sábado, 20 de fevereiro de 2010

Manuel Bandeira - Vida e alguma poesia



Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
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Poética
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Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
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Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
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Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
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- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
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Desencanto
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Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
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Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
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E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
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- Eu faço versos como quem morre.
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Arte de Amar
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Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
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Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
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Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
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Quando estás vestidas,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.
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(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.
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Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite
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O último poema
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Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
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A morte absoluta
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Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
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Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
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Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
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Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
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Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
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Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome. 

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Recife PE


Brasil

Época:
Modernismo (Primeira Geração)
Manuel Bandeira (Recife PE, 1884 - Rio de Janeiro RJ, 1968) teve publicado de seu primeiro poema, um soneto em alexandrinos, na primeira página do Correio da Manhã, em 1902, no Rio de Janeiro. Cursou Arquitetura, na Escola Politécnica, e Desenho de Ornato, no Liceu de Artes e Ofícios, entre 1903 e 1904; precisou abandonar os cursos, no entanto, devido à tuberculose. Nos anos seguintes, passou longos períodos em estações climáticas, no Brasil e na Europa. No sanatório de Clavadel (Suíça), onde esteve entre 1913 e 1914, travou amizade com Paul Éluard e tomou contato com a literatura de vanguarda francesa. Voltando ao Brasil, passou a viver no Rio de Janeiro, onde publicou A Cinza das Horas, em 1917. No mesmo ano, teve publicada sua primeira crônica, no periódico carioca Rio Jornal. Apoiou a Semana de Arte Moderna, em 1922; seu poema Os Sapos foi lido por Ronald de Carvalho, em uma das sessões do Teatro Municipal de São Paulo. Nas décadas seguintes, aliou à produção poética a colaboração em periódicos, como cronista e crítico literário, e a tradução de mais de 30 obras. Lecionou no Colégio Pedro II, entre 1938 e 1943, e na Faculdade Nacional de Filosofia, entre 1943 e 1956. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1940. Fazem parte de sua obra poética os livros Libertinagem (1930), Mafuá do Malungo (1948) e Estrela da Vida Inteira (1966), entre outros. Manuel Bandeira, cuja obra vincula-se à primeira geração do modernismo, é um dos maiores poetas brasileiros. Sua poesia, marcada pela experiência trágica da tuberculose, trata da morte, do amor e do cotidiano, em versos livres nos quais se destacam o humor, a melancolia, por vezes a amargura diante da vida. Como cronista, “foi um observador atento e lúcido dos fenômenos de uma época em que se desenvolveram tantos fatos notáveis para a história da Humanidade”, segundo o crítico Stephan Baciu.




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  compiladas por  Luis Rodrigues
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