segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Espera que um rasgo abra a carnadura da  noite? Mas a noite é vestimenta. E está pousada. Espera que a adaga recupere da  noite aquilo que restou remoto? Mas a noite é paciência e fúria. E se do mesmo  caldo o exaspero e a prece comungam, é porque da noite comungamos nós, atados. E  não se espera da noite a complacência das tardes; nem tampouco se exige da noite  a placidez das manhãs. Pois é com sestro taciturno que ela nos transporta,  madrinha dos flancos, é no labor opaco de seus negaceios que ela nos afunda e  rege. Dela saímos macerados, tortos – como a chapa sai da forja ainda torta.  Dela somos  fruto e hospedeiros. Pois da opulência de seu porte e da audácia de  seus mandamentos partilhamos. E estacamos, calados, quando ela abre seu arsenal  de despojos. E nela nos fiamos, madrasta. E sobre seus andaimes caminhamos. E  nos rejubilamos.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Os Impérios.
 Impérios.  Deixe-me dizer, porque eu guardo em mim uma palavra. Ontem, quando as coisas.  Hoje, quando as ruínas do teu corpo. Impérios de ontem. Teu corpo é um objeto  inacessível. Tua cabeça é um jarro. Teus ombros são andaimes. Eu estou prestes.  Imagino teu corpo na espuma. Império, és tu, de onde a vida, de onde prodigiosa  fauna, de onde o cerne de todas as coisas provêm. Estás aqui? És como um  augúrio. Sou teu rastro, sou o barro por onde os teus passos. Teu dorso é o  campo por onde meço os movimentos do mundo. Aonde paras, lá estou, atento, como  um cervo. Tenho carne e sangue quentes. Estou a três passos de ti. Mas és  fundura e longitude. Eu sou amplidão, pastagem. Espero a tua vinda e o teu  anúncio. Enquanto não vens, escrevo ideogramas na rocha. Nos impérios, onde  habitaste, abunda o vinho e o mel. No teu corpo, labuto eu, imaginário, como um  escriba. Estás aqui? Já sei de ti. És alto, infinito e forte. Vou a ti, como vão  as formiguinhas. Sou teu manto e complemento. Já não vivo: espero a tua  transfiguração, o céu, das cores frisadas, teu manto branco, teus olhos. Os  impérios. De onde vieste, tais impérios, são os teus? Avança, a poesia deve  estar mais viva, avança, amor, pois onde estás, lá estou eu, teu servo. Deixe-me  dizer, porque guardo em mim vagalhões de lava. Aonde foste, teu peito é um vaso,  teus olhos são dardos, teus dedos, teus artelhos. Estou em ti como a planta  permanece enraizada na terra. Sou daqueles que fundaste, com teu nome. Eu mesmo,  aqui paro, sou um nome vivo, à tua espera. Vens? Estás solto, e o vento. Estás  atento - sobre o mundo. Eu permaneço aqui, aferrado ao corpo, movente, amargo,  fugidio.
***
Impérios, sei de ti. Deixe-me dizer, que tenho em mim os ares, as tormentas. Não descanso. Sei que estás aí, sei que és quieto, sei que és escuro. Eu sou escuro, nos impérios, avanço sem teus rumos, avanço sem teu perfume, sem teus braços. E ponho em movimento os instrumentos que me deste, arrumo teu céu, subo aos teus montes, contemplo teus entardeceres. Mas nunca vens. Aonde foste? Aos impérios. Sou um pequeno ser escurecido e busco a tua luz. Nos impérios, a tua força, o músculo, as luzes, tudo age.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Uma Vida de Orquídeas.
1. É com tanta cautela que arrisco-me a pronunciar seu  nome. Com a a delicadeza de quem não quer se deixar enganar pela aparência. Um  dirá: “é uma planta bonita”. O outro: “não é parasita, é epífita”. O que de nada  adiantará. Nada ficará esclarecido. O que é necessário para aproximar-se de uma  vida de orquídea? Como é possível pronuncair juízos sobre a orquídea, sem ao  menos, por um instante, haver cogitado sobre os muitos e obscuros fatores que,  conjugados, resultaram na existência da planta?
2. Quero deixar claro que as flores são meramente os órgãos sexuais. Nada do que digamos poderá reverter o fato. Quero também alertar que fotografei as flores não por serem belas ou raras, como querem alguns, mas porque me senti impelido pela intuição de que seria possível constatar, nas fotografias, não a beleza que se espera das naturezas-mortas, mas sim o susto que se espera das imagens de genitálias.
3. Querem alguns que a orquídea seja bela. Não concordo. Não que eu seja insensível à evidente estranhez que ela exibe, tão altiva. Porém, seria triste carimbá-la com adjetivo tão pobre. Não sei se estou certo, mas bela me parece uma palavra pífia para caracterizar a orquídea, seus talos arroxeados, seus estames, seu porte de rainha-mãe. Prefiro uma adjetivação mais densa, que faça jus à opulência de seu talhe, ao seu oculto poder encantatório.
5. Estive lendo sobre as orquídeas e descobri que elas possuem pseudo-bulbos que agem como reservatório alimentar, o que as torna resistentes e capazes de suportar longos períodos de seca. Li também que o Brasil possui mais de 3.500 espécies nativas. No mundo, são cerca de 20 mil espécies, espalhadas por todo o globo, exceto nas regiões polares.
9. É uma planta pavorosa se a olharmos no microscópio, com seus muitos tentáculos. E peluda, obscena, úmida, pegajosa, com suas tantas protuberâncias, suas saliências. Aparece asquerosa se a olharmos através de lentes possantes, ela, a dentição de suas gárgulas, seus grudentos filamentos, seus repulsivos orifícios, seus testículos.
10. E bissexuada, com seus cachos. E frívola, herbácea, a planta suspensa em plantas, cria das capoeiras. a filha atlântica, selvática, de folhas lanceoladas*, sésseis*, coriáceas*. A famigerada, a adventícia, a planta lúbrica, seus pendões luminescentes, suas aderentes raízes. A planta trepada em plantas, agarrada aos troncos – e daninha, ornamentada, a planta cromossômica, seus genes manipulados. A planta enxertada em plantas, seu epifitismo ou o prazer da escalada milimétrica.
*
lanceolado: cujo feitio é semelhante ao da lança.
séssil: diretamente inserido, sem pedículo ou haste de sustentação.
coriáceo: de consistência semelhante à do couro.
terça-feira, 24 de novembro de 2009
A Vida Líquida.
É necessário falar sobre a chuva. De maneira  mais urgente, é necessário falar sobre a chuva estival que banha a cidade no  meio da tarde, obstruindo o sol com uma fina névoa de gotículas. Eu havia caído  no sono, após o almoço. Na cama, eu soçobrava numa região de sonhos agitados.  Acordei com o barulho de gotas grossas na janela. Quando me levantei, a alma  ainda incrédula, os olhos vagos, percebi que chovia e fazia sol ao mesmo tempo.   Eram camadas e sobrecamadas de água rarefeita e luz refratada – a cidade  brilhava, as coisas faíscavam delicadas, assumiam um ar inocente, como se  redimidas. Tudo durou menos que um quarto de hora. Uma chuva tão terna, em seus  minutos que duraram, fugidios. Logo rebrilhavam seus véus frescos de água sobre  os telhados e reanimava o coração de tudo, as coisas saíam fortes , redivivas,  os laços reatados. Respirava-se. O ar era fino e deslizava para dentro do peito.  Umedecida a tarde, as coisas pousavam suavizadas, reabertas.
É necessário pois que alguém diga algumas palavras sobre a chuva que hoje caiu sobre a cidade. Que durante a parte mais forte da chuva, eu, na janela, vi dois rapazes que passavam. Percebi neles o prazer de caminhar pela chuva sem correr. Como cavalos que no meio do campo, quando chove, continuam a pastar, imperturbados. Comovido, vi que não era sob a chuva que eles caminhavam, mas dentro da chuva, faziam parte dela aqueles dois, aceitavam-na, alegres, como dois potros no campo, e suas passadas eram largas, pausadas. Riam um pro outro, repletos, satisfeitos. Pouco importava que saíssem da aventura um pouco molhados, a pele agradecia, o corpo inteiro aceitava as rajadas. Era bom, e era a vida. Com inveja, estendi meus braços fora da janela para receber, eu também, um pouco daquela água. Quando senti que minhas mãos já estavam molhadas, levei-as à face, ao pescoço. Água-viva: eu também participara um pouco, eu recebera ali o meu quinhão da chuva, eu era um homem refrescado. Durante aquele breve instante eu recolhera, cauteloso, um pedaço da vida e o trouxera até perto da face. A vida, que ali se manifestava em forma de matéria líquida. Foi quando percebi que era preciso escrever. Eu havia sido tocado. Sentei-me então frente ao computador e comecei: "É necessário falar sobre a chuva (...)".
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
O Ser Imaculado.
Câmaras onde se  fabrica o dia,
alturas onde se fabrica a noite.A capa estelar que nos recobre,
a lâmpada astral que nos guia:
a órbita ao redor da qual em rodopio
viajamos:
senhores de nada e de vazio
e entretanto pomposos, laureados,
altivos como deuses,
e como deuses charmosos,
espertos, confiantes.
E criamos.
Sobre a superfície nua da pedra,
rabiscamos o calor da caça
e o êxito do primeiro caçador.
E louvamos.
Um deus que mal nos diz respeito.
E no entanto o adoramos.
Ele e o manto azul de seu filho.
Ele e a face cândida de sua mãe
e a asa lépida da pomba tripartida
e do espírito.
O que nos move?
Será a alegria arcaica extraída
do coração exposto desse deus ou
será o próprio sangue desse deus
derramado e a carne desse deus
sacrificada em holocausto?
Será o vinho vertido do corpo branco desse deus,
será a aorta desse deus que expele vinho santo ou
a coroa de espinhos que lhe lacerava a face ou
será a carne macerada desse deus e convertida em pão,
ou ainda um mero sopro seu o que nos anima?
Resta que.
Aqui pairamos.
Aferrados ao corpo,
ao corpo jungidos.
Ao corpo aguilhoados.
Aqui permanecemos,
por dentro acesos,
tesos por dentro,
por dentro fibrosos,
sanguinolentos por dentro.
É que o júbilo de aqui permanecermos, atados,
mas todavia por inteiro libertos, por demais libertos,
inscreve no portal da alma um signo ilegível:
rodamos em falso, e no entanto rodamos,
mas sem direção.
Somos flecha às cegas disparada
e não se conhece o arqueiro.
Mal sabemos se arqueiro há ou
se a flecha meramente pelo vento
iniciou sua trajetória.
Mas e o impulso do vento,
a trajetória do vento
e a origem de todos os ventos?
É certo:
no nada rodamos,
como se roda num rio que
num mar indecifrado desemboca.
Alturas onde se fabrica a vertigem
que num giro tudo desvanece ou
estradas onde se perfaz a viagem
da qual não se adivinha o rumo ou
motores onde se acumula a fuligem
que nos enegrece as ventas ou
desertos onde se fabrica a miragem ou
túneis onde se fabrica a ida e a vinda
e a vida que os tendões nos inflama
e os calcanhares unidos em prece
e os corações lacerados e as mãos
e os braços erguidos ao céu tumultuado,
e as faces perplexas, desfiguradas
e voltadas ao nada, como se do nada
pudesse sobrevir o ser alado e branco
que do inferno da carne nos salvasse
e nos conduzisse, puros, imateriais,
a um éden qualquer de doces Formas,
a um campo qualquer, mas aprazível
onde a água jorrasse da montanha
e o leite e o mel da pedra recolhêssemos.
Porém, do nada, nada provém.
Do vazio, nada se apresenta ao toque
e nada nos sustenta – a não ser a coragem
e a alegria de aqui lenta e lentamente
definharmos.
Mas alegres e sérios como sátiros,
mas ferindo o couro do tambor pagão
e manejando a flauta que nos trouxe a Hélade
e cantando em coro no cortejo do deus,
vamos todos animados pelo vinho
e imaculados pelo trágico.
Pois o trágico,
Já dizia um amigo meu,
imacula o ser.
Mozart - Brahms: Clarinet Quintets.
Voltemos, pois, à  Música. Em grande estilo, em companhia de velhos amigos - Mozart e Brahms. Este  disco é indispensável, digno de comparecer em qualquer lista de itens a serem  levados a uma ilha deserta. Há uns dois meses ele não sai do meu mp3 player. Na  interpretação cristalina do Emerson String Quartet, dois quintetos para  clarinete, duas obras-primas de mestres consumados. Arrisco-me a dizer que são  os dois melhores quintetos para clarinete que existem - o mozartiano KV581 e o  brahmsiano Opus 115. Eu, pelo menos, nunca ouvi outros melhores. Tanto o de  Mozart quanto o de Brahms, obras da maturidade. Música espessa, cheia de  lirismo, diabruras, altas invenções. A camerística do Mozart maduro é o  supra-sumo incorrigível da elegância e da alegria de viver; o Brahms maduro é  cheio de pathos e de passagens infladas de emoção. Brahms, quando quer, supera  tudo, deixa tudo para trás - é o puro gênio. Em ambos, o clarinete de David  Shifrin, acompanhado pelas quatro cordas, parece cantar - e como canta! Esses  dias, ouvindo-o de longe, achei que era uma voz humana. Trata-se de um disco  quase impalpável, miraculoso, Música que se ouve em sonho. É Música que exige do  ouvinte um pouco de calma, um entrecerrar de pálpebras, um momento a sós. Mas  ela retribui esse pequeno esforço com abertura de mundos inusitados de cor,  ritmo e luminosidade. Um triunfo. 
Faixas em MP3  compactadas em arquivo .rar.
domingo, 22 de novembro de 2009
Pubianos os sinos plangentes da noite mais preta
Pubianas as vozes do ungüento da terra
Pubianos os troncos sob o chão de folhas e raízes
Os pêlos da encosta, como em sonho tocá-los
Ou morder as hastes mal depiladas, os nichos,
As vertentes - e pubianas a carne das costas
A porção mais alentada de matéria.
Um vozerio que não cessa, tropel de cascos
Pubiano o trecho da estrada quase retilínea
As bordas maculadas, crispados os membros,
Pubiana fonte raspada, talo das flores,
Estame das flores, fornalha.
Raça, coragem, flanco turbinado
E a remada alta combinada às pressas
No lance de escadas – que a noite,
Como arraia-mestra, devasta as partes
Mais macias, pubianas as urnas laqueadas,
A noite como alcaide do exercício,
Na faina interminável de romper-te,
Assalta a crosta pubiana do hemisfério,
A doce alaranjada cabeça descoberta
Que vacila sob a linha, a madrugada,
A lida de reter-te e contornar-te sempre.
Imagem: Auguste Rodin - O beijo (detalhe).
Jornadas.
Íamos ao Sul,  vestidos a caráter, com bombachas e as almas filtradas – íamos calados,  valorosos. Com as almas em brasa laboradas íamos, os pés em alpargatas calçados,  guarnecidos na alma, íamos ligeiros, como quem vai ao mundo. E no caminho, sob o  sol meridional veríamos, postada sobre o Olimpo e muito tesa, toda uma  estatuária. Pois há o panteão, sabíamos, e Apolo nos oferecia o mate muito  verde, em cuia de prata preparado. Íamos sem pressa e sempre. Como quem navega,  íamos com força porém calmos, e Apolo com seus cachos nos oferecia o flanco mal  assado de cordeiro. Éramos tão poucos e no entanto tão ávidos. Como se um vento  oculto nos impulsionasse. Tínhamos cigarros, e de quando em quando fumávamos.  Quando Apolo, com seus lábios, nos oferecia  a carne, aceitávamos. Sob a estepe  aberta, avançávamos. Era o Sul, sabíamos, que nos atiçava. Sempre queríamos o  Sul. Era o sol do Sul que nos iluminava, era a cor do Sul que nos preenchia as  retinas. Sem cavalos íamos, porém audazes. E quando Apolo, com o peito aberto,  nos oferecia o laço, rodeávamos as cristas espalmadas das costas, o óleo da  carnadura nos lubrificava, os músculos das pernas nos erguiam, éramos mato e  pastagem. Depois, o Rio Grande, imenso, se abriu. E palmilhávamos a carne das  campanhas, o coração lavrado de um amor antigo. E nos recessos  do campo  serenávamos. E no torpor das clareiras ao meio-dia caçávamos de um e doutro o  cheiro – como se tateássemos. O espelho imóvel das aguadas espelhava o céu. E  cada invernada era o espaço vasto onde girávamos. Urgentes íamos, e derramávamos  a vista na planura e no horizonte que a planura desenhava. Íamos, afoitos como  fletes, e o barro do bebedouros nos guardava o rastro. E a floração do pomos nos  anunciava – “é a hora da vida”. Para a vida íamos, olfateando nas rajadas de  vento o perfume da erva macerada depois da chuva. Éramos fogo e forja, e sobre  matéria rude da alma laborávamos. O Rio Grande era o oceano onde singrávamos.  Mas quando o corpo abrasado do deus atrás das coxilhas se ocultava, e a  escuridão como um traje encobria a campanha, era nas ramadas que, ainda cobertos  com o pó da jornada, enfim, com o peito repleto de um amor exausto,  instantaneamente adormecíamos.
A Grécia Arcaica.
Há, para além da Grécia, um porto. Não  sei contar as ilhas ou as vezes que estive perdido. Mas há um porto, há uma  tarde no arquipélago. Para além da Grécia, olhos que são água. Um herói, um  tirano, um corifeu. Há um corpo sobre o qual descansar, uma Música, um gesto.  Não sei da dança ou das vestes do coro, não sei das máscaras ou do frêmito. Mas  sei do mar, que a Música em ti revolveu – e da espuma. Um grão que é teu – a  areia, teus pés, teus cílios semoventes. Há um mover-se dentro da terra, para  além da Grécia, as mãos espalmadas sobre o chão. Eu vi quando teus olhos  dardejavam, eu percebi, respondi, a Música era a vida ou a seiva que me manteve  vivo. Mãos, companheiro, e força, para seguir avante. Estás  aqui?
Trois Couleurs: Bleu.
Ganhei de um amigo querido o CD da trilha de Zbigniew  Preisner para o filme de Kieslowski. Um presente que me trouxe a maior alegria.  Na minha modesta opinião, trata-se da mais bela música já feita para um filme.  Música envolvente, poderosa e, sobretudo, humana. Para quem viu o filme, a  trilha de Preisner evoca o sofrimento irremediável da personagem Julie,  interpretação escandalosamente magistral de Binoche. Talvez uma música dessas  seja aquela capaz (arrisquemos) de operar a difícil conexão que é a chave do  trágico: entre a inexorabilidade da dor (a dor da perda) e a supremacia de uma  alegria (a alegria da Música) que insiste em fazer valer seu emblema, há um  estreito espaço. Nesse espaço, construído pelos grandes planos corais e  reforçado pela pungência da mesma melodia insistentemente repetida pela  orquestra, ergue-se a silhueta humana do herói (da heroína) contra o fundo  inapelável que a morte instaura e que a heroína, em sua escalada, deve  atravessar. Será esse, talvez, o sentido de uma liberdade que, a despeito da  dor, se ergue sobre a ruína. Mas isso é só tentativa vã de avançar sobre aquele  limiar do indizível (o limiar da música) além do qual qualquer palavra é  convertida num canhestro gaguejar. Então, ouça-se. Faça-se, do silêncio mortal,  a música.
Para ouvir de olhos úmidos e de coração atravessado.
1. Song for the Unification of Europe (Patrice's version) 5:17
2. Van Den Budenmayer - Funeral music (winds) 2:05
3. Julie - Glimpses of Burial 0:32
4. Reprise - First appearance 0:34
5. The Battle of Carnival and Lent 0:59
6. Reprise - Julie with Olivier 0:51
7. Ellipsis 1 0:23
8. First flute 0:52
9. Julie - in her new apartment
10. Reprise - Julie on the stairs
11. Second flute 1:18
12. Ellipsis 2 0:23
13. Van Den Budenmayer - Funeral music (organ) 1:59
14. Van Den Budenmayer - Funeral music (full orchestra) 1:49
15. The Battle of Carnival and Lent II 0:44
16. Reprise - flute (closing credits version) 2:21
17. Ellipsis 3 0:25
19. Olivier and Julie - Trial composition 2:01
20. Olivier's theme - finale 1:40
21. Bolero - Trailer for "Red" film 1:11
22. Song for the Unification of Europe (Julie's version) 6:50
23. Closing credits 2:06
24. Reprise - organ 1:15
25. Bolero - "Red" film
Faixas em MP3 compactadas em arquivo .rar.
Para ouvir de olhos úmidos e de coração atravessado.
1. Song for the Unification of Europe (Patrice's version) 5:17
2. Van Den Budenmayer - Funeral music (winds) 2:05
3. Julie - Glimpses of Burial 0:32
4. Reprise - First appearance 0:34
5. The Battle of Carnival and Lent 0:59
6. Reprise - Julie with Olivier 0:51
7. Ellipsis 1 0:23
8. First flute 0:52
9. Julie - in her new apartment
10. Reprise - Julie on the stairs
11. Second flute 1:18
12. Ellipsis 2 0:23
13. Van Den Budenmayer - Funeral music (organ) 1:59
14. Van Den Budenmayer - Funeral music (full orchestra) 1:49
15. The Battle of Carnival and Lent II 0:44
16. Reprise - flute (closing credits version) 2:21
17. Ellipsis 3 0:25
19. Olivier and Julie - Trial composition 2:01
20. Olivier's theme - finale 1:40
21. Bolero - Trailer for "Red" film 1:11
22. Song for the Unification of Europe (Julie's version) 6:50
23. Closing credits 2:06
24. Reprise - organ 1:15
25. Bolero - "Red" film
Faixas em MP3 compactadas em arquivo .rar.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Na Vereda do Condado Há um Ventrículo.
Na vereda do condado há um ventrículo.
Há um fruto à espera da colheita
uma lua de calendas, um trigal de prata.
Há rochas sob a noite arcaica,
matagais de hastes compridas e folhas  suculentas.
Há um beijo úmido e profundo,
um silvo perdido que de quando em quando se  distingue.
Há um longamente esperar e um pairar ao  lado,
um roçar de braços e uma ausência.
Há um retiro onde se depositam mortos,
um caminho escuro e pedregoso percorrido à  pé,
uma lonjura de baques, rajadas,  rodopios.
Há um olho eternamente aberto na  distância,
há um templo e um fogo eternamente  aceso.
Há um chacoalhar de sementes, um farfalhar de  cascalho,
no pátio há um rumor de passos.
Há um susto e um murmúrio surdos,
um desejo que mal se soletra,
uma palavra que não se pronuncia.
Há um música carnosa, de putanas, de  hetaíras,
um chamamento, um convite que não se  recusa.
Há um deserto de metal farpado
e um mar de duras amplitudes.
Há um sol na arrebentação, de uma luz que  ofusca,
há um rebrilhar que enlouquece, um faiscar que  cega.
Há uma pupila dilatada nesse mar
e um desejo de sempre estar sob essa  luz.
Há uma luta severa entre parceiros,
uma rasteira e um abraço letal.
Há o amor que se oculta na morte
e o fervor de permanecer fiel na morte.
Há uma vibração epidérmica nas coxas
um repentino frenesi nas vísceras.
Há um conter apaixonado o outro corpo,
um ovalar-se desses corpos em fusão
que é supernova mais brilhante extraída da  noite:
quando um olho alaranjado penetra o outro  olho
e de ambos, enquanto se deslocam
é ainda possível divisar, de longe, um ponto  luminoso,
a claridade de um satélite.
Um Lampião.
Como um lampião no aberto campo
ilumina à sua volta a escuridão
e sobre a noite funda lança sua força,
limitada, é certo, mas potente -
assim persiste força humana.
Como aquele rude lampião enfrenta o escuro
munido apenas de sua única chama,
assim é a luz humana: perece enquanto brilha,
mas enquanto brilha alimenta a vida
sendo esta mesma vida o que lhe atiça a flama.
Solidão dessa luz encerrada na treva
teu flamejar é o meu próprio coração aceso
e a tua altivez é a minha coragem,
subitamente erguida.
Ah camparias, hinos, amplidões!
O combustível dessa chama é a minha fome
e o comburente sou eu mesmo –
um flanco em carne viva lacerado
um pomo vivo consumido às pressas.
Que o fogo encendido em ti é o meu fogo
e o fogo de tudo: nisso somos um,
nós e o todo, que arde conosco
enquanto eu ardo convosco e ardemos todos,
parceiros de incêndio.
Ah céus da madrugada, ah voragem,
devoração veloz dos corpos estendidos,
maturação da urgência dos frutos.
Ah prontidão imaculada das coisas
efêmero estar-aceso das coisas
seu ofuscante reluzir e seu relampejar.
Tal qual o lampião aceso aceita o vento
e a cada rajada a sua labareda cresce -
assim estamos frente ao refluir do tempo
mais viçosos a cada investida
mais altivos a cada chibatada
a cada tentativa mais brilhantes.
Pois se é o fogo o princípio de tudo
como na trágica Grécia predisse o Obscuro;
pois se em tudo age a mesma e contínua fome
e pela mesma fera tudo é consumido,
lembremos nós de arder enquanto o vento ruge
e de espalhar sobre o negrume nossa luz –
que essa luz finda, o querosene acaba
e à noite arcaica sobrepõe-se o dia glorioso
e sempre novo.
Mas resiste, petulante e radiosa vida
erguidos os seus mastros, suas velas enfunadas,
sem que os desmandos do tempo a desgovernem –
tal qual o lampião resiste, à beira da ramada
e fita com augusta audácia a madrugada.
Madrugada que só lhe devolve o entreabrir de espaços:
o navegar da lua sob a nuvem,
a coronilha do campo macerada,
o relincho agudo dos crioulos
e a algazarra das vozes misturadas dos pássaros.
ilumina à sua volta a escuridão
e sobre a noite funda lança sua força,
limitada, é certo, mas potente -
assim persiste força humana.
Como aquele rude lampião enfrenta o escuro
munido apenas de sua única chama,
assim é a luz humana: perece enquanto brilha,
mas enquanto brilha alimenta a vida
sendo esta mesma vida o que lhe atiça a flama.
Solidão dessa luz encerrada na treva
teu flamejar é o meu próprio coração aceso
e a tua altivez é a minha coragem,
subitamente erguida.
Ah camparias, hinos, amplidões!
O combustível dessa chama é a minha fome
e o comburente sou eu mesmo –
um flanco em carne viva lacerado
um pomo vivo consumido às pressas.
Que o fogo encendido em ti é o meu fogo
e o fogo de tudo: nisso somos um,
nós e o todo, que arde conosco
enquanto eu ardo convosco e ardemos todos,
parceiros de incêndio.
Ah céus da madrugada, ah voragem,
devoração veloz dos corpos estendidos,
maturação da urgência dos frutos.
Ah prontidão imaculada das coisas
efêmero estar-aceso das coisas
seu ofuscante reluzir e seu relampejar.
Tal qual o lampião aceso aceita o vento
e a cada rajada a sua labareda cresce -
assim estamos frente ao refluir do tempo
mais viçosos a cada investida
mais altivos a cada chibatada
a cada tentativa mais brilhantes.
Pois se é o fogo o princípio de tudo
como na trágica Grécia predisse o Obscuro;
pois se em tudo age a mesma e contínua fome
e pela mesma fera tudo é consumido,
lembremos nós de arder enquanto o vento ruge
e de espalhar sobre o negrume nossa luz –
que essa luz finda, o querosene acaba
e à noite arcaica sobrepõe-se o dia glorioso
e sempre novo.
Mas resiste, petulante e radiosa vida
erguidos os seus mastros, suas velas enfunadas,
sem que os desmandos do tempo a desgovernem –
tal qual o lampião resiste, à beira da ramada
e fita com augusta audácia a madrugada.
Madrugada que só lhe devolve o entreabrir de espaços:
o navegar da lua sob a nuvem,
a coronilha do campo macerada,
o relincho agudo dos crioulos
e a algazarra das vozes misturadas dos pássaros.
Uma Falange de Espinhos.

Há espinhos dentro do meu peito. 
São longos e pontiagudos artefatos.
Estão dispostos por toda a extensão do meu  peito,
Mas são muitos no canal estreito
Que divide um flanco e outro.
Digo: no centro do peito, entre um mamilo e  outro
Há uma concentração de espinhos finos.
São  perspicazes, travessos, insolentes –  
São feitos de aço e tintilam quando  perturbados.
E não são imóveis: mas se aprofundam e  corrompem
A matéria frágil do meu peito
A cada vez que eu me lembro de ti e do teu  hálito.
Eles laceram a matéria carnosa do meu  peito
(meu coração valvulado, meus átrios)
A cada vez que eu reavivo em mim
A lembrança do teu corpo pequeno e  compacto,
A pressão do teus lábios sobre os  meus,
O passeio lento da tua língua sobre a minha  língua.
No interior do centro do meu peito há  espinhos.
Uma legião, digo, de espinhos  ajuntados.
Formam, sobre a carne do meu peito, uma  coroa.
É uma dor redonda e substanciosa e  constante
A dor causada por essa falange.
É uma dor que eu aceito e que me  pertence:
Já que essa dor sou eu, inteiro e vivo e  macerado.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Vida Sob a Sexta-Feira.
Hoje é  noite de sexta-feira. Tudo está suspenso, tudo respira. Eu estava em casa  enquanto a sexta-feira transcorria. Presenciei a tarde, o fim da tarde e estava  atento quando, dos vãos da sexta-feira, a noite começou a emergir. Acendi um  cigarro. Não parecia belo que sombras cautelosas de repente tomassem a  sexta-feira de assalto? Não parecia adequado que toda a sexta-feira fosse  embebida, primeiro na penumbra, depois na escuridão mais doce? E assim foi.  Posso dizer, porque estava alerta. Como uma fruta está alerta e em seu interior  guarda células cheias de vida. Eu era um fruto depositado sobre o tampo  reluzente da tarde. Uma fruta na sexta-feira é a coisa mais impressionante que  existe. Uma maçã, digamos, amarela com rajadas de vermelho – não parece o  máximo? Depois de um instante, a noite tudo envolveu com seu traje. Fui até a  janela e um vento beduíno soprava. A cidade toda reluzia, os postes eram gemas  que piscavam, havia um desfile luxuoso de faróis. E o vento perpassava tudo.  Estaquei, paralisado, frente ao espetáculo. Se ao menos alguém estivesse ao meu  lado, alguém que pudesse servir de testemunha a tudo o que vi. Mas ninguém  estava comigo, pois a sexta-feira estabelecia que somente uma pessoa sozinha  pudesse presenciar seus trabalhos. A vida era simples e majestosa. Havia uma  grandeza oculta em cada canto. Tudo gozava, silenciosamente. As coisas pulsavam  imperceptivelmente, floresciam sem que ninguém as tocasse. Não havia nada que a  sexta-feira desconhecesse, nada de estranho ao seu labor. Fechei a janela,  cansado de estar como testemunha-única. Era demais aquela exigência. Resolvi  sair. Precisava saber se outras pessoas dentro da sexta-feira também estavam  vivas. Coloquei uma roupa bonita, dei um jeito no cabelo, passei um perfume. E  peguei dinheiro, pois meu objetivo era beber uma cerveja. 
E saí para a rua, como quem vai respirar o ar. Os bares estavam cheios de gente. A vida grassava, como eu suspeitara no início. Os rostos eram reluzentes. Os copos, de tão cheios, derramavam. Pedi uma latinha e fiquei observando. Tudo era farto e vivo, não havia miséria. O riso era tão fundo que degringolava em esgar. As meninas usavam maquiagem pesada, eram as mascaradas. Os meninos tinham o peito aberto e usavam bermudas. Uma garçonete estava tão absorta em seu trabalho que mal percebia que era bela. Numa mesa, falava-se sobre religião. Uma mulher de olhos fundos defendia que o cristianismo já existia 300 anos antes de Cristo. Outro rapaz discordava, gritava que era impossível haver cristianismo antes de Cristo. Nada era decidido, mas não importava. O importante era falar, falar, falar, as bocas eram insaciáveis. Suspeitei, por um instante, que falar era uma estratégia para evitar a austeridade que a sexta-feira impunha. Burlar o silêncio da sexta-feira significava falar, mesmo que as palavras não tivessem nenhum sentido.
Saí daquele bar, já não me interessavam palavrórios. Deixei que a sexta-feira decidisse o meu lugar, que tinha que ser um lugar mais sujo. Eu andava numa calçada, ao longo do muro do cemitério. Os carros vinham em direção contrária e me ofuscavam a vista. A Avenida chama-se Doutor João Cândido. Havia sido a minha escolha examinar a sexta-feira a partir de dentro, ao invés de contemplá-la do alto de uma janela do edifício. Mas era uma tarefa difícil. Os carros eram máquinas hostis que avançavam, as ruas eram feitas de pedra empoeirada, os muros eram cobertos de desenhos e mensagens que eu não entendia. A cidade era um caldeirão, eu percebia. A noite era um amontoado de corpos, corpos vivos em genuflexão, corpos mortos em decúbito. Pois eu não ignorava que a meu lado, no cemitério, os mortos eram devorados. Havia uma parte da sexta-feira que dizia: eu sou podridão. Havia outra que dizia: eu sou vida, eu não sou morte.
E a cada passo que eu dava, ao longo do muro do cemitério onde os mortos eram devorados, eu pisava em baratas. Sim, baratas, digo, baratas, quem caminhou por ali sabe bem. Aquele cemitério é um enxame de baratas. Não queria ter entrado nesse assunto tão pútrido. Mas as baratas, naquela hora eu vi, eram o fino da noite. Eu dou toda a razão a Clarice Lispector quando ela diz: “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias.” A sexta-feira, autoritária, exigia que eu reconhecesse a beleza daqueles bichos. Não era fácil, mas apertando os olhos, era possível ver que o casco das baratas brilhava mais que os faróis e mais que as todas as luzes da cidade. Eram os diamantes moventes. Eu estava cheio de asco por ter que palmilhar esse caminho de baratas. Mas a sexta-feira dizia; “-Sê forte!” – e então eu era. A beleza estava ali, pronta, exposta, uma coisa asquerosa, adocicada, o ar que vinha do cemitério exalava o perfume dos corpos. E era doce saber da morte assim, sabendo ao mesmo tempo da beleza. Era doce saber que o putrefato também é uma jóia.
A sexta-feira me dizia que a morte era feita da mesma matéria da vida. Era difícil de acreditar, eu resistia. E desviava instintivamente de cada barata que aparecia no caminho. Mas algo havia se produzido em mim, sem que eu soubesse direito dizer o quê. A sexta-feira seguia seu curso, hierática, senhora de todos os territórios da noite. Eu era apenas um servo, semi-alcoolizado, que desviava das baratas que apareciam. A noite era um traje, tudo vestia, a onipotente. Voltei pra casa, sem nada, as mãos pendendo, o olhar perdido – e já não era sexta-feira: era Sábado.
E saí para a rua, como quem vai respirar o ar. Os bares estavam cheios de gente. A vida grassava, como eu suspeitara no início. Os rostos eram reluzentes. Os copos, de tão cheios, derramavam. Pedi uma latinha e fiquei observando. Tudo era farto e vivo, não havia miséria. O riso era tão fundo que degringolava em esgar. As meninas usavam maquiagem pesada, eram as mascaradas. Os meninos tinham o peito aberto e usavam bermudas. Uma garçonete estava tão absorta em seu trabalho que mal percebia que era bela. Numa mesa, falava-se sobre religião. Uma mulher de olhos fundos defendia que o cristianismo já existia 300 anos antes de Cristo. Outro rapaz discordava, gritava que era impossível haver cristianismo antes de Cristo. Nada era decidido, mas não importava. O importante era falar, falar, falar, as bocas eram insaciáveis. Suspeitei, por um instante, que falar era uma estratégia para evitar a austeridade que a sexta-feira impunha. Burlar o silêncio da sexta-feira significava falar, mesmo que as palavras não tivessem nenhum sentido.
Saí daquele bar, já não me interessavam palavrórios. Deixei que a sexta-feira decidisse o meu lugar, que tinha que ser um lugar mais sujo. Eu andava numa calçada, ao longo do muro do cemitério. Os carros vinham em direção contrária e me ofuscavam a vista. A Avenida chama-se Doutor João Cândido. Havia sido a minha escolha examinar a sexta-feira a partir de dentro, ao invés de contemplá-la do alto de uma janela do edifício. Mas era uma tarefa difícil. Os carros eram máquinas hostis que avançavam, as ruas eram feitas de pedra empoeirada, os muros eram cobertos de desenhos e mensagens que eu não entendia. A cidade era um caldeirão, eu percebia. A noite era um amontoado de corpos, corpos vivos em genuflexão, corpos mortos em decúbito. Pois eu não ignorava que a meu lado, no cemitério, os mortos eram devorados. Havia uma parte da sexta-feira que dizia: eu sou podridão. Havia outra que dizia: eu sou vida, eu não sou morte.
E a cada passo que eu dava, ao longo do muro do cemitério onde os mortos eram devorados, eu pisava em baratas. Sim, baratas, digo, baratas, quem caminhou por ali sabe bem. Aquele cemitério é um enxame de baratas. Não queria ter entrado nesse assunto tão pútrido. Mas as baratas, naquela hora eu vi, eram o fino da noite. Eu dou toda a razão a Clarice Lispector quando ela diz: “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias.” A sexta-feira, autoritária, exigia que eu reconhecesse a beleza daqueles bichos. Não era fácil, mas apertando os olhos, era possível ver que o casco das baratas brilhava mais que os faróis e mais que as todas as luzes da cidade. Eram os diamantes moventes. Eu estava cheio de asco por ter que palmilhar esse caminho de baratas. Mas a sexta-feira dizia; “-Sê forte!” – e então eu era. A beleza estava ali, pronta, exposta, uma coisa asquerosa, adocicada, o ar que vinha do cemitério exalava o perfume dos corpos. E era doce saber da morte assim, sabendo ao mesmo tempo da beleza. Era doce saber que o putrefato também é uma jóia.
A sexta-feira me dizia que a morte era feita da mesma matéria da vida. Era difícil de acreditar, eu resistia. E desviava instintivamente de cada barata que aparecia no caminho. Mas algo havia se produzido em mim, sem que eu soubesse direito dizer o quê. A sexta-feira seguia seu curso, hierática, senhora de todos os territórios da noite. Eu era apenas um servo, semi-alcoolizado, que desviava das baratas que apareciam. A noite era um traje, tudo vestia, a onipotente. Voltei pra casa, sem nada, as mãos pendendo, o olhar perdido – e já não era sexta-feira: era Sábado.



 
 






















 
 







 
 
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