domingo, 31 de dezembro de 2023

Nuno Ramos de Almeida - Um dia escreverei um texto novo para 2024, mas não será hoje

 OPINIÃO - 

* Nuno Ramos de Almeida´

(Diário de Notícias 31 Dezembro 2023)

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Gosto de reescrever textos, para além de roubar tempo ao trabalho, é uma espécie de mantra em que se pode convocar o passado e evocar gente que amamos, mas que não está presente entre nós. As palavras são uma forma de encantamento que trazem à vida quem determinou o nosso caminho e reafirmam as nossas fidelidades.

Persistimos em pensar que não nos esgotamos na morte e que os que ficam são uma espécie de continuidade sem nós, como os nossos persistem, no tempo, nos nossos atos.

É óbvio que o que pensamos tem muito a ver connosco e a nossa circunstância e que não somos nada, sem sermos em relação aos outros em que nos inserirmos. Mas vamos à história recontada.

Numa altura em que se branqueiam os negros tempos quando não tínhamos liberdade e transformam os amigos dos ditadores de turno em heróis da liberdade, a memória torna-se uma arma no presente. A única vantagem de ter vivido tempos é que eu sei o que é a ditadura, a revolução que faz meio século e a liberdade, simplesmente porque vivi. Aqui fica um conto sobre esse fio de tempo, como agora se diz.

Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas onde viviam crianças. Era membro de uma comunidade, embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas, na altura, isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.

Tinha a nítida sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Nesse coletivo estavam pessoas de muitas raças e países. Anos antes, andava na escola francesa em Argel. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados políticos. A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha corrido pelas ruas. Milhões haviam morrido nos bombardeamentos dos franceses. A tortura durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem aguentar sem falar três dias - apenas três dias, para permitir mudar os contactos e resistir à repressão. Depois da independência, a cidade viveu um sonho estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações. Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vivido em prédios europeus. Mais tarde, o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrado com o nome de Che. Já adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.

Eu frequentava uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam, batiam-nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que algumas das nossas pedras lhe acertaram em cheio. Quando nos bateram a seguir, quase não doeu. Anos mais tarde, em França, numa casa de apoio de camaradas do PCF (Partido Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em Portugal. Por causa dos "maus", a PIDE, tinha de escolher um nome. Um nome diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio que os meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era, de facto, grande. Caminhei até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no dia seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de ferro. Chegámos a Lisboa e arranjámos uma casa clandestina. A minha mãe mobilou-a com todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na área social, para passarmos por uma família normal. Gastou menos que o previsto, estava feliz. Mas, mais tarde, o camarada responsável pelas casas criticou-a por ter gasto dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu esquecer o facto. Quando, anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos o aparelho clandestino, pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e respondeu, dura: "Diz ao fulano (o camarada com quem ela tinha discutido) que compro tudo menos o esquentador."

https://www.dn.pt/opiniao/um-dia-escreverei-um-texto-novo-para-2024-mas-nao-sera-hoje-17583454.html 


Odete Santos, entrevistada por Anabela Mota Ribeiro

 Tem a cara sulcada pela vida. Uma mulher sofrida. Mas robusta como uma rocha. Cresceu nas Beiras, entretida nas leirinhas dos avós, a correr lado a lado com o vento, de bicicleta. Sem irmãos, entre um pai de veia revolucionária e uma mãe arreigada ao conservadorismo. É miúda, ainda muito miúda, a pequena Odete, quando se muda com a família para Setúbal, onde ainda vive. Quando moça, apaixona-se pelas metamorfoses do teatro e pela desventuras da História. Cede ao Direito. Participa em tertúlias secretas, dominadas pelos ideais da liberdade e do altruísmo. A vida académica marca o início de uma actividade política que a há-de levar à bancada parlamentar, mesmo que a adesão formal ao PCP só aconteça depois do Abril de 74.

Casou e divorciou-se. Teve dois filhos. Perdeu um dos seus meninos num desastre de viação. Uma dor insuperável. Se ao menos tivesse um Deus a quem se agarrar... Fez-se, então, robusta como uma rocha. Como a conhecemos, apaixonada, emotiva, comovente. Na defesa dos justos e dos bons e dos outros todos. Como um anjo da guarda que intimamente deve ter querido ser quando pediu ao pai para lhe comprar umas asinhas com as dos meninos da procissão. Dezoito anos depois de ter chegado, amedrontada, ao parlamento conhece os píncaros da popularidade. O país rende-se ao humor do boneco do Contra-Informação (que, afinal, era para ser não Odete, mas sim uma cantora de ópera); e transforma-se numa das faces mais visíveis da luta pela despenalização do aborto. A conversa decorreu numa sala de S. Bento, fumou muitos cigarros. Não parecia muito feliz nessa quinta-feira. E contudo... 

É mesmo verdade que a curto prazo vai abandonar a Assembleia?

Não, não há nada de definido sobre isso. Eu disse qualquer coisa no género: «Um lugar de deputado não é vitalício; já cá estou há 18 anos e com certeza não estarei muito mais tempo». Mas não disse que seria amanhã ou que deixaria de vir na próxima legislatura.

Nestes dezoito anos teve alguma vez vontade de abandonar, de mudar de vida?

Uma vontade séria, séria, não. Às vezes há desabafos nos momentos de maior pressão. Mas eu gosto do trabalho na Assembleia, de preparar iniciativas legislativas, de as discutir e tenho aprendido muito aqui.

Não se sente desgastada com as coisas comezinhas?

Tenho momentos de desespero por ver certas coisas entravadas.

Que outra vida poderia ter se não fosse o parlamento e a advocacia?

Tive de pôr umas reticências na advocacia. Tenho alguns processos pendentes porque não quis largar as pessoas. Muito pouco. O que sempre quis fazer na vida só pude fazer transitoriamente: gosto muito de teatro e fiz muito teatro amador.

Porque é que tirou Direito?

Eu era muito nova, gostava muito de polémicas, de debater coisas. Fiz uma imagem da advocacia inspirada em livros policiais do Perry Mason; aqueles debates conduziam sempre à vitória e à absolvição dos réus.

Era uma ideia gloriosa da advocacia.

Era. Durante o curso apercebi-me que não seria assim. O ensino era muito livresco e desinteressante. Não abandonei porque cada ano representava um investimento e grandes sacrifícios dos meus pais.

Foi instigada por eles para tirar Direito?

Não. Quando terminei o liceu o que mais gostava era História; mas as saídas resumiam-se ao ensino e pouco mais. Ainda me inscrevi mas fui mudar de alínea porque, aí sim, tive muitos conselhos para o fazer. Terá sido providencial que o tenha feito. Tive problemas políticos no final do curso e fui proibida pelo conselho de ministros presidido por Oliveira Salazar de ser funcionária pública. Concorri para notária, o que já reflectia um desencanto em relação ao Direito.

Foi na Faculdade que se envolveu nas primeiras questões partidárias?

Sim, foi na Faculdade.

Não havia qualquer tradição na família?

A maior parte da minha família é conservadora. O meu pai, que não é, marcou muitíssimo a minha educação. Foi criado num meio provinciano e conservador do pequeno campesinato das Beiras e, com a vinda para Alpiarça, apercebeu-se dos problemas que ali se viviam e foi muito influenciado por eles. Lembro-me de ser muito nova e de me ler passagens d’ O Cavaleiro da Esperança do Jorge Amado, nas páginas em que se descreve a prisão do casal de alemães levado para um morro e obrigado a abrir a sua sepultura.

A sua mãe tinha um lado mais conservador, católico?

A minha mãe tinha medo da política, achava que não nos devíamos meter nisso porque dava muitos sarilhos. Era profundamente católica, mesmo que divergisse nalguns aspectos. Não acreditava no dogma da infalibilidade do Papa; e, em relação ao aborto, achava-o preferível a algumas situações dramáticas.

Como é que resolveu o problema com o Divino, entre um pai com uma forte veia revolucionária e uma mãe conservadora?

O sentimento do Divino nunca o tive, verdadeiramente. Via os anjinhos nas procissões com as asas e gostava de ter umas; mas era tudo muito ritual e não sentido. Depois, houve coisas que me foram marcando negativamente. Naquele tempo ainda se dizia na catequese que o Inferno tinha caldeirões de azeite a ferver e os diabos estavam lá a picar as pessoas com a forquilha; que tocar na hóstia com os dentes era pecado mortal e eu sofria horrores quando ia comungar. Entretanto, deu-se a minha passagem para Setúbal, um meio completamente diferente onde estes rituais eram desvalorizados e não ir à missa não era visto como um pecado.

Foi numa idade de transição essa ida do Sabugal para Setúbal?

Tinha dez anos. Mas a igreja católica comigo teve azar porque aconteceu que tive como professor de moral um padre que era muito mau, muito mau mesmo.

Ou seja, nunca teve medo de ir para o Inferno?

Não. O meu pai dizia: «Como é que pode ser verdade que aqueles que fazem o mal toda a vida e andam a explorar os outros vão ao domingo à missa e têm os seus pecados perdoados?».

A absolvição não seria possível?

Não pode ser um arrependimento com medo da morte. Se se leva a vida toda a fazer o mal não é possível.

Se estava liberta do Divino como é que apareceram as barreiras que delimitam o Bem e o Mal?

As noções de Bem e de Mal são criadas pela própria pessoa. O Bem é o que contribui para a felicidade da grande maioria da sociedade.

Mesmo que isso implique a anulação do indivíduo?

Penso que nunca implica a anulação do indivíduo. A felicidade individual não é desligada do colectivo. Quando se luta para que alguns factos se alterem está-se a contribuir para a sua própria felicidade. Porque dá gosto.

Se se tiver uma veia altruísta.

Pois, o problema reside no ser humano e no egoísmo do ser humano. Descobri muito tarde, há poucos anos, que, ao contrário do que pensava, o ser humano, de uma maneira geral, é egoísta. A grande maioria dos homens e das mulheres têm secretamente um egoísmo que, em determinados momentos civilizacionais, em épocas de recessão, desperta. Mas não creio que isto seja uma fatalidade.

O caminho passa por contornar esse egoísmo, aprender a viver com ele?

O caminho está em conseguir um nível de progresso que leve as pessoas a aprender o altruísmo. Isto é muito demorado, como é óbvio. Mas respondendo à sua pergunta, não acho que o individual deva ser submetido ao colectivo. Acredito que é possível conciliar as duas coisas. Há pessoas heróicas, e eu não estou nesse grupo, que abdicam e já sentem isso como uma felicidade individual. Verifica-se na vida dos Santos.

Subjacente ao comunismo há a ideia da supremacia do social ao individual.

Eu não definiria assim o comunismo. O comunismo, enquanto sistema, nunca existiu. Para mim o comunismo é um estádio tão avançado em que a felicidade individual se confunde com a colectiva. Na construção do socialismo o objectivo é o de conseguir transformações sociais de que beneficie o colectivo sem com isso sacrificar as liberdades individuais fundamentais. Se se sacrificarem não há felicidade colectiva, pode haver um simulacro de avanço colectivo. Nalguns países que foram do bloco socialista acabou por se verificar que havia avanços no campo da saúde e da educação mas não houve, ao mesmo tempo, uma política que garantisse as aspirações de liberdade das pessoas. Penso que teria sido possível conciliar as duas coisas.

A liberdade e o altruísmo foram valores fundamentais que passou aos seus filhos?

Eu creio que sim, tive o cuidado de transmitir. Só tenho um, neste momento, porque o outro morreu.

Essa é uma dor insuperável, não é?

É verdade, nunca desaparece. É uma dor única. Também já senti a perda da mãe e não é a mesma coisa. Eu creio que lhes transmiti esse amor à liberdade e aos direitos fundamentais e o respeito pelas convicções das outras pessoas.

Acha que a dor é fundamental para crescer enquanto pessoa?

Era bom que fosse possível crescer sem dor mas penso que a dor constrói a maturidade. Se a dor é sentida fora de tempo a personalidade pode vir a reflectir-se disso atingindo um desencanto cedo demais. Contraditoriamente a dor ajuda a crescer e a resistir.

Onde é que se vai buscar a força?

Depende das pessoas. Há pessoas a quem a força destrói. Eu sou assim também por influência do meu pai. Quando acontece qualquer acidente, qualquer facto grave, sempre ouvi o meu pai dizer que o que é preciso é continuar para a frente. Isto ajudou a conhecer períodos menos bons da vida mas a ultrapassá-los. Resistindo, lutando.

É uma optimista.

Sou. Não sou irrealista, conheço perfeitamente as dificuldades. Sou uma optimista porque penso que tenho de ultrapassar aquilo. Foi o que pensei quando o meu filho morreu. Que era uma dor horrenda mas que tinha de a ultrapassar. Isso ajudou-me muito.

Agarrou-se a si mesma? Um Deus é, normalmente, um muito bom conforto para estes momentos insuportáveis.

Não me agarrei sequer ao meu pai. Nestas situações é muito fácil a uma pessoa que teve uma formação católica voltar a cair, retomar a ideia do Divino. Porque a angústia eterna do homem é o fim e depois do fim não há nada. E o nada é uma coisa terrível. Agora já não penso tanto nisso; mas lembro-me de pensar: «Um dia a Terra acaba; e depois?»

Nunca pensou em morrer?

[pausa] Já, já pensei que seria melhor, já teria vivido e não faria mal nenhum se morresse; qualquer pessoa, às vezes, pensa nisso. Mas nunca foi um pensamento decidido, não tenho ideias suicidas.

Voltemos à sua Faculdade. Há pouco tinha ficado suspensa a ideia da sua entrada para a política com os movimentos estudantis. Como é que começa a participar nesses ambientes de tertúlia?

Fundamentalmente foi com as greves de 1962. O regime tinha conhecido algumas derrotas: a perda da Índia, a fuga de Peniche, a revolta da Sé e a proibição do Dia do Estudante. Foi nessa altura que começou a minha participação nos movimentos estudantis. Já antes tinha sido convidada para integrar uma célula do Partido Comunista Português. Tinha uma colega com quem falava muito de política.

Uma colega?

Uma colega.

Como é que era nos tempos de Faculdade? As suas companhias eram mais os rapazes ou as raparigas?

Acabei por estar integrada num grupo em que eram mais rapazes que raparigas; mas era indistinto. Lembro-me de uma figura a quem eu achava imensa piada e que no outro dia vi na televisão, o Marquês da Fronteira. Também nessa altura conheci o António Vitorino d’ Almeida que ía lá já com uma bengalinha. Havia grupos muito interessantes que se juntavam na cantina universitária.

Mas hoje dá-se mais com homens ou com mulheres? É-lhe indiferente?

Hoje dou-me mais com homens. Quando entrei para a advocacia, em Setúbal, era a única mulher e os contactos começaram a ser muito com os colegas.

As mulheres têm algumas características de que não goste particularmente? O que é que lhe desagrada na ideia da feminilidade?

A mim não me desagrada nada, bem pelo contrário. Acho que é próprio da mulher. Umas são mais que outras.

Quando falei de feminilidade a imagem que me ocorreu foi a das depilações. Não consigo imaginá-la a falar com uma amiga num sábado à tarde se prefere a depilação com cera ou com gillete.

Bom, eu não falo porque não tenho tempo. Mas o que é certo é que faço depilação com cera. [risos]

Mas esse ritual feminino, essa conversa das sombras e dos batons, das roupas e dos cabeleireiros, é uma coisa que lhe dá prazer?

Com os batons eu chego e compro, não estou a discutir se é este ou aquele.

Dá-lhe prazer a participação e o consumo desse universo?

Dá-me prazer comprar um perfume, porque gosto. Não me dá prazer passar uma hora ou duas a falar dessas coisas. Mesmo com as mulheres há outras conversas mais interessantes, penso eu.

Nunca deu por si a trocar impressões com uma amiga sobre os sítios onde a roupa é mais bonita e mais barata?

Mais barata e para a minha medida, isso já perguntei.

Tem a preocupação de ficar bonita quando se vê ao espelho?

Conforme os dias. É por períodos e depende de como me sinto. Há dias em que me apetece pintar e até me sei pintar. Mas eu bonita nunca fui.

Podemos sempre alimentar-nos da fórmula clássica da beleza interior.

Já mudei muito de opinião acerca disto. Um exterior agradável ajuda o interior a subir. Nos dias em que me sinto tão mal, tão mal não me interessa nada o que estou a ver na minha frente.

Esse processo de sedução com o espelho é para si ou pensa no espelho social?

Neste momento é fundamentalmente para mim. É diferente com a idade. Houve uma altura em que também era social.

Como é que vive os seus 57 anos?

Fisicamente sinto que tenho 57 anos e que essa da juventude estar no espírito é mesmo uma grande história. Penso que é importante a pessoa sentir-se jovem, e eu sinto-me, mas a decadência física existe, não é construída pela pessoa.

Sente no corpo a noção de finitude?

Sim, sinto falhas de memória, dores que incomodam, o tempo que varia. Afligem-me, sobretudo, as falhas de memória. Os 57 sinto-os fazendo o diferencial entre os anos que vivi e os que terei para viver. Pensar que vivi 24 anos a seguir ao 25 de Abril e que se durasse mais 24 teria 88.

Está cansada? Fala com uma espécie de desencanto como se fosse penoso para si chegar aos oitentas.

Pois, porque o que sinto é que a pessoa devia viver muitos mais anos.

Mas em que estado?

Em estado razoável. Viver decrépito não deve ter interesse nenhum. Impressionou-me muito aquela velhota da Galiza que tinha mais de cem anos e que queria morrer porque já ninguém do seu tempo era vivo. Por outro lado acho que a esperança de vida devia ser maior porque é muito bom estar cá e há muitas coisas a fazer. Tenho tantos livros lá em casa que comprei e não vou conseguir ler...

Sente uma nostalgia do vigor da juventude?

Sinto, apesar da imaturidade. Há coisas que compensam a falta da juventude, como perceber melhor o mundo; e isso dá prazer, apazigua.

Mas ainda é uma mulher muito ansiosa. Percebe-se até na forma como fuma e como está com o seu corpo exteriormente.

A ansiedade provém de uma permanente instabilidade na vida, de não me ter sentido nunca segura, a não ser quando era muito nova. A insegurança provoca a ansiedade.

Insegurança a que nível?

Não ao nível das ideias. Insegurança a respeito de uma vida garantida com o essencial. O medo de uma crise qualquer que deixe a pessoa despojada. Traduzindo em níveis económicos: deixar de ter a possibilidade de. De comprar um livro, de comprar um bilhete para o teatro.

É interessante vindo de si que tinha dois pais professores primários numa altura em que muita gente passava fome.

Os professores primários ganhavam mal, sabe.

Tem irmãos?

Não, sou filha única. Há muitos anos o meu pai ganhava 400 escudos por mês. Nasci na Beira Alta onde a vida era muito difícil, as pessoas trabalhavam a pequena leirinha de terra que dava muito pouco e aspiravam a uma vida melhor. Tinham muitas dificuldades mas poupavam o mais possível. Amealhavam uns tostões com medo de uma doença ou de qualquer coisa que pudesse acontecer. Isto transmitiu-se ao meu pai que tinha mão férrea no que toca a despesas. Quando vim para Setúbal a mentalidade era muito diferente. Quando havia pesca gastavam tudo, compravam ouro; quando não havia iam empenhá-lo. Era mais a vida do dia a dia. Mas eu nunca perdi o receio.

Então tem um pecúlio?

Tenho muito pouco. Não sou rica, nunca fui e não tenho aspirações a ser.

Nunca quis ser rica?

Não, mesmo como advogada sempre tive muitos clientes, mas eram sempre clientes que podiam pagar muito pouco. Nos tempos antigos até iam empenhar ouro para me pagarem os honorários.

A tentação da riqueza podia sossegar-lhe essa ansiedade.

Não tenho espírito para andar atrás do dinheiro.

Parece que tem um pudor muito forte em relação ao sucesso e ao dinheiro, o que até está muito conotado com a sua opção política.

Não tenho jeito para ganhar dinheiro. Tenho um feitio mais contemplativo e prefiro nem me incomodar muito.

Como é que vive, como é a sua casa?

Vivo numa casa que é nossa, em Setúbal.

Sente-se confortável na sua casa? Um conforto burguês.

Não acho que seja conforto burguês uma pessoas sentir-se bem em sua casa. É fundamental para o equilíbrio interior sentir-se bem na sua casa.

Quando estava preparar-me para esta entrevista tive imensa dificuldade em encontrar informação sua a título pessoal. Encontrei: Odete Santos, divorciada, dois filhos, pais professores primários. Há uma esfera muito resguardada que me fez pensar no Dr. Cunhal cuja vida privada nunca ninguém conheceu. Até parece que se trata de uma aprendizagem partidária.

Para a minha biografia oficial nada do que disse teria interesse, apesar de gostar de falar disto.

A mim interessou-me, pareceu-me ficar a conhecê-la melhor.

Gosto de falar da minha infância que foi extraordinária e que me deu capacidade para resistir. Foi livre, andava permanentemente na rua a andar de bicicleta. Tenho é a impressão que isto não interessa as pessoas

Não acredita que as pessoas se interessem por esta parte de si?

Pondo ao contrário, interessa-se por esta parte nas pessoas?

Sim. Em viagens ao estrangeiro, por exemplo, tive conversas que revelavam o lado humano de deputados de esferas políticas opostas. Não acho que haja pessoas totalmente boas ou totalmente más. Algumas têm um comportamento na sua vida, investidos dum estatuto social, que as torna desagradáveis; mas, ao fim e ao cabo, todas as pessoas que conheci acabam por revelar coisas interessantes.

Tem amigos verdadeiros aqui na Assembleia, a quem faça confidências, com quem partilhe experiências pessoais?

Eu não sou pessoa de fazer confidências. Quando acabo por dizer as coisas o problema já está ultrapassado. A minha primeira reacção é resolver o problema sozinha.

Será um vício de filha única?

Será o receio de sentir comiseração.

A compaixão não pode ser um sentimento nobre?

Pode. Tenho muito poucas pessoas a quem eu relato coisas que me acontecem; mas não são deputados.

E a si, fazem-lhe confidências?

Fazem mais no meu escritório, coisas que não têm nada a ver com advocacia. No meu escritório tem sido um desenrolar de vidas.

Tem ideia que, a partir do seu feitio, experimenta muitas máscaras? Não será por acaso que gosta de teatro, de vestir vários personagens.

Sim, isso é verdade.

A forma como está publicamente, expondo-se fisicamente...

Ah, os gestos...

Passa uma ideia de transfiguração, de transmutação. Qual é, afinal, a essência desta mulher que se expõe neste papel público ou nos papéis do teatro?

Nunca tinha feito essa análise. Há aqui várias coisas que se conjugam: uma delas é o desenraizamento, que nunca deixei de sentir por vir com dez anos para o litoral; e eu sou mais ligada à terra. Também há uma questão que se prende com o estatuto social, porque vivia numa vila onde era a filha dos senhores professores. Em Setúbal o meu estatuto era igual ao das outras pessoas. O desenraizamento criou-me uma personalidade mais fechada, mais metida comigo mesma. Já em criança gostava de fingir que era outras pessoas e isso acompanhou-me. Talvez seja uma defesa.

Tem algum herói ou heroína que gostasse de ser, nesse processo de fingimento?

Dependia dos livros que lia. Quando li A Mãe do Gorki fiquei apaixonada por aquela figura de mulher. Depois, há vidas que eu gostava de ter tido. A vida do John Reed que morreu aos trinta e poucos e que cobriu a revolução mexicana e foi para a revolução de Outubro, foi apaixonante. Sinto desgosto por não ter tido espírito de aventura suficiente (lá está o tal receio do futuro) para ter mandado o curso de Direito às urtigas e ter seguido teatro que me dava mais satisfação. Os meus heróis são aqueles que abdicam da estabilidade e não se importam com o futuro.

E nos seus sonhos, as situações são de aventura, de medo?

Nos meus sonhos, que tenho dificuldade em reconstruir, há situações de grande perigo, acontecem-me coisas terríveis, caio para dentro de um poço.

Não são sonhos heróicos onde assume a figura do John Reed?

Não, ao contrário, são sonhos de temor.

Quando é que o PCP passou a ser um sonho para si? Só aderiu formalmente ao partido depois do 25 de Abril.

Não é bem assim. Aderi ao PCP andava no terceiro ano de faculdade, tinha vinte anos e integrei uma célula que só se reuniu uma vez. Mesmo assim distribuíamos papéis, Avantes. Lembro-me de andar aflita com Avantes escondidos no soutien porque estava num semi-internato para filhas de professores primários onde fiscalizavam o guarda-roupa. Um dia decidi queimar aquilo na casa de banho e só não fui apanhada porque julgaram que eu estava a fumar. Depois foram as greves e houve uma grade razia de prisões no meio estudantil porque havia um indivíduo infiltrado, cujo nome nunca hei-de esquecer, o Nuno Álvares Pereira, que denunciou as pessoas todas. O Mário de Carvalho, o escritor, por exemplo. Eu tinha acabado o curso e o que me aconteceu foi não me deixarem ser funcionária pública nem me darem o diploma para leccionar no colégio de Setúbal. Ainda me chamaram à Pide uma vez com o Zeca Afonso. Com esta história e o desmantelamento da organização nunca mais fui contactada. A seguir ao 25 de Abril restabelece-se o contacto.

Quando adere formalmente ao partido tinha pretensões? Subir na escala hierárquica, assumir peso político, estar 18 anos na mesma bancada.

Eu nunca pensei estar cá 18 anos. Subir... O que sempre quis foi mostrar a minha opinião e debater. Quando vim para aqui é claro que fiquei satisfeita. Mas depois senti um medo terrível, via as pessoas todas habituadas. Eu, novata, sentei-me na última fila com o Octávio Teixeira. Pensei cá comigo: «Eu vou ficar aqui dois ou três meses e depois vou-me embora que isto é demais para mim».

A ideia do confronto intimidava-a?

Ao princípio sim porque tinha medo de não saber responder. Dava-se a circunstância de ser advogada na província. Aprendi muito aqui porque, mesmo sobre o Direito, adquiri uma visão extraordinária que não tinha.

Chegava a ser um sentimento de inferioridade?

Não era inferioridade, era receio. Por isso me preparava muitíssimo bem para os debates. Ainda hoje tenho medo que me falhe alguma coisa. Tenho uma falha na minha formação na área da filosofia, que acho fundamental.

Já não tem receio, a ideia do confronto já não a intimida?

Não, posso não saber alguma coisa, mas já sei contornar.

Deliberadamente não lhe fiz perguntas de teor político. Não prefere esse tipo de entrevistas?

As entrevistas políticas têm de ser muito bem pensadas.

 

Mas não teria de se expor tanto enquanto mulher. A sua verdadeira essência aparece aqui, muito mais emocional.

Nas entrevistas políticas a pessoa despe-se daquilo que lhe é mais pessoal porque há muita coisa e muitas pessoas que ficam em jogo. A entrevista política é mais incaracterística. Não tenho pudor em revelar fraquezas, embora em casa ouça o contrário, que a pessoa deve ser forte e deve mostrar força perante os outros.

Na sua casa vive com quem?

Com o meu pai e o meu filho.

O que é que faz o seu filho?

Estuda Sociologia em Évora.

Ele partilha das suas convicções políticas?

Inscrever-se em partidos, nem pensar, porque não tem feitio para isso. Mas partilha da mesma opção.

Para terminar, uma questão ligada ao aborto. Receia que o resultado do referendo seja Não?

Eu tenho uma grande esperança que seja Sim. Será um grande desgosto se for Não. Não como uma derrota pessoal. À medida que fui estudando o assunto fui-me apercebendo de que se trata rigorosamente de um drama das mulheres. Se falar enquanto mulher e não enquanto deputada considero que esta é uma velha querela entre as religiões e as mulheres. Nas religiões com que convivemos no mundo ocidental quem cria a vida é Deus e não a mulher. Sempre que há um processo em que fica patente que quem cria a vida não é nenhum Deus…

Uma desautorização de Deus?

Exactamente. Esta é que é a velha querela. Mas vou trabalhar para ajudar a conseguir o Sim.

 Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998

https://anabelamotaribeiro.pt/odete-santos-132048

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Manuel Loff - “O gueto está a ser liquidado”

OPINIÃO

Feitas as devidas proporções de tempo e população total, por cada ucraniano morto morreram já 246 palestinianos em Gaza. Parecem poucos?

Manuel Loff

27 de Dezembro de 2023, 7:00 


2022, 2023. Dois anos, duas guerras. Há um ano, com a propaganda macarthista, a preto e branco, a propósito da guerra na Ucrânia, já se percebia bem que, na narrativa dominante ocidental, a vida não tem o mesmo valor dependendo de quem a perde. Era assim no colonialismo, é assim hoje. Um ano depois, os mesmos governos ocidentais que asseguravam ver genocídio no comportamento das tropas russas (9,7 mil civis mortos nos territórios sob controlo da Ucrânia em 19 meses de guerra) ainda não viram nada que os levasse a denunciar Israel (como denunciaram a Rússia) no Tribunal Penal Internacional, depois de as tropas israelitas terem matado o dobro (19,7 mil) de palestinianos em Gaza só nos primeiros 2,5 meses desta nova campanha de represália, de terrorismo de Estado. Feitas as devidas proporções de tempo e população total, por cada ucraniano morto morreram já 246 palestinianos em Gaza. Parecem poucos?

Para Biden, Von der Leyen (ou para António Costa), quanto custa uma vida palestiniana? Quanto custa a vida de milhares de crianças, das centenas de profissionais de saúde, jornalistas, trabalhadores e voluntários das agências das Nações Unidas e das ONG humanitárias que, todos os dias, as bombas do ocupante israelita eliminam com, até agora, total impunidade? Face a todas as provas de um genocídio em curso contra um povo sujeito a ocupação, nenhum governo da NATO ou da UE impôs sanções a Israel (que viola o direito internacional há 75 anos e ocupa ilegalmente territórios palestinianos há 56) como impôs à Rússia ao fim de horas da invasão de território ucraniano. Não se abriram de par em par fronteiras para acolher refugiados palestinianos como se abriram para milhões de ucranianos, não se romperam relações comerciais, não se montou esquema algum de boicote cultural contra Israel como, de forma precipitada e desproporcionada, se montou contra escritores, artistas ou orquestras russas – pelo contrário, a campanha de boicote (BDS) que desde há anos está organizada contra a ocupação israelita é criminalizada em vários estados ocidentais (EUA, Alemanha) por ser “antissemita”!

Gaza ilumina com uma luz muito crua a nossa visão ocidentalista, preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o habita. Podem os israelitas matar, sequestrar (prender sem acusação nem julgamento é o quê?), violar todos os dias direitos humanos, que os Estados NATO não deixam de lhes fornecer, desde há décadas, apoio militar. Se se aplicasse a mesma retórica que se aplica na Ucrânia, não deveriam os mesmos Estados enviar armas para apoiar os palestinianos e o seu direito à autodeterminação, reconhecido em todos os tratados e resoluções das Nações Unidas?

Gaza ilumina com uma luz muito crua a nossa visão ocidentalista, preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o habita

Gaza proporciona todos os dias, de forma trágica, esse permanente “momento da verdade” de que falou Guterres. Hoje percebemos melhor até onde está a chegar a censura e o ataque à democracia que se sustenta neste discurso “choque de civilizações” que Israel tem imposto aos seus aliados ocidentais. Um dos mais extraordinários episódios é o da censura da escritora judia Masha Gessen. Por ter considerado “o termo 'gueto' mais adequado (...) para descrever o que está a acontecer em Gaza agora. O gueto está a ser liquidado” (The New Yorker, 9/12/2023), uma fundação ligada aos Verdes alemães suspendeu a entrega do prémio que lhe havia concedido. Teve sorte: por muito menos, professores têm sido expulsos das suas universidades, manifestantes presos, trabalhadores despedidos.

Os governos dos países NATO, na sua tradicional arrogância, falam como se pela voz deles falasse a “comunidade internacional”. Na sua descarada duplicidade, esta voz é mesmo só deles, e o que se ouve é pura hipocrisia. Até um antigo assessor para questões de segurança do governo israelita percebeu que “a Palestina ocupa atualmente um espaço simbólico. É uma espécie de metamorfose de rebelião contra a hipocrisia ocidental, contra esta inaceitável ordem global e contra a ordem pós-colonial” (David Levy, Guardian, 26/12/2023). E contra a crescente “israelização” a que assistimos do Ocidente: consenso nacional-religioso contra o “inimigo” interno, paranoia racista e muros contra os inimigos da “civilização”. A receita da extrema-direita.

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2023/12/27/opiniao/opiniao/gueto-liquidado-2074897


Daniel Oliveira -A política não é uma fábrica de “conteúdos”

OPINIÃO -  

*  Daniel Oliveira 

(Expresso 2023 12 27)

Houve um tempo em que a comunicação social relatava as campanhas, agora quer ser guionista. Os candidatos não devem ser donos absolutos da narrativa política, sem o incómodo de perguntas que perturbam a propaganda. Mas não têm de cumprir o papel de atores em polémicas diárias para encher chouriços

 

Esta campanha promete ser a mais longa de sempre. E temo que em vez disso permitir um maior esclarecimento sobre o programa de cada partido ou para conhecer os líderes de cinco partidos (dos oito com assento parlamentar) que concorrem pela primeira a legislativas – Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro, Rui Rocha, Mariana Mortágua e Paulo Raimundo –, sirva para deixar os eleitores exaustos, desmotivando-os. Porque o efeito dos ciclos noticiosos de 24 horas não tem sido manter as pessoas mais informadas, mas cansá-las mais depressa.

É natural que, quando saímos de uma maioria absoluta e se espera um período de forte instabilidade política, com dificuldade em construir maiorias de governo, o tema das alianças e dos entendimentos esteja em cima da mesa. O crescimento do Chega, a fragilidade da liderança do PSD, a chegada de Pedro Nuno Santos e a possibilidade de refazer a “geringonça”, tudo empurra para esse tema. Mas a três meses e meio de campanha têm de ser mais do que isso. Até por sabermos que, quando os resultados eleitorais vierem e estivermos num impasse, muito do que foi dito será necessariamente desdito. Temos de falar de grandes escolhas para o país, quando é certo que quase todos os protagonistas serão diferentes.

Infelizmente, já se percebeu o que as televisões, que acabam por marcar o ritmo de todo o processo mediático, nos reservam. Com um ritmo noticioso permanente e a necessidade de ter tema para comentar a cada hora, é preciso inventar uma polémica diária. O modelo tem sido sempre a mesma e promete repetir-se em dose aditivada. Já começou, aliás.

Um repórter que acompanha o líder de um partido faz uma pergunta, quase sempre sem qualquer conteúdo relevante para o futuro do país. O repórter que acompanha a campanha adversária pede, tantas vezes por indicação do editor, reação à resposta do outro. O jornalista que acompanha o primeiro pede nova reação ao primeiro sobre a resposta do segundo. E dez comentadores passam horas a discutir o tema de que ninguém se lembrará daí a uma semana. Os lugares em que as perguntas são feitas – uma fábrica, uma cidade, um centro de investigação –, pensados pelas campanhas como ilustração de uma determinada mensagem, proposta ou crítica, passam a ser paisagem, a que se faz uma referência rápida. Podia ser ali ou num estúdio.

Na realidade, toda a campanha podia ser, para as televisões, feita em estúdio. Sem povo, sem vida, sem outros intervenientes que não fossem os políticos e os jornalistas. Sem outros temas que não fossem os que a própria comunicação social escolhe e onde os políticos perdem a sua própria vontade e cumprem o dever de preencher a programação de televisões em confronto por audiências.

Esta colonização da política pela comunicação social é especialmente evidente quando os lideres são obrigados a participar em dezenas de debates em estúdio (se se seguir um modelo inicialmente pensado para cinco partidos, e não oito, chegaremos este ano aos absurdos 24 debates), tempo que retiram à interação com os eleitores.

Houve um tempo em que a comunicação social relatava as campanhas, agora passou a ser guionista das campanhas. A escolha dos temas não corresponde mais ao interesse geral do que se fossem os políticos a escolher. É determinada pelas audiências, o que implica polémicas de consumo fácil e rápido.

O ecossistema mediático atual, totalmente dominado pela rapidez superficial de televisões em confronto por uma audiência cada vez mais escassa – a restante migrou para as bolhas das redes sociais, onde o algoritmo do ódio trata de radicalizar os eleitores -, promove a superficialidade política. E neste ambiente, safam-se os que, na política, dependem da superficialidade.

Há uns dias, e só o pude ver porque vi na rede social do partido, Paulo Raimundo bem tentou resistir às insistentes perguntas dos jornalistas sobre as declarações de Passos Coelho, as afirmações de Pedro Nuno Santos sobre a “geringonça”, umas frases de Rui Rocha sobre Pedro Nuno Santos e outras de Mariana Mortágua sobre cenários eleitorais. Os jornalistas procuravam, desesperados, um novo ping-pong entre dois protagonistas, fossem eles quais fossem. E, também desesperadamente, o líder do PCP tentava que as decolações que passassem na televisão fossem sobre temas substanciais. Não é o único que tenta, quase sempre sem conseguir furar a barreira de fait-divers imposta pela comunicação social. Raimundo estava na fábrica da Matutano, no Carregado, mas, para as televisões, aquele lugar não passava de um cenário a dar colorido aos ecrãs. Raimundo estava ali para falar de leis laborais, cortes na remuneração das horas extraordinárias e as condições em que se trabalha por turnos neste país, coisas que afetam a vida concreta das pessoas concretas que não habitam nos estudos das televisões.

O esforço do PCP ou de qualquer outro partido raramente é bem-sucedido. Os jornalistas acham que os políticos têm o dever de seguir o seu guião e que não o fazer é sinal de desrespeito pela liberdade de imprensa. Mas é mesmo isto que os políticos devem começar a fazer. De preferência nos diretos, quando a edição não permite retirar tudo o que não cabe na história que já vinha escrita de casa.

Os candidatos não devem ser donos absolutos da narrativa política, sem o incómodo de perguntas que perturbam a propaganda. Mas também não têm de cumprir o papel de atores em polémicas diárias para encher chouriços nas programações dos canais de notícias e em telejornais com duas intermináveis horas. Até porque, no fim da campanha, serão os mesmos jornalistas, editores, diretores e colaboradores daqueles canais a explicar que tudo aquilo foi uma perda de tempo, uma campanha vazia, confrontos sem ideias nem propostas. Que, enfim, são campanhas como estas que desmobilizam os eleitores. Pois bem, está na altura dos candidatos escreverem o seu próprio guião. A liberdade de imprensa não está em causa quando aqueles que elegemos não aceitem ser apenas “conteúdo” do negócio mediático.

https://expresso.pt/opiniao/2023-12-27-A-politica-nao-e-uma-fabrica-de-conteudos-8e234320


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guilherme d’Oliveira Martins - Coração (Cuore), de Edmondo de Amicis

 


 


Guilherme d’Oliveira Martins

26 Dezembro 2023 — 07:00

O Risorgimento italiano tem raízes muito antigas. Dante, Petrarca e Maquiavel fazem parte de um longo caminho que culminou na unificação de Itália. Entre 1815 e 1870 confrontam-se os partidários da Casa de Saboia e do rei da Sardenha e os companheiros de Mazzini e Garibaldi. A saga contada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) em Il Gattopardo, imortalizada por Visconti, desenha-nos o pano de fundo. A guerra patriótica contra o Império austríaco, os ecos da Primavera dos Povos de 1848, a proclamação do reino de Itália e a anexação dos Estados Pontifícios marcam um tempo que mudou o panorama europeu. Napoleão dividira a Itália em vários reinos e o Congresso de Viena deixaria a península subalternizada ao Império Austro-húngaro. O reino da Sardenha, com o conde Cavour, economicamente moderno, tornou-se a locomotiva do novo Estado, associada ao Risorgimento Letterario, que criou uma nação a partir da língua e do génio poético presentes na grande Comédia de Dante, tornada divina. A história é conhecida e até chegou a Portugal, com o trágico exílo de Carlos Aberto e a sucessão em seu filho Vítor Manuel II, pai da nossa Rainha D. Maria Pia.

Além dos clássicos, o escritor moderno que muito contribuiu para a formação da consciência italiana foi Edmondo de Amicis (1846-1908), autor de Coração, uma obra sublime. Todos os jovens italianos desde 1886 até à geração de Umberto Eco formaram-se a ler o livro de Amicis, talvez demasiado cheio de bons sentimentos, mas indiscutivelmente marcante para a formação de uma consciência cívica liberal e democrática. A obra relata, pela voz de Henrique, um ano letivo dos alunos da 3.ª Classe de uma Escola, onde se lia em cada mês uma verdadeira parábola sobre a liberdade, a generosidade, o respeito, o exemplo, o altruísmo e a salvaguarda das diferenças. O Coração, que eu li integralmente, com grande prazer, e que os meus pais me ajudaram a ler, numa experiência inesquecível com meus irmãos, foi adotado como leitura obrigatória nas escolas de Itália no final do século XIX. Daí a influência que exerceu em diversas gerações também na Europa democrática. Longe do nacionalismo que envenenou a mentalidade europeia - lembramos a carta em que se diz: "Eu amo a minha terra porque a minha mãe nela nasceu; porque o sangue que me corre nas veias é o mesmo sangue; porque na minha terra estão sepultados os mortos que a minha mãe chora e meu pai venera." A cidade, a língua, os livros que me educam, o grande povo no meio do qual vivo, a bela natureza que me cerca, tudo pertence à ideia de pátria. E as histórias contadas pelo mestre-escola ilustram a entrega e a generosidade, a abertura e a autonomia pessoal - como nos casos do pequeno patriota paduano, do pequeno vigia lombardo, do tamborzinho, da viagem dos Apeninos aos Andes - ou do sacrifício do pequeno escrevente florentino - que nas altas horas da noite ajudava, às escondidas, seu pai a realizar um trabalho árduo e repetitivo que compunha o ganha-pão familiar. "Cursava a 4.ª classe. Era um gracioso florentino de 12 anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos de ferro que, tendo muita família e pouco ordenado, vivia com dificuldades." O filho, às escondidas, decidiu ajudar o pai a escrever endereços em cintas para enviar revistas a assinantes. Mas se o trabalho singrava, o pai não compreendia por que razão o aproveitamento do filho se ressentia, até que descobriu que tal era fruto do cansaço pela generosidade... Escritor dotadíssimo, de Amicis dá-nos exemplos de cidadania viva. A verdade é que, em vez de um discurso abstrato, há valores exemplares. Mas além dos contos mensais, há pequenos exemplos na relação entre os companheiros da turma (perante uma dificuldade, uma doença, um acidente ou uma morte) que demonstram a importância do respeito mútuo, do cuidado e da solidariedade. Eis como um livro se torna influente.

Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

https://www.dn.pt/opiniao/coracao-de-edmondo-de-amicis-17559844.html