zonas muito sombrias. Em relação ao povo tenho quase sempre uma visão subjectiva que não é própria do Neo-Realismo e aparece apenas, em certa medida, em Carlos de Oliveira, que é um Neo-Realista muito sui generis. Nunca cheguei a ser verdadeiramente um Neo-Realista. Fui, sobretudo, um escritor de resistência que, por vezes, se pode confundir com o escritor neo-realista.
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Estilo
O meu estilo é a mistura do estilo de Teixeira Gomes, um estilo que tem a ver com o decadentismo e o simbolismo, e o Camilo Pessanha que me marcou profundamente e cujo onirismo marcou muito a minha escrita.
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Fernando Pessoa
Li muito Fernando Pessoa e interesso-me muito pela sua obra. Não sou dos escritores, como Vasco Graça Moura, que o recusa. Eu, pelo contrario, acho que ele é um pouco o pai de todos nós, em muitas coisas. Não seria o escritor que sou se não tivesse lido Fernando Pessoa. Ele estilhaça a língua portuguesa, sobretudo com o Álvaro Campos.
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Prémio Nobel
Se o Saramago não tivesse ganho bem poderia ter sido o António Lobo Antunes. Poderia também ter sido uma poetisa como Sophia de Mello Breyner.
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Leituras
No que diz respeito a uma geração mais nova de escritores, gosto muito de ler o José Luis Peixoto e o Possidónio Cachapa. Vejo surgir três escritores muito interessantes que são a Dulce Maria Cardoso, a Maria Antonieta Preto e a Patrícia Reis, com talentos diferentes. O Gonçalo M. Tavares, embora não seja da minha família, acho que é um escritor com futuro.
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Novo Livro
Um livro de contos inéditos que foram escritos em alturas diferentes da minha vida, ao longo dos últimos anos, e mostram várias maneiras de escrever. Contos realistas, contos de humor trágico, contos mágicos, contos alegóricos. Apostei mais na grande variedade da escrita do que propriamente na unidade. A unidade terá de ser uma procura no meu estilo que percorre um pouco todo o livro.
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