Sexta-feira, 24/2/2006
Digestivo nº 267
Julio Daio Borges
Literatura >>> Política versus literatura Há muito tempo ouvimos falar dos ensaios de George Orwell, o autor de 1984 e A Revolução dos Bichos. Sua obra de não-ficção é quase tão célebre quanto seus dois clássicos como romancista. Orwell viveu intensamente a primeira metade do século XX, experimentando os impactos diretos e indiretos de duas guerras mundiais, sendo um militante de esquerda e, depois, desiludindo-se com política. Fora a aventura de ser escritor (um salve-se-quem-puder em qualquer época, mesmo que em inglês). Um pouco dessa intensidade está em Dentro da Baleia e outros ensaios (2005, Cia. das Letras, 227 págs.), com organização de Daniel Piza e orelha de Sérgio Augusto. E Orwell vale sempre pela sua honestidade intelectual. Inesquecíveis as passagens em que ele desmonta a esquerda, apontando que a melhor motivação para alguém se converter ao socialismo é a falta de trabalho ou dinheiro. Ou então desconstruindo a classe conservadora da Inglaterra, derrubando totens como Johnatan Swift, de Viagens de Gulliver – que, para Orwell, só podia ser impotente sexualmente, para ter tanto horror ao corpo... E é incrível que, de lá pra cá, o mundo tenha mudado muito, mas não tenha, ao mesmo tempo, mudado tanto. Orwell já via sinais de decadência no maniqueísmo de esquerda & direita antes da metade do século XX – mas continuam praticando-o até hoje. No Brasil... Fora os insights literários que valem, igualmente, o livro. As vivências do escritor como resenhista e até profissional do mercado livreiro, num sebo. A fatalidade de assistir à execução de um prisioneiro de guerra; o desconcerto de ter de matar um elefante; e, de repente, o dever de ter de desmascarar Gandhi (ou qualquer outro herói com alguma aura “santa”). Orwell combina a incisividade de um bom filósofo com a clareza de um grande prosador. Sempre será um autor inevitável, para quem quiser revisitar as idéias do século passado. Dentro da Baleia e outros ensaios (trecho) - George Orwell - 2005 - 277 págs. | . | . |
.
Os brasileiros conhecem bem o George Orwell de '1984' e 'A Revolução dos Bichos', duas fábulas políticas que marcaram época pelas críticas ao totalitarismo em imagens fortes. Mas a faceta de jornalista e ensaísta, apresentada em 'Dentro da Baleia', merece igual atenção. Sua prosa de não-ficção tem a mesma capacidade de prender o leitor e, de tão cristalina e flexível, tornou-se um estilo que as boas escolas de jornalismo estudam no mundo todo. Seus temas continuam vivos por obra e graça de sua transparência corajosa poder descritivo. Mesmo as reflexões políticas circunstanciais falam ao leitor de hoje. A organização do livro, a cargo do jornalista Daniel Piza, procura abarcar a variedade de assuntos que interessava a Orwell. Na primeira parte, o autor escreve sobre a carreira de escritor e lembra o período em que trabalhou como vendedor num sebo de livros. Ele também discute a arte da resenha e cria a categoria dos 'bons livros ruins', aqueles que seguimos lendo com empolgação mesmo cientes dos defeitos. Na segunda parte, temos o Orwell memorialista e analista político. Textos como 'Um enforcamento' e 'O abate de um elefante' são clássicos do jornalismo literário. Em 'Reflexões sobre Gandhi', Orwell causa controvérsia ao criticar a vaidade do pacifista mais famoso do século XX. Na terceira e última parte, literatura e política se misturam ainda mais, e ele examina autores como H. G. Wells, Tolstoi, Swift e Mark Twain à luz de suas opções políticas. |
.
.
O que a imprensa diz sobre: DENTRO DA BALEIA E OUTROS ENSAIOS |
Estado de Minas / Data: 11/2/2006 Política no ventre da baleia João Paulo George Orwell (1903-1950) entrou para a história como autor de dois romances políticos de denúncia, A revolução dos bichos e 1984. Entrar para a história não é apenas força de expressão. Com os dois volumes, ele se tomou um dos mais importantes críticos da experiência stalinista e do autoritarismo velado das chamadas sociedades livres, mesmo que pela força da metáfora. Orwell era um homem de esquerda, no sentido forte da palavra: era contra as injustiças, acreditava na ação política e confiava na direção civilizadora da história. De esquerda, mas nunca comunista. Antes de ser romancista - e talvez muito além de ficcionista -, George Orwell foi um jornalista ligado no seu tempo. Sua crítica e visão de mundo vêm exatamente de sua ética profissional: ele analisava o que se passava à sua volta, criticava o poder e apresentava seu olhar de maneira sempre clara. Não são muitos, atualmente, os jornalistas que agem assim, tanto na inteligência como na forma. Por isso a coletânea Dentro da baleia e outros ensaios tem, ainda hoje, grande interesse. O livro se divide entre os dois campos que tomaram a atenção de Orwell: a política e a arte. A seleção de Daniel Piza é equilibrada e inteligente. Na primeira parte, "Palavras, palavras", estão reunidos textos confessionais, que explicam de forma corajosa algumas das posturas do autor. No artigo "Por que escrevo", por exemplo, ele entrega: "Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos". Ao falar sobre o comércio de livros, confessa que está cansado de volumes antigos e, no texto sobre resenhas, afirma que a maioria dos livros não merece esse esforço. E completa: há mesmo livros considerados ruins que são mais úteis que obras-primas. Ao tratar de política, George Orwell se desdobra em duas vertentes. Numa, mostra sua vocação jornalística, ao narrar fatos da ocupação britânica e denunciar as condições subumanas de hospitais europeus. Orwell conhecia a realidade da classe trabalhadora e sabia que o sucesso da esquerda se devia mais ao desemprego que à ideologia marxista. A outra vertente, da crítica do poder, está representada no já clássico texto sobre Gandhi, em que parece mostrar o que todos viam e não tinham coragem de apontar: o projeto medievalista incapaz de resolver as grandes questões do país e a porção de vaidade presente na ação do líder indiano. George Orwell foi ainda bom analista de literatura, capaz de intuições argutas sobre Tolstoi, H.G. Wells e Henry Miller. Mas também de erros, como considerar a literatura de Mark Twain inferior à de Anatole France. Para um defensor da liberdade, é uma mancha sua participação na elaboração de listas de intelectuais criptocomunistas. Seu empenho era transformar política em arte. Talvez tenha falhado, ao achar que era possível estetizar a política. Mesmo nos erros, em muito menor número que os acertos, foi homem de seu tempo. |
Veja / Data: 21/12/2005 O paranóico lúcido Sombrio nas previsões e certeiro na crítica ao totalitarismo, George Orwell foi um dos maiores ensaístas do século XX Jerônimo Teixeira Naquela que é sua previsão central, George Orwell errou. "Estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias", escrevia ele, em 1940, no artigo que dá título a Dentro da Baleia e Outros Ensaios (tradução de José Antonio Arantes; Companhia das Letras; 228 páginas), coletânea organizada pelo jornalista Daniel Piza. Os novos tempos que se anunciavam seriam os mais sombrios da história: o "indivíduo autônomo" seria eliminado da existência. Naquele momento, com a II Guerra Mundial em seus princípios, o prognóstico de Orwell talvez não fosse tão exagerado. Mas, mesmo depois da derrota de Hitler, o escritor ainda sustentaria a mesma tenebrosa profecia no seu último e mais conhecido romance. Escrito em 1948 e publicado no ano seguinte, 1984 descrevia um mundo opressivo no qual os cidadãos vivem sob a permanente vigilância de um Estado autoritário. Essa projeção ficcional felizmente não se concretizou. Os anos 80 do século XX, pelo contrário, assistiram ao início da derrocada do comunismo soviético, a inspiração mais imediata de 1984. Não é por nada que já se falou até de um componente paranóico na obra de Orwell. Mas foi esse alarmismo militante que o manteve firme na recusa de toda e qualquer forma de tirania. Ele foi dos poucos intelectuais da esquerda européia que não flertaram com o stalinismo. Pelo contrário, fez da denúncia da barbárie comunista uma de suas missões como jornalista e escritor. Orwell era uma contradição ambulante: o paranóico lúcido. Filho de um funcionário colonial inglês, George Orwell (nome literário de Eric Arthur Blair) nasceu na Índia, em 1903. Na juventude, tentou seguir os passos do pai e serviu como policial numa colônia britânica, a Birmânia (atual Mianmar). Data daí sua profunda desilusão com a violência do colonialismo, expressa em dois dos mais poderosos textos da coletânea, Um Enforcamento e O Abate de um Elefante. De volta à Europa, no fim dos anos 20, viveu entre Paris e Londres, trabalhando como vendedor de livraria, resenhista de livros e jornalista. Foram anos duros, que o autor relatou em Down and Out in Paris and London (algo como Na Pior em Paris e Londres). Chegou a viver entre mendigos, embora haja quem diga que ele romantizou esse trecho da própria biografia: o que era apenas vida boêmia e dissipação foi transformado em pobreza e privação. Mas o empenho de Orwell pelas causas políticas e sociais estava longe de ser apenas festivo. Em 1936, ele viajou para a Espanha para lutar pelos republicanos na Guerra Civil. Foi ferido no pescoço, o que lhe deixou seqüelas permanentes. Dali em diante, só conseguiria falar em tom baixo (o que não o impediu de trabalhar para a rádio BBC durante a II Guerra). Foi com um devastador ataque aos rumos autoritários da revolução russa que Orwell alcançou o sucesso de público como escritor. A fábula A Revolução dos Bichos, de 1945, é uma bela realização de um ideal do autor: transformar a escrita política em arte. Mas é como ensaísta que o poder de fogo de Orwell se mostra mais certeiro e destruidor. Impecáveis tanto na elegância do estilo quanto na lógica argumentativa, os artigos de Orwell desmontam enganos e contradições do pensamento esquerdista. Embora tenha sempre se declarado um socialista, o escritor se recusava a obedecer a qualquer linha partidária. "A aceitação de qualquer disciplina política parece ser incompatível com a integridade literária", escreve Orwell. Sua integridade, porém, sofreu um golpe póstumo grave quando se descobriu, nos anos 90, que Orwell entregara uma lista de "criptocomunistas" aos serviços de informação britânicos, em 1949 (um ano antes de morrer de tuberculose). Entre os "companheiros de viagem" do Partido Comunista apontados pelo dedo duro de Orwell encontravam-se escritores como J.B. Priestley e atores como Charles Chaplin. Apenas um dos acusados era de fato um espião a serviço dos soviéticos – o jornalista Peter Smollett, também suspeito de ter aconselhado um editor inglês a recusar A Revolução dos Bichos. Ao que parece, a lista destinava-se apenas a evitar que o governo inglês contratasse comunistas em potencial, e nenhum dos acusados sofreu alguma forma de retaliação (a Guerra Fria na Europa não produziu os efeitos histéricos que se viram nos Estados Unidos do macarthismo). Mas é melancólico saber que o escritor tenha se rebaixado à delação anônima – logo ele, que em 1984 criticou a vigilância estatal do "Grande Irmão" (o Big Brother, ironicamente convertido em nome de reality show). George Orwell acabou traído por sua própria paranóia. |
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/imprensa/imprensa_diz.asp?nitem=3185276&sid=184105107111226645935820425&k5=39F72278&uid=
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário