sábado, 19 de dezembro de 2009

A vacina - Alice Vieira

 

A vacina

A vacina

Jornal de Notícias - 2009-11-07

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O meu amigo António acaba de receber uma carta avisando-o de que, a partir do dia tal, deverá ir ao centro de saúde, das tantas às tantas, para lhe ser administrada a dose da vacina a que tem direito.
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O meu amigo António é mais novo do que eu, professor recentemente reformado. Solteiro e sem filhos, vive sozinho lá no seu casarão numa pequena cidade dos arredores de Lisboa, entre quadros, livros e música. O meu amigo António não é obeso, não tem asma, não tem nenhuma doença crónica, não sofre de coisa nenhuma em especial e, evidentemente, não está grávido.
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O meu amigo António não guia táxi, não é deputado, não atende ao balcão, e não pratica enfermagem nos tempos livres. Além disso, o meu amigo António teve a asiática em pequenino ("foi uma festa, fecharam as escolas todas!") e parece que isso garante uma certa imunidade à gripe A.
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O meu amigo António olhou para a carta, leu-a e releu-a, e de repente começou a sentir-se mal. Muito mal mesmo. Porque, sendo uma pessoa absolutamente saudável, o meu amigo António sofre de uma doença absolutamente incurável: é hipocondríaco em altíssimo grau.
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E neste momento anda a incomodar meio mundo (médico de família, médicos da urgência a que costuma recorrer, família, amigos chegados, meio chegados, afastados, afastadíssimos, vagamente conhecidos) para que lhe digam a verdade. Ou seja: ele deve estar muito mal e não sabe. Ele deve estar em risco de patinar e toda a gente lhe anda a esconder o seu estado.
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"Ó doutor, o doutor já me conhece, eu aguento, juro que aguento, mas não me esconda nada! Se os serviços de saúde me convocaram - e olhe aqui, não há dúvida, é o meu nome todo… - é porque devem saber mais do que eu… Diga-me lá, doutor: é grave?"
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O pobre do médico já lhe disse quinhentas vezes que ele não tem nada, está em óptimas condições de saúde, até a tensão é a de um jovem, nem colesterol alto, nada de nada. Mas ele não se conforma: se os serviços de saúde o chamaram, é porque é prioritário; se é prioritário é porque alguma coisa de mal deve ter…
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De vez em quando telefona-me e, em voz cava, pergunta: "Já te chamaram?" E eu vou sempre dizendo que não, mas ele que não perca a esperança, um dia destes se calhar lembram-se de que tive hepatite C há 50 anos, e um cancro já lá vão mais de 20 - e também me consideram prioritária.
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Mas ontem o António telefonou muito mais animado. Assim como se lhe tivessem tirado um peso de cima. É que segundo leu nos jornais, parece que os centros de saúde lá da cidade dele receberam doses da vacina que nunca mais acabam, e por isso vai ser tudo vacinado a eito. Respirou ele fundo e respirámos nós. A vacina pode vir a ser-lhe muito eficaz a prevenir a gripe, mas ia-o matando de coração.
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