segunda-feira, 10 de agosto de 2009
A INTERSECÇÃO ENTRE:
MÁRIO DE ANDRADE
E
CECÍLIA MEIRELES
MÁRIO DE ANDRADE
E
CECÍLIA MEIRELES
INTRODUÇÃO
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Cecília Meireles nasceu em 1901, 7 anos após o nascimento de Mário de Andrade e 7 anos antes da morte de Machado de Assis. E que significado tem isso? Que interesse tem essa diferença de períodos entre o nascimento da nossa maravilhosa poeta Cecília Meireles com o do macunaímico Mário de Andrade e a morte do nosso poeta maior Machado de Assis? Não sei, mas achei por bem iniciar este tópico com esse “interessante” (será?) e coincidente período ou fato de 7 anos, também pela relevância do número 7.
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Esses períodos que se distam podem não ter importância nenhuma caso analisarmos pela ótica utópica das coincidências. Não sou hermeneuta. Quanto às diversas teorias e polêmicas a respeito da numerologia, não me apetecem – apesar dos meus estudos incompletos e um pouco de instrução recebidos quando dos quatro primeiros anos de Teologia. O simbolismo dos números na Bíblia instiga qualquer crente ou incrédulo. Diz-se, por exemplo, que o número 7 (sete) é considerado universalmente como dotado de especial significação. (O populacho diz ser o 7 “conta de mentiroso”). Buscando nas minhas apostilas de Pré-Teologia, encontrei: O número 7, em hebraico, é usado para promessa e juramento, formado da raiz SHB’ (= 7) e pode referir-se a uma cerimônia de juramento não mencionada. (Não entendi nada). Continua: “Maria Madalena era possessa de 7 demônios (Lc 8,2); No caso hipotético dos saduceus, eles apresentaram um homem que tinha casado com 7 viúvas (Mt 22,25ss); (...); Há 7 dias da semana (Gn 2,2); O diálogo sobre o perdão mostra um uso particular do número 7: Pedro pergunta se deve perdoar seu irmão 7 vezes (Mt 8,21-22; Lc 17,4) e Jesus responde que ele deve perdoar 70 x 7. Esse uso indica que o número 7 significa certa “plenitude”. Não podemos esquecer também que o 7 aparece, para desespero de muitos, por todo o Livro do Apocalipse: 7 igrejas, 7 espíritos, 7 lâmpadas, 7 selos, 7 anjos, 7 trombetas, 7 cabeças do dragão, 7 chifres da besta, 7 pragas, 7 taças (será que deixei algum 7 de fora?) – mas tudo isso mostra a idéia de “plenitude” ou de totalidade, onde exatamente quero chegar, ou seja: voltar ao primeiro parágrafo desta introdução.
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Buscando o significado de “plenitude” no Aurélio: (Substantivo feminino) – 1. Qualidade ou estado de pleno. Temos que buscar o significado de “pleno”:- (Adjetivo) – 1. Cheio, repleto; 2. Completo, inteiro, absoluto; 3. Perfeito, acabado; (...).
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Creio que não necessitaria ter perdido tempo para dissertar sobre o número 7, mas, coincidência, heresia, numerologia, teologia e outras “ias”, Cecília Meireles, independente de todos os dissabores que passou na vida, tornou-se como pessoa e poeta (não tem como dissociar): “plena, completa, inteira, absoluta, perfeita, acabada” – literariamente alcançou a “plenitude”, tal como Mário e Machado (sem esquecermos ou desprezarmos Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros poetas modernistas brasileiros). E em tudo que está relacionado com “plenitude” há intersecção. Se pedirmos qual é a intersecção entre Machado, Mário e Cecília para um numerólogo, ele fará a contagem das letras dos nomes mais peculiares dos três literatos, ou seja: Machado de Assis = (14 letras), Mário de Andrade = (14 letras), Cecília Meireles = (15 letras), totalizando 43 letras. Continuando o cálculo: 43 (4 + 3 = 7) – sem considerar que Machado tem 7 letras, Andrade tem 7 letras e Cecília tem 7 letras. (Loucura? Coincidência? Superstição?).
Colocando os pés no chão e as mãos no teclado, parto agora para o desfecho desta introdução (deixando o Machado de Assis para outra oportunidade), atentando-me apenas para a “intersecção” entre Mário de Andrade e Cecília Meireles, não esquecendo que essa “intersecção é fruto da “plenitude”, e, por serem os dois literariamente “plenos”, foi exatamente por isso que Cecília Meireles e Mário de Andrade se cruzaram. Poucos sabem, mas esses dois “plenos” tiveram um relacionamento de amizade, admiração e respeito, que renderam cartas, depoimentos, análises e dedicatórias, revelando verdadeira “empatia que nutriam um pelo outro”, como bem afirmou Carlos Haag, em matéria no Caderno 2 do O Estado de S. Paulo, em novembro de 1996. Eu ainda não consegui o “Cecília e Mário” (Editora Nova Fronteira), livro que Haag assim definiu: “traz à luz todo o encanto da relação epistolar ‘pouco te vi, sempre te amei’ e crítica entre Cecília Meireles e Mário de Andrade”.
Concluo assim a introdução indo ao objetivo primeiro que é o de deixar cravado neste blog um texto de autoria do Mário de Andrade acariciando literariamente Cecília Meireles. Esse texto foi editado no "O Empalhador de Passarinho" (Obras Completas de Mário de Andrade, Vol. 20 – Crítica, São Paulo, Martins Editora, 1955). Esse mesmo texto foi deixado por Mário de Andrade na Academia Paulista de Letras (ou com alguém da Academia), que o editou em 12 de Setembro de 1946, na edição da Revista daquela Academia, de N.º 35, pp. 45 a 50, cujo título é: “CECILIA E A POESIA” – (como segue, conservada a ortografia original).
Mário de Andrade.
Eu acuso Cecília Meireles de várias culpas contra a poesia. E nem me parece duvidoso que a maior destas culpas seja ter ela se candidatado a um prêmio da Academia. Que estranha volúpia, muito feminina, de perder, a teria levado a essa aventura?... E disso lhe aconteceu a outra culpa não menor de conquistar o prêmio!
Como esclarecer tais incontinências de psicologia e de cultura social? Antes de mais nada, não se pense que sou exatamente contra a Academia, embora por muitos lados a considere perniciosa e pouco fecunda; mas a respeito de Arte, Poesia, Cultura, como no epigrama de Ronald de Carvalho, a Academia não é boa nem é má; é indiferente. Ora, apesar dessa indiferença ou, quem sabe, se por causa dela mesma, todos nós, extra-acadêmicos, mantemos secretamente uma secreta, não sei se ternura ou esperança por êsse hospital da parlapatice, onde se pratica diariamente, “in anima nobile”, a experiência do medalhão.
A Academia é um mal necessário, embora fenômeno de cultura social, devesse ser um necessário bem. Cecília Meireles talvez coincida comigo nesta pequena ternura pela Academia. E terá querido por isso elevar a coletividade acadêmica (note-se que me refiro à coletividade acadêmica, pois que separadamente até existem bons escritores lá dentro), Cecília Meireles terá querido ternamente elevar a coletividade acadêmica, sacrificando a si mesma para ser premiada pela Academia. E eis-nos diante da madrigalesca lição da maior... “sinuca” literária dêstes últimos meses: a Academia acaba de ser premiada por ter concedido um prêmio à poetisa Cecília Meireles!
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Com efeito, êste prêmio significa que pelo menos uma vez a coletividade acadêmica, não sei se por mêdo de reagir ou se por inteligência, mas reconhecedora de poesia, de Cassiano Ricardo, conseguiu descobrir fora do seu cultivado jardim, na floresta maldita das estéticas, uma das raras grutas azuis onde a poesia mais profunda mora, mas, irra! O que é poesia? “Ah! Não me pergunteis por que padeço”!...
Não saberei dizer o que é poesia, mas desde pouco um dos mais admiráveis poemas de Cecília Meireles me chama os ouvidos. É um poema duro, rijo, em que certas frases muito sêcas batem com uma firmeza clássica de pedra, entre frases emolientes, cheias dessa sensibilidade sensual, que faz nascer o adjetivo:
Alta noite, o pobre animal aparece no morro em silêncio,
O capim se inclina entre os errantes vagalumes.
Pequenas asas de perfumes saem das coisas invisíveis.
No chão branco de lua, êle prega e desprega as patas com sombra.
Prega, desprega e para:
- deve ser água o que brilha em estrêlas na terra plácida?
- serão jóias perdidas que a lua apanha em sua mão?
Ah!... não é isso.
E alta noite, pelo morro em silêncio, desce o pobre animal sòzinho.
Em cima vai ficando o céu. Tão grande! Claro. Liso.
Ao longe, desponta o mar, depois das areias espêssas.
As casas fechadas esfriam. Esfriam as fôlhas das árvores.
As pedras estão como muitos mortos – ao lado um do outro, mas estranhos.
E êle para e vira a cabeça. E mira com seus olhos de homem.
Não é nada disso, porém...
Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal em silêncio.
Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se alternam.
Não existe horizonte. A água se acaba em tênue espuma.
Não é isso! Não é isso!
Não é a água perdida a luz andante, a areia exposta...
E o animal se levanta, e ergue a cabeça, e late, e late...
E o éco responde.
Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na noite.
Ah! – Para aquêle lado apressa o passo, em busca do éco.
Eis o que me sôa como definição do mais íntimo sentido de poesia. A nossa grande poetisa busca penetrar os arcanos do simples animal, o “pobre animal”, que depois das obrigações fisiológicas do seu dia, aparece alta noite no morro em silêncio. Quem já observou, por acaso, um pobre animal num dêstes momentos de gratuidade, sabe como êle é prodigiosamente dramático. Dir-se-ia, com efeito, que êle procura e, ao mesmo tempo, se desinteressa de procurar alguma coisa a mais, algum sentido para si mesmo. A sua inquietação é apenas um dos momentos de sensibilidade dessa insuportável vagueza, dessa inexplicável involução do sêr e da vida, apenas terrestremente concebido. Cecília Meireles, pela sua fôrça lírica de conhecimento, ainda unifica nisso os homens aos irracionais, naquela pincelada firme em que indica que o animal “mira com seus olhos de homem”. Não diz “com olhos de homem” o que seria apenas uma comparação, mas “seus” olhos de homem, com excelente felicidade expressiva nos identificando a todos, nessa mesma tristeza de buscar um éco, um sentido, uma identidade maior. Mas, por outro lado, com uma escolha inventiva extraordinária, ela caracterizou o trágico da nossa insolubilidade, transpondo uma observação comesinha, sublimando-a numa síntese nova, e iluminando o seu valor de drama, por conservá-lo no mutismo trágico, no mistério dessa alma irracional, apenas. “Não é isso! Não é isso!”, ficamos sabendo que essa incógnita infeliz não achou o seu sentido, nem encontrou a sua correspondência. E então, tràgicamente, lhe nasce a reação que é de todos nós, o clamor, e êle late e late. “O éco responde. Sensualizado, cheio de esperança e de amor, sua orelha estremece. “Seu coração se derrama na noite. Ah! – Para aquêle lado apressa o passo, em busca do éco”.
Creio não ser difícil penetrar o esplêndido valor dramático e o que há de terrível definição nesta legítima obra-prima. O pobre animal clama e lhe respondem, quem? Apenas um fenômeno acústico, diriam os raciocinantes sistemáticos aplicadores das relações de causa e efeito. Mas estamos em poesia: aquêle éco, aquêle fenômeno acústico... Quem criou isso? quem permitiu a existência do éco? Quem responde? Será Deus? Um mistério, uma insatisfação terrestre... Será apenas a natureza? Em que o animal já por todo o poema não achou sua correspondência... Ou será êle mesmo quem se respondeu? Pois que a voz é dêle e, neste caso, êle só achará a sua correspondência em si mesmo? Mas então nós sabemos que se trata apenas de um éco, e o pobre animal jamais que o achará, nem achará portanto o seu sentido ou o sentido da vida...
Ora, os leitores que ainda me restarem, por certo já perceberam onde eu quis conduzir, e onde, em que gruta mora, de preferência, para mim, a verdadeira poesia. Positivamente, eu estou divagando cá com minhas caraminholas e não tenho elementos para saber até que ponto o que “revivi” neste poema admirável, aí foi pôsto por Cecília Meireles. Ou quem sabe mesmo se o sentido do poema é totalmente outro? Camilo Saint-Saenz conta que um dia, tendo lido numa revista um soneto de Mallarmé, se aplicou com todo o carinho em lhe descobrir o sentido. Afinal, custosamente, julgou perceber alguma coisa, e na primeira vez em que se encontrou com o poeta, chamou-o de parte e lhe contou a interpretação, perguntando se estava certa. Mallarmé confessou que não fôra aquêle o sentido que tivera na criação do soneto, mas como considerava melhor que o seu próprio, o sentido que Saint-Saenz lhe dera, o adotava.
Há muito de blague nesta resposta de Mallarmé, mas a anedota nos reintegra no sentido mais interior e essencial da poesia – uma arte que se lida necessàriamente com palavras que são o seu material, por outro lado, prescinde aquilo para o que a palavra foi criada: o raciocínio lógico, a concatenação de idéias, a formação de juízos e consequente conclusão. Que tudo isso é o domínio da prosa. A poesia é também, pois que o seu material é a palavra, (elemento em que se move a inteligência consciente) a poesia é também um processo de conhecimento. Ela, porém, se coloca no pólo oposto à êsse outro processo verbal de conhecimento que é a ciência, a qual se utiliza da prosa. E, nesse sentido, a própria prosa de romance ou conto é ainda manifestação “científica”, isto é, uma coisa que nos deixa cientes, processo lógico, descrevedor, concatenado e conclusivo de conhecimento. Mas não quero me perder. A poesia com a ciência são os dois processos verbais de conhecimento. O que os distingue essencialmente é que a poesia é uma intuição, ao passo que a ciência (ou a prosa, se quiserem) é uma dedução. Como dedução, a ciência tem que ser fatalmente lógica, ao passo que como intuição, a poesia prescinde da lógica. Galileu, murmurando o “Eppur si muove!” ainda não estava ou já não estava mais no domínio da ciência, mas no da poesia. Porém, nos raciocínios, nas concatenações de idéias, nas conclusões anteriores e posteriores a êsse momento de intuição, êle pisava terreno de ciência e dêle tirou uma lei útil para a prática da vida. Se tivesse ficado apenas no seu clamor, como qualquer criança que grite “Mamãe, o lampião está mexendo!”, êle teria se confinado ao mundo da poesia. E se penetrarmos agora nesse ambiente da criança ou do homem paralogísticos, imediatamente perceberemos que multidão de interpretações fecundas e fantasmáticas tiraremos dessa frase de poesia, mundo em que se interpenetram imagens, idéias, juízos, sensações, movimentos físicos, rítmicos e dinâmicos do sêr completo, não apenas do sêr inteligente, consciente, mas integral com tôdas as milionárias cooparticipações da vida, do eu e do não-eu. E agora não pararemos mais, porque essa integridade é de uma prodigiosa riqueza geratriz, e para cada indivíduo é uma unidade irredutível, incomparável, inadaptável a leis gerais, é o seu mundo. Poderemos, e poderemos em vão, analisar e sentir a criança que exclamou. Na verdade, estaremos nos analisando e sentindo a nós mesmos, e adquirindo um conhecimento amplo, misterioso, entranhado e, ao mesmo tempo, luminosíssimo, que estoura em nós com verdade, o divinatório, o divino da revelação: “Tanto era bela no seu rosto a morte!”; “Isso é amor, e dêsse amor se morre”; “As armas e os barões assinalados”...
E assim, pude retirar do poema de Cecília Meireles, o meu poema, a minha intuição, o que para mim foi uma definição nova de certo momento irracional, que eu já observara, mas ainda não sentira, não “conhecera” poèticamente, no seu poder de comparação, de experiência, de simbologia no bom sentido da palavra. Sentimento profundo, definição reveladora, que só pude ter na graça da poesia, e pela fôrça criadora de Cecília Meireles.
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NOTAS:
1. Cecília Meireles recebeu da Academia Brasileira de Letras, em 1938, o Prêmio de Poesia Olavo Bilac, pelo seu livro Viagem, editado em 1939;
2. Em 1965, é agraciada com o Prêmio Machado de Assis, “post mortem”, pelo conjunto de sua obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras.
FONTES PESQUISADAS:
1. Andrade, Mário de. O Empalhador de Passarinho. 3. Ed. São Paulo: Martins Editora; Brasília, INL, 1972;
2. _______, Mário de. Cecilia e a Poesia. Revista da Academia Paulista de Letras, São Paulo: Ano IX - Edição n.º 35, 12 de Setembro de 1946 – p. 45/50;
3. Haag, Carlos. Feminino Plural. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, São Paulo, 16 de Novembro de 1996;
4. Literatura Comentada. Cecília Meireles. 1. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982;
5. Literatura Comentada. Mário de Andrade. 1. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS:
1. Introdução: Luiz de Almeida;
2. Gravura: Mário de Andrade e Cecília Meireles (Google) – montagem MGI.jpg: Luiz de Almeida;
3. Lapidação da Introdução e Montagem: Márcia de Oliveira (Professora de Literatura e Letras – Fortaleza, Ceará);
4. Texto da Apostila: “Mário de Andrade – Estudos VI” – Acervo da Biblioteca da Exposição Retalhos do Modernismo.
Com efeito, êste prêmio significa que pelo menos uma vez a coletividade acadêmica, não sei se por mêdo de reagir ou se por inteligência, mas reconhecedora de poesia, de Cassiano Ricardo, conseguiu descobrir fora do seu cultivado jardim, na floresta maldita das estéticas, uma das raras grutas azuis onde a poesia mais profunda mora, mas, irra! O que é poesia? “Ah! Não me pergunteis por que padeço”!...
Não saberei dizer o que é poesia, mas desde pouco um dos mais admiráveis poemas de Cecília Meireles me chama os ouvidos. É um poema duro, rijo, em que certas frases muito sêcas batem com uma firmeza clássica de pedra, entre frases emolientes, cheias dessa sensibilidade sensual, que faz nascer o adjetivo:
Alta noite, o pobre animal aparece no morro em silêncio,
O capim se inclina entre os errantes vagalumes.
Pequenas asas de perfumes saem das coisas invisíveis.
No chão branco de lua, êle prega e desprega as patas com sombra.
Prega, desprega e para:
- deve ser água o que brilha em estrêlas na terra plácida?
- serão jóias perdidas que a lua apanha em sua mão?
Ah!... não é isso.
E alta noite, pelo morro em silêncio, desce o pobre animal sòzinho.
Em cima vai ficando o céu. Tão grande! Claro. Liso.
Ao longe, desponta o mar, depois das areias espêssas.
As casas fechadas esfriam. Esfriam as fôlhas das árvores.
As pedras estão como muitos mortos – ao lado um do outro, mas estranhos.
E êle para e vira a cabeça. E mira com seus olhos de homem.
Não é nada disso, porém...
Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal em silêncio.
Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se alternam.
Não existe horizonte. A água se acaba em tênue espuma.
Não é isso! Não é isso!
Não é a água perdida a luz andante, a areia exposta...
E o animal se levanta, e ergue a cabeça, e late, e late...
E o éco responde.
Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na noite.
Ah! – Para aquêle lado apressa o passo, em busca do éco.
Eis o que me sôa como definição do mais íntimo sentido de poesia. A nossa grande poetisa busca penetrar os arcanos do simples animal, o “pobre animal”, que depois das obrigações fisiológicas do seu dia, aparece alta noite no morro em silêncio. Quem já observou, por acaso, um pobre animal num dêstes momentos de gratuidade, sabe como êle é prodigiosamente dramático. Dir-se-ia, com efeito, que êle procura e, ao mesmo tempo, se desinteressa de procurar alguma coisa a mais, algum sentido para si mesmo. A sua inquietação é apenas um dos momentos de sensibilidade dessa insuportável vagueza, dessa inexplicável involução do sêr e da vida, apenas terrestremente concebido. Cecília Meireles, pela sua fôrça lírica de conhecimento, ainda unifica nisso os homens aos irracionais, naquela pincelada firme em que indica que o animal “mira com seus olhos de homem”. Não diz “com olhos de homem” o que seria apenas uma comparação, mas “seus” olhos de homem, com excelente felicidade expressiva nos identificando a todos, nessa mesma tristeza de buscar um éco, um sentido, uma identidade maior. Mas, por outro lado, com uma escolha inventiva extraordinária, ela caracterizou o trágico da nossa insolubilidade, transpondo uma observação comesinha, sublimando-a numa síntese nova, e iluminando o seu valor de drama, por conservá-lo no mutismo trágico, no mistério dessa alma irracional, apenas. “Não é isso! Não é isso!”, ficamos sabendo que essa incógnita infeliz não achou o seu sentido, nem encontrou a sua correspondência. E então, tràgicamente, lhe nasce a reação que é de todos nós, o clamor, e êle late e late. “O éco responde. Sensualizado, cheio de esperança e de amor, sua orelha estremece. “Seu coração se derrama na noite. Ah! – Para aquêle lado apressa o passo, em busca do éco”.
Creio não ser difícil penetrar o esplêndido valor dramático e o que há de terrível definição nesta legítima obra-prima. O pobre animal clama e lhe respondem, quem? Apenas um fenômeno acústico, diriam os raciocinantes sistemáticos aplicadores das relações de causa e efeito. Mas estamos em poesia: aquêle éco, aquêle fenômeno acústico... Quem criou isso? quem permitiu a existência do éco? Quem responde? Será Deus? Um mistério, uma insatisfação terrestre... Será apenas a natureza? Em que o animal já por todo o poema não achou sua correspondência... Ou será êle mesmo quem se respondeu? Pois que a voz é dêle e, neste caso, êle só achará a sua correspondência em si mesmo? Mas então nós sabemos que se trata apenas de um éco, e o pobre animal jamais que o achará, nem achará portanto o seu sentido ou o sentido da vida...
Ora, os leitores que ainda me restarem, por certo já perceberam onde eu quis conduzir, e onde, em que gruta mora, de preferência, para mim, a verdadeira poesia. Positivamente, eu estou divagando cá com minhas caraminholas e não tenho elementos para saber até que ponto o que “revivi” neste poema admirável, aí foi pôsto por Cecília Meireles. Ou quem sabe mesmo se o sentido do poema é totalmente outro? Camilo Saint-Saenz conta que um dia, tendo lido numa revista um soneto de Mallarmé, se aplicou com todo o carinho em lhe descobrir o sentido. Afinal, custosamente, julgou perceber alguma coisa, e na primeira vez em que se encontrou com o poeta, chamou-o de parte e lhe contou a interpretação, perguntando se estava certa. Mallarmé confessou que não fôra aquêle o sentido que tivera na criação do soneto, mas como considerava melhor que o seu próprio, o sentido que Saint-Saenz lhe dera, o adotava.
Há muito de blague nesta resposta de Mallarmé, mas a anedota nos reintegra no sentido mais interior e essencial da poesia – uma arte que se lida necessàriamente com palavras que são o seu material, por outro lado, prescinde aquilo para o que a palavra foi criada: o raciocínio lógico, a concatenação de idéias, a formação de juízos e consequente conclusão. Que tudo isso é o domínio da prosa. A poesia é também, pois que o seu material é a palavra, (elemento em que se move a inteligência consciente) a poesia é também um processo de conhecimento. Ela, porém, se coloca no pólo oposto à êsse outro processo verbal de conhecimento que é a ciência, a qual se utiliza da prosa. E, nesse sentido, a própria prosa de romance ou conto é ainda manifestação “científica”, isto é, uma coisa que nos deixa cientes, processo lógico, descrevedor, concatenado e conclusivo de conhecimento. Mas não quero me perder. A poesia com a ciência são os dois processos verbais de conhecimento. O que os distingue essencialmente é que a poesia é uma intuição, ao passo que a ciência (ou a prosa, se quiserem) é uma dedução. Como dedução, a ciência tem que ser fatalmente lógica, ao passo que como intuição, a poesia prescinde da lógica. Galileu, murmurando o “Eppur si muove!” ainda não estava ou já não estava mais no domínio da ciência, mas no da poesia. Porém, nos raciocínios, nas concatenações de idéias, nas conclusões anteriores e posteriores a êsse momento de intuição, êle pisava terreno de ciência e dêle tirou uma lei útil para a prática da vida. Se tivesse ficado apenas no seu clamor, como qualquer criança que grite “Mamãe, o lampião está mexendo!”, êle teria se confinado ao mundo da poesia. E se penetrarmos agora nesse ambiente da criança ou do homem paralogísticos, imediatamente perceberemos que multidão de interpretações fecundas e fantasmáticas tiraremos dessa frase de poesia, mundo em que se interpenetram imagens, idéias, juízos, sensações, movimentos físicos, rítmicos e dinâmicos do sêr completo, não apenas do sêr inteligente, consciente, mas integral com tôdas as milionárias cooparticipações da vida, do eu e do não-eu. E agora não pararemos mais, porque essa integridade é de uma prodigiosa riqueza geratriz, e para cada indivíduo é uma unidade irredutível, incomparável, inadaptável a leis gerais, é o seu mundo. Poderemos, e poderemos em vão, analisar e sentir a criança que exclamou. Na verdade, estaremos nos analisando e sentindo a nós mesmos, e adquirindo um conhecimento amplo, misterioso, entranhado e, ao mesmo tempo, luminosíssimo, que estoura em nós com verdade, o divinatório, o divino da revelação: “Tanto era bela no seu rosto a morte!”; “Isso é amor, e dêsse amor se morre”; “As armas e os barões assinalados”...
E assim, pude retirar do poema de Cecília Meireles, o meu poema, a minha intuição, o que para mim foi uma definição nova de certo momento irracional, que eu já observara, mas ainda não sentira, não “conhecera” poèticamente, no seu poder de comparação, de experiência, de simbologia no bom sentido da palavra. Sentimento profundo, definição reveladora, que só pude ter na graça da poesia, e pela fôrça criadora de Cecília Meireles.
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NOTAS:
1. Cecília Meireles recebeu da Academia Brasileira de Letras, em 1938, o Prêmio de Poesia Olavo Bilac, pelo seu livro Viagem, editado em 1939;
2. Em 1965, é agraciada com o Prêmio Machado de Assis, “post mortem”, pelo conjunto de sua obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras.
FONTES PESQUISADAS:
1. Andrade, Mário de. O Empalhador de Passarinho. 3. Ed. São Paulo: Martins Editora; Brasília, INL, 1972;
2. _______, Mário de. Cecilia e a Poesia. Revista da Academia Paulista de Letras, São Paulo: Ano IX - Edição n.º 35, 12 de Setembro de 1946 – p. 45/50;
3. Haag, Carlos. Feminino Plural. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, São Paulo, 16 de Novembro de 1996;
4. Literatura Comentada. Cecília Meireles. 1. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982;
5. Literatura Comentada. Mário de Andrade. 1. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS:
1. Introdução: Luiz de Almeida;
2. Gravura: Mário de Andrade e Cecília Meireles (Google) – montagem MGI.jpg: Luiz de Almeida;
3. Lapidação da Introdução e Montagem: Márcia de Oliveira (Professora de Literatura e Letras – Fortaleza, Ceará);
4. Texto da Apostila: “Mário de Andrade – Estudos VI” – Acervo da Biblioteca da Exposição Retalhos do Modernismo.
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http://www.literalmeida.blogspot.com/
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