Casou e divorciou-se. Teve dois filhos. Perdeu um dos seus meninos num desastre de viação. Uma dor insuperável. Se ao menos tivesse um Deus a quem se agarrar... Fez-se, então, robusta como uma rocha. Como a conhecemos, apaixonada, emotiva, comovente. Na defesa dos justos e dos bons e dos outros todos. Como um anjo da guarda que intimamente deve ter querido ser quando pediu ao pai para lhe comprar umas asinhas com as dos meninos da procissão. Dezoito anos depois de ter chegado, amedrontada, ao parlamento conhece os píncaros da popularidade. O país rende-se ao humor do boneco do Contra-Informação (que, afinal, era para ser não Odete, mas sim uma cantora de ópera); e transforma-se numa das faces mais visíveis da luta pela despenalização do aborto. A conversa decorreu numa sala de S. Bento, fumou muitos cigarros. Não parecia muito feliz nessa quinta-feira. E contudo...
É mesmo verdade que a curto prazo vai abandonar a Assembleia?
Não, não há nada de definido sobre isso. Eu disse qualquer coisa no género: «Um lugar de deputado não é vitalício; já cá estou há 18 anos e com certeza não estarei muito mais tempo». Mas não disse que seria amanhã ou que deixaria de vir na próxima legislatura.
Nestes dezoito anos teve alguma vez vontade de abandonar, de mudar de vida?
Uma vontade séria, séria, não. Às vezes há desabafos nos momentos de maior pressão. Mas eu gosto do trabalho na Assembleia, de preparar iniciativas legislativas, de as discutir e tenho aprendido muito aqui.
Não se sente desgastada com as coisas comezinhas?
Tenho momentos de desespero por ver certas coisas entravadas.
Que outra vida poderia ter se não fosse o parlamento e a advocacia?
Tive de pôr umas reticências na advocacia. Tenho alguns processos pendentes porque não quis largar as pessoas. Muito pouco. O que sempre quis fazer na vida só pude fazer transitoriamente: gosto muito de teatro e fiz muito teatro amador.
Porque é que tirou Direito?
Eu era muito nova, gostava muito de polémicas, de debater coisas. Fiz uma imagem da advocacia inspirada em livros policiais do Perry Mason; aqueles debates conduziam sempre à vitória e à absolvição dos réus.
Era uma ideia gloriosa da advocacia.
Era. Durante o curso apercebi-me que não seria assim. O ensino era muito livresco e desinteressante. Não abandonei porque cada ano representava um investimento e grandes sacrifícios dos meus pais.
Foi instigada por eles para tirar Direito?
Não. Quando terminei o liceu o que mais gostava era História; mas as saídas resumiam-se ao ensino e pouco mais. Ainda me inscrevi mas fui mudar de alínea porque, aí sim, tive muitos conselhos para o fazer. Terá sido providencial que o tenha feito. Tive problemas políticos no final do curso e fui proibida pelo conselho de ministros presidido por Oliveira Salazar de ser funcionária pública. Concorri para notária, o que já reflectia um desencanto em relação ao Direito.
Foi na Faculdade que se envolveu nas primeiras questões partidárias?
Sim, foi na Faculdade.
Não havia qualquer tradição na família?
A maior parte da minha família é conservadora. O meu pai, que não é, marcou muitíssimo a minha educação. Foi criado num meio provinciano e conservador do pequeno campesinato das Beiras e, com a vinda para Alpiarça, apercebeu-se dos problemas que ali se viviam e foi muito influenciado por eles. Lembro-me de ser muito nova e de me ler passagens d’ O Cavaleiro da Esperança do Jorge Amado, nas páginas em que se descreve a prisão do casal de alemães levado para um morro e obrigado a abrir a sua sepultura.
A sua mãe tinha um lado mais conservador, católico?
A minha mãe tinha medo da política, achava que não nos devíamos meter nisso porque dava muitos sarilhos. Era profundamente católica, mesmo que divergisse nalguns aspectos. Não acreditava no dogma da infalibilidade do Papa; e, em relação ao aborto, achava-o preferível a algumas situações dramáticas.
Como é que resolveu o problema com o Divino, entre um pai com uma forte veia revolucionária e uma mãe conservadora?
O sentimento do Divino nunca o tive, verdadeiramente. Via os anjinhos nas procissões com as asas e gostava de ter umas; mas era tudo muito ritual e não sentido. Depois, houve coisas que me foram marcando negativamente. Naquele tempo ainda se dizia na catequese que o Inferno tinha caldeirões de azeite a ferver e os diabos estavam lá a picar as pessoas com a forquilha; que tocar na hóstia com os dentes era pecado mortal e eu sofria horrores quando ia comungar. Entretanto, deu-se a minha passagem para Setúbal, um meio completamente diferente onde estes rituais eram desvalorizados e não ir à missa não era visto como um pecado.
Foi numa idade de transição essa ida do Sabugal para Setúbal?
Tinha dez anos. Mas a igreja católica comigo teve azar porque aconteceu que tive como professor de moral um padre que era muito mau, muito mau mesmo.
Ou seja, nunca teve medo de ir para o Inferno?
Não. O meu pai dizia: «Como é que pode ser verdade que aqueles que fazem o mal toda a vida e andam a explorar os outros vão ao domingo à missa e têm os seus pecados perdoados?».
A absolvição não seria possível?
Não pode ser um arrependimento com medo da morte. Se se leva a vida toda a fazer o mal não é possível.
Se estava liberta do Divino como é que apareceram as barreiras que delimitam o Bem e o Mal?
As noções de Bem e de Mal são criadas pela própria pessoa. O Bem é o que contribui para a felicidade da grande maioria da sociedade.
Mesmo que isso implique a anulação do indivíduo?
Penso que nunca implica a anulação do indivíduo. A felicidade individual não é desligada do colectivo. Quando se luta para que alguns factos se alterem está-se a contribuir para a sua própria felicidade. Porque dá gosto.
Se se tiver uma veia altruísta.
Pois, o problema reside no ser humano e no egoísmo do ser humano. Descobri muito tarde, há poucos anos, que, ao contrário do que pensava, o ser humano, de uma maneira geral, é egoísta. A grande maioria dos homens e das mulheres têm secretamente um egoísmo que, em determinados momentos civilizacionais, em épocas de recessão, desperta. Mas não creio que isto seja uma fatalidade.
O caminho passa por contornar esse egoísmo, aprender a viver com ele?
O caminho está em conseguir um nível de progresso que leve as pessoas a aprender o altruísmo. Isto é muito demorado, como é óbvio. Mas respondendo à sua pergunta, não acho que o individual deva ser submetido ao colectivo. Acredito que é possível conciliar as duas coisas. Há pessoas heróicas, e eu não estou nesse grupo, que abdicam e já sentem isso como uma felicidade individual. Verifica-se na vida dos Santos.
Subjacente ao comunismo há a ideia da supremacia do social ao individual.
Eu não definiria assim o comunismo. O comunismo, enquanto sistema, nunca existiu. Para mim o comunismo é um estádio tão avançado em que a felicidade individual se confunde com a colectiva. Na construção do socialismo o objectivo é o de conseguir transformações sociais de que beneficie o colectivo sem com isso sacrificar as liberdades individuais fundamentais. Se se sacrificarem não há felicidade colectiva, pode haver um simulacro de avanço colectivo. Nalguns países que foram do bloco socialista acabou por se verificar que havia avanços no campo da saúde e da educação mas não houve, ao mesmo tempo, uma política que garantisse as aspirações de liberdade das pessoas. Penso que teria sido possível conciliar as duas coisas.
A liberdade e o altruísmo foram valores fundamentais que passou aos seus filhos?
Eu creio que sim, tive o cuidado de transmitir. Só tenho um, neste momento, porque o outro morreu.
Essa é uma dor insuperável, não é?
É verdade, nunca desaparece. É uma dor única. Também já senti a perda da mãe e não é a mesma coisa. Eu creio que lhes transmiti esse amor à liberdade e aos direitos fundamentais e o respeito pelas convicções das outras pessoas.
Acha que a dor é fundamental para crescer enquanto pessoa?
Era bom que fosse possível crescer sem dor mas penso que a dor constrói a maturidade. Se a dor é sentida fora de tempo a personalidade pode vir a reflectir-se disso atingindo um desencanto cedo demais. Contraditoriamente a dor ajuda a crescer e a resistir.
Onde é que se vai buscar a força?
Depende das pessoas. Há pessoas a quem a força destrói. Eu sou assim também por influência do meu pai. Quando acontece qualquer acidente, qualquer facto grave, sempre ouvi o meu pai dizer que o que é preciso é continuar para a frente. Isto ajudou a conhecer períodos menos bons da vida mas a ultrapassá-los. Resistindo, lutando.
É uma optimista.
Sou. Não sou irrealista, conheço perfeitamente as dificuldades. Sou uma optimista porque penso que tenho de ultrapassar aquilo. Foi o que pensei quando o meu filho morreu. Que era uma dor horrenda mas que tinha de a ultrapassar. Isso ajudou-me muito.
Agarrou-se a si mesma? Um Deus é, normalmente, um muito bom conforto para estes momentos insuportáveis.
Não me agarrei sequer ao meu pai. Nestas situações é muito fácil a uma pessoa que teve uma formação católica voltar a cair, retomar a ideia do Divino. Porque a angústia eterna do homem é o fim e depois do fim não há nada. E o nada é uma coisa terrível. Agora já não penso tanto nisso; mas lembro-me de pensar: «Um dia a Terra acaba; e depois?»
Nunca pensou em morrer?
[pausa] Já, já pensei que seria melhor, já teria vivido e não faria mal nenhum se morresse; qualquer pessoa, às vezes, pensa nisso. Mas nunca foi um pensamento decidido, não tenho ideias suicidas.
Voltemos à sua Faculdade. Há pouco tinha ficado suspensa a ideia da sua entrada para a política com os movimentos estudantis. Como é que começa a participar nesses ambientes de tertúlia?
Fundamentalmente foi com as greves de 1962. O regime tinha conhecido algumas derrotas: a perda da Índia, a fuga de Peniche, a revolta da Sé e a proibição do Dia do Estudante. Foi nessa altura que começou a minha participação nos movimentos estudantis. Já antes tinha sido convidada para integrar uma célula do Partido Comunista Português. Tinha uma colega com quem falava muito de política.
Uma colega?
Uma colega.
Como é que era nos tempos de Faculdade? As suas companhias eram mais os rapazes ou as raparigas?
Acabei por estar integrada num grupo em que eram mais rapazes que raparigas; mas era indistinto. Lembro-me de uma figura a quem eu achava imensa piada e que no outro dia vi na televisão, o Marquês da Fronteira. Também nessa altura conheci o António Vitorino d’ Almeida que ía lá já com uma bengalinha. Havia grupos muito interessantes que se juntavam na cantina universitária.
Mas hoje dá-se mais com homens ou com mulheres? É-lhe indiferente?
Hoje dou-me mais com homens. Quando entrei para a advocacia, em Setúbal, era a única mulher e os contactos começaram a ser muito com os colegas.
As mulheres têm algumas características de que não goste particularmente? O que é que lhe desagrada na ideia da feminilidade?
A mim não me desagrada nada, bem pelo contrário. Acho que é próprio da mulher. Umas são mais que outras.
Quando falei de feminilidade a imagem que me ocorreu foi a das depilações. Não consigo imaginá-la a falar com uma amiga num sábado à tarde se prefere a depilação com cera ou com gillete.
Bom, eu não falo porque não tenho tempo. Mas o que é certo é que faço depilação com cera. [risos]
Mas esse ritual feminino, essa conversa das sombras e dos batons, das roupas e dos cabeleireiros, é uma coisa que lhe dá prazer?
Com os batons eu chego e compro, não estou a discutir se é este ou aquele.
Dá-lhe prazer a participação e o consumo desse universo?
Dá-me prazer comprar um perfume, porque gosto. Não me dá prazer passar uma hora ou duas a falar dessas coisas. Mesmo com as mulheres há outras conversas mais interessantes, penso eu.
Nunca deu por si a trocar impressões com uma amiga sobre os sítios onde a roupa é mais bonita e mais barata?
Mais barata e para a minha medida, isso já perguntei.
Tem a preocupação de ficar bonita quando se vê ao espelho?
Conforme os dias. É por períodos e depende de como me sinto. Há dias em que me apetece pintar e até me sei pintar. Mas eu bonita nunca fui.
Podemos sempre alimentar-nos da fórmula clássica da beleza interior.
Já mudei muito de opinião acerca disto. Um exterior agradável ajuda o interior a subir. Nos dias em que me sinto tão mal, tão mal não me interessa nada o que estou a ver na minha frente.
Esse processo de sedução com o espelho é para si ou pensa no espelho social?
Neste momento é fundamentalmente para mim. É diferente com a idade. Houve uma altura em que também era social.
Como é que vive os seus 57 anos?
Fisicamente sinto que tenho 57 anos e que essa da juventude estar no espírito é mesmo uma grande história. Penso que é importante a pessoa sentir-se jovem, e eu sinto-me, mas a decadência física existe, não é construída pela pessoa.
Sente no corpo a noção de finitude?
Sim, sinto falhas de memória, dores que incomodam, o tempo que varia. Afligem-me, sobretudo, as falhas de memória. Os 57 sinto-os fazendo o diferencial entre os anos que vivi e os que terei para viver. Pensar que vivi 24 anos a seguir ao 25 de Abril e que se durasse mais 24 teria 88.
Está cansada? Fala com uma espécie de desencanto como se fosse penoso para si chegar aos oitentas.
Pois, porque o que sinto é que a pessoa devia viver muitos mais anos.
Mas em que estado?
Em estado razoável. Viver decrépito não deve ter interesse nenhum. Impressionou-me muito aquela velhota da Galiza que tinha mais de cem anos e que queria morrer porque já ninguém do seu tempo era vivo. Por outro lado acho que a esperança de vida devia ser maior porque é muito bom estar cá e há muitas coisas a fazer. Tenho tantos livros lá em casa que comprei e não vou conseguir ler...
Sente uma nostalgia do vigor da juventude?
Sinto, apesar da imaturidade. Há coisas que compensam a falta da juventude, como perceber melhor o mundo; e isso dá prazer, apazigua.
Mas ainda é uma mulher muito ansiosa. Percebe-se até na forma como fuma e como está com o seu corpo exteriormente.
A ansiedade provém de uma permanente instabilidade na vida, de não me ter sentido nunca segura, a não ser quando era muito nova. A insegurança provoca a ansiedade.
Insegurança a que nível?
Não ao nível das ideias. Insegurança a respeito de uma vida garantida com o essencial. O medo de uma crise qualquer que deixe a pessoa despojada. Traduzindo em níveis económicos: deixar de ter a possibilidade de. De comprar um livro, de comprar um bilhete para o teatro.
É interessante vindo de si que tinha dois pais professores primários numa altura em que muita gente passava fome.
Os professores primários ganhavam mal, sabe.
Tem irmãos?
Não, sou filha única. Há muitos anos o meu pai ganhava 400 escudos por mês. Nasci na Beira Alta onde a vida era muito difícil, as pessoas trabalhavam a pequena leirinha de terra que dava muito pouco e aspiravam a uma vida melhor. Tinham muitas dificuldades mas poupavam o mais possível. Amealhavam uns tostões com medo de uma doença ou de qualquer coisa que pudesse acontecer. Isto transmitiu-se ao meu pai que tinha mão férrea no que toca a despesas. Quando vim para Setúbal a mentalidade era muito diferente. Quando havia pesca gastavam tudo, compravam ouro; quando não havia iam empenhá-lo. Era mais a vida do dia a dia. Mas eu nunca perdi o receio.
Então tem um pecúlio?
Tenho muito pouco. Não sou rica, nunca fui e não tenho aspirações a ser.
Nunca quis ser rica?
Não, mesmo como advogada sempre tive muitos clientes, mas eram sempre clientes que podiam pagar muito pouco. Nos tempos antigos até iam empenhar ouro para me pagarem os honorários.
A tentação da riqueza podia sossegar-lhe essa ansiedade.
Não tenho espírito para andar atrás do dinheiro.
Parece que tem um pudor muito forte em relação ao sucesso e ao dinheiro, o que até está muito conotado com a sua opção política.
Não tenho jeito para ganhar dinheiro. Tenho um feitio mais contemplativo e prefiro nem me incomodar muito.
Como é que vive, como é a sua casa?
Vivo numa casa que é nossa, em Setúbal.
Sente-se confortável na sua casa? Um conforto burguês.
Não acho que seja conforto burguês uma pessoas sentir-se bem em sua casa. É fundamental para o equilíbrio interior sentir-se bem na sua casa.
Quando estava preparar-me para esta entrevista tive imensa dificuldade em encontrar informação sua a título pessoal. Encontrei: Odete Santos, divorciada, dois filhos, pais professores primários. Há uma esfera muito resguardada que me fez pensar no Dr. Cunhal cuja vida privada nunca ninguém conheceu. Até parece que se trata de uma aprendizagem partidária.
Para a minha biografia oficial nada do que disse teria interesse, apesar de gostar de falar disto.
A mim interessou-me, pareceu-me ficar a conhecê-la melhor.
Gosto de falar da minha infância que foi extraordinária e que me deu capacidade para resistir. Foi livre, andava permanentemente na rua a andar de bicicleta. Tenho é a impressão que isto não interessa as pessoas
Não acredita que as pessoas se interessem por esta parte de si?
Pondo ao contrário, interessa-se por esta parte nas pessoas?
Sim. Em viagens ao estrangeiro, por exemplo, tive conversas que revelavam o lado humano de deputados de esferas políticas opostas. Não acho que haja pessoas totalmente boas ou totalmente más. Algumas têm um comportamento na sua vida, investidos dum estatuto social, que as torna desagradáveis; mas, ao fim e ao cabo, todas as pessoas que conheci acabam por revelar coisas interessantes.
Tem amigos verdadeiros aqui na Assembleia, a quem faça confidências, com quem partilhe experiências pessoais?
Eu não sou pessoa de fazer confidências. Quando acabo por dizer as coisas o problema já está ultrapassado. A minha primeira reacção é resolver o problema sozinha.
Será um vício de filha única?
Será o receio de sentir comiseração.
A compaixão não pode ser um sentimento nobre?
Pode. Tenho muito poucas pessoas a quem eu relato coisas que me acontecem; mas não são deputados.
E a si, fazem-lhe confidências?
Fazem mais no meu escritório, coisas que não têm nada a ver com advocacia. No meu escritório tem sido um desenrolar de vidas.
Tem ideia que, a partir do seu feitio, experimenta muitas máscaras? Não será por acaso que gosta de teatro, de vestir vários personagens.
Sim, isso é verdade.
A forma como está publicamente, expondo-se fisicamente...
Ah, os gestos...
Passa uma ideia de transfiguração, de transmutação. Qual é, afinal, a essência desta mulher que se expõe neste papel público ou nos papéis do teatro?
Nunca tinha feito essa análise. Há aqui várias coisas que se conjugam: uma delas é o desenraizamento, que nunca deixei de sentir por vir com dez anos para o litoral; e eu sou mais ligada à terra. Também há uma questão que se prende com o estatuto social, porque vivia numa vila onde era a filha dos senhores professores. Em Setúbal o meu estatuto era igual ao das outras pessoas. O desenraizamento criou-me uma personalidade mais fechada, mais metida comigo mesma. Já em criança gostava de fingir que era outras pessoas e isso acompanhou-me. Talvez seja uma defesa.
Tem algum herói ou heroína que gostasse de ser, nesse processo de fingimento?
Dependia dos livros que lia. Quando li A Mãe do Gorki fiquei apaixonada por aquela figura de mulher. Depois, há vidas que eu gostava de ter tido. A vida do John Reed que morreu aos trinta e poucos e que cobriu a revolução mexicana e foi para a revolução de Outubro, foi apaixonante. Sinto desgosto por não ter tido espírito de aventura suficiente (lá está o tal receio do futuro) para ter mandado o curso de Direito às urtigas e ter seguido teatro que me dava mais satisfação. Os meus heróis são aqueles que abdicam da estabilidade e não se importam com o futuro.
E nos seus sonhos, as situações são de aventura, de medo?
Nos meus sonhos, que tenho dificuldade em reconstruir, há situações de grande perigo, acontecem-me coisas terríveis, caio para dentro de um poço.
Não são sonhos heróicos onde assume a figura do John Reed?
Não, ao contrário, são sonhos de temor.
Quando é que o PCP passou a ser um sonho para si? Só aderiu formalmente ao partido depois do 25 de Abril.
Não é bem assim. Aderi ao PCP andava no terceiro ano de faculdade, tinha vinte anos e integrei uma célula que só se reuniu uma vez. Mesmo assim distribuíamos papéis, Avantes. Lembro-me de andar aflita com Avantes escondidos no soutien porque estava num semi-internato para filhas de professores primários onde fiscalizavam o guarda-roupa. Um dia decidi queimar aquilo na casa de banho e só não fui apanhada porque julgaram que eu estava a fumar. Depois foram as greves e houve uma grade razia de prisões no meio estudantil porque havia um indivíduo infiltrado, cujo nome nunca hei-de esquecer, o Nuno Álvares Pereira, que denunciou as pessoas todas. O Mário de Carvalho, o escritor, por exemplo. Eu tinha acabado o curso e o que me aconteceu foi não me deixarem ser funcionária pública nem me darem o diploma para leccionar no colégio de Setúbal. Ainda me chamaram à Pide uma vez com o Zeca Afonso. Com esta história e o desmantelamento da organização nunca mais fui contactada. A seguir ao 25 de Abril restabelece-se o contacto.
Quando adere formalmente ao partido tinha pretensões? Subir na escala hierárquica, assumir peso político, estar 18 anos na mesma bancada.
Eu nunca pensei estar cá 18 anos. Subir... O que sempre quis foi mostrar a minha opinião e debater. Quando vim para aqui é claro que fiquei satisfeita. Mas depois senti um medo terrível, via as pessoas todas habituadas. Eu, novata, sentei-me na última fila com o Octávio Teixeira. Pensei cá comigo: «Eu vou ficar aqui dois ou três meses e depois vou-me embora que isto é demais para mim».
A ideia do confronto intimidava-a?
Ao princípio sim porque tinha medo de não saber responder. Dava-se a circunstância de ser advogada na província. Aprendi muito aqui porque, mesmo sobre o Direito, adquiri uma visão extraordinária que não tinha.
Chegava a ser um sentimento de inferioridade?
Não era inferioridade, era receio. Por isso me preparava muitíssimo bem para os debates. Ainda hoje tenho medo que me falhe alguma coisa. Tenho uma falha na minha formação na área da filosofia, que acho fundamental.
Já não tem receio, a ideia do confronto já não a intimida?
Não, posso não saber alguma coisa, mas já sei contornar.
Deliberadamente não lhe fiz perguntas de teor político. Não prefere esse tipo de entrevistas?
As entrevistas políticas têm de ser muito bem pensadas.
Mas não teria de se expor tanto enquanto mulher. A sua verdadeira essência aparece aqui, muito mais emocional.
Nas entrevistas políticas a pessoa despe-se daquilo que lhe é mais pessoal porque há muita coisa e muitas pessoas que ficam em jogo. A entrevista política é mais incaracterística. Não tenho pudor em revelar fraquezas, embora em casa ouça o contrário, que a pessoa deve ser forte e deve mostrar força perante os outros.
Na sua casa vive com quem?
Com o meu pai e o meu filho.
O que é que faz o seu filho?
Estuda Sociologia em Évora.
Ele partilha das suas convicções políticas?
Inscrever-se em partidos, nem pensar, porque não tem feitio para isso. Mas partilha da mesma opção.
Para terminar, uma questão ligada ao aborto. Receia que o resultado do referendo seja Não?
Eu tenho uma grande esperança que seja Sim. Será um grande desgosto se for Não. Não como uma derrota pessoal. À medida que fui estudando o assunto fui-me apercebendo de que se trata rigorosamente de um drama das mulheres. Se falar enquanto mulher e não enquanto deputada considero que esta é uma velha querela entre as religiões e as mulheres. Nas religiões com que convivemos no mundo ocidental quem cria a vida é Deus e não a mulher. Sempre que há um processo em que fica patente que quem cria a vida não é nenhum Deus…
Uma desautorização de Deus?
Exactamente. Esta é que é a velha querela. Mas vou trabalhar para ajudar a conseguir o Sim.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998
https://anabelamotaribeiro.pt/odete-santos-132048