Digestivo nº 386 >>> Cartas, de Antônio Vieira
Pouca gente leu o Imperador da Língua — Fernando Pessoa, por exemplo, leu. Mas, no Brasil, parece que menos gente ainda leu o Padre Vieira. Os Sermões ficaram famosos nas aulas de literatura, afinal, estamos falando do maior escritor do barroco brasileiro, mas suas últimas edições não fizeram o estardalhaço que deveriam e — na onda de Deus, um delírio — alguém pode ficar meio desconfiado de ler, justamente, um sermão... O importante, nessas horas, é lembrar Ariano Suassuna, que afirmou ler Euclides da Cunha não por seus erros em ciência e sociologia, mas pela beleza de estilo. Suassuna acrescentou, ainda, que preferia o nosso Euclides a Gilberto Freyre — que, efetivamente, "acertava" mais, porém, esteticamente, interessava menos. As Cartas, de Vieira, que a editora Globo agora lança, com prefácio de Alcir Pécora, podem servir, portanto, de "segunda chance", para quem se interessou pelo Padre nas aulas de literatura (ou nos versos de Pessoa), tentou os Sermões, mas, por conta do zeitgeist, não mergulhou no estilo do jesuíta. As cartas, propriamente ditas, são quase — o que chamaríamos hoje de — "cartas comerciais", relatórios, prestações de contas, a começar pela primeira: quando Vieira, impressionando seus superiores já aos 16 anos, redigiu, de próprio punho, uma longa carta sobre os feitos da Companhia de Jesus na colônia. Felizmente, para nós, mesmo quando tentava soar objetivo (se essa expressão, aliás, existisse), Vieira se derramava, "se colocava" sempre e compunha painéis vastíssimos. "Imperadores", como ele, nascem só um a cada século. Vale a pena, portanto, abandonar os soldados rasos da literatura contemporânea e cavalgar, altivamente, no estilo do Padre, que balançou, até, o "moderno" Pessoa.
>>> Cartas de Antônio Vieira.
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Cartas, V.1
Autor: VIEIRA, ANTONIO (PADRE)Organizador: AZEVEDO, JOAO LUCIO DE
Editora: GLOBO
Assunto: BIOGRAFIAS, DIÁRIOS, MEMÓRIAS E CORRESPONDÊNCIAS
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Este é o primeiro volume, de três, das 'Cartas do padre Antônio Vieira'. A presente edição conta com uma apresentação do especialista brasileiro em Vieira da atualidade, Alcir Pécora - que, além de comentar a edição original, o conteúdo das cartas e seu contexto histórico e biográfico, também analisa o estilo epistolar da época em geral e de Vieira em particular.
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Saiu na Imprensa:
O Estado de S. Paulo / Data: 2/8/2008
Cartas com esperança e com afeto
Primeiro volume de correspondências do padre jesuíta, organizado por João Lúcio de Azevedo, ganha edição inédita no Brasil
Francisco Quinteiro Pires
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Com esperança e com afeto. Todas as cartas de padre Antônio Vieira apresentam esses recursos para conquistar a simpatia do destinatário. “Mas suas correspondências não têm nada de estritamente pessoal, ou íntimo, da forma como pensamos hoje”, diz Alcir Pécora, um dos maiores especialistas brasileiros em Vieira, cujos 400 anos de nascimento são comemorados neste ano. Ele assina o prefácio do primeiro volume de "Cartas" (Globo, 484 págs.), organizado pelo historiador português João Lúcio de Azevedo e editado pela primeira vez no Brasil.
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“Vieira via basicamente o ato de escrever como um ato negocial, uma forma de atuação fortemente política”, diz Pécora. Essa concepção, no entanto, não impedia o jesuíta de usar recursos emocionais para conquistar a boa disposição do leitor. Ele imprimia um “temperamento” às correspondências, por meio das quais estimulava uma partilha solidária com o destinatário, transformado em cúmplice. Se existe um caráter particular nas correspondências, ele aparece no comprometimento, até a medula, do jesuíta com suas crenças religiosa e política. “A meu ver, o destinatário virtual ou ideal de todas as cartas de Vieira é o Príncipe, aquele que exercia no momento o mand
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Padre Antônio Vieira acreditava na idéia de uma monarquia cristã universal. Ele via o império português como o Estado que concretizaria essa monarquia no mundo todo. Era o Quinto Império, fundado por um rei português, um longo período de paz na terra, antes da chegada ao anti-Cristo e do Juízo Final. “Pode-se dizer que essa crença está pressuposta em todas as cartas”, diz Pécora. “Mas sempre de forma dramática, problemática, por vezes contrariada, por vezes no limite do desengano.” O volume 1 contém a carta conhecida como Esperanças de Portugal, V Império do Mundo, de 29 de abril de 1659. O Tribunal do Santo Ofício de Coimbra se baseou nela para acusar Vieira.
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A esperança no Quinto Império teria de vir com a graça dos céus, mas ela só se concretizaria se o rei de Portugal a transformasse numa razão de Estado. “Esta, entretanto, na perspectiva de Vieira, invariavelmente faltava ao governo português.” Pécora lembra que o jesuíta se valia das cartas para reforçar “o corpo místico” do poder imperial. O padre Antônio Vieira (1608-97) chamava para si a missão de interpretar os sinais divinos para daí aconselhar o rei que lhe desse ouvidos. Não à toa, d. João IV, seu protetor, foi um dos principais correspondentes.
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Alcir Pécora explica que Antônio Vieira obedecia a procedimentos ditados pela Companhia de Jesus para escrever as cartas. Era a ars dictaminis, que previa a seguinte divisão da estrutura do texto: salutatio (saudação ou cumprimento); captatio benevolentiae (obtenção de simpatia ou boa disposição); narratio (narrativa e relação); petitio (pedido, solicitação); e conclusio (fecho, conclusão). Embora sejam práticas de escrita convencionais, as cartas e os sermões têm diferenças no que se refere às suas determinações. “No sermão, o fundamental é a demonstração de um tema extraído do Evangelho do dia, tendo em vista o calendário litúrgico e o tempo histórico vivido pelo auditório”, diz Pécora. “Nas cartas, o que conta é a composição de uma narrativa que desemboca num pedido: os procedimentos de conquista são mais desenvolvidos”, completa.
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Autor de "História de Antônio Vieira", a mais completa biografia do jesuíta, dividida em dois tomos, João Lúcio de Azevedo adotou um procedimento cronológico de organização. O volume 1 reúne 93 cartas, escritas entre 1646 e 1661, disposta em cinco seções. Previsto para ser lançado em outubro, o 2 apresenta 321 correspondências, redigidas entre 1662 e 1673, distribuídas em duas seções. Previsto para dezembro, o terceiro volume tem 305 epístolas, escritas entre 1674 e 1697, dividido em cinco seções. Pouquíssimas cartas surgiram depois dessa organização, feita entre 1925 e 1928. Os três volumes são considerados a compilação mais sólida das cartas de Antônio Vieira.
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Francisco Quinteiro Pires
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Com esperança e com afeto. Todas as cartas de padre Antônio Vieira apresentam esses recursos para conquistar a simpatia do destinatário. “Mas suas correspondências não têm nada de estritamente pessoal, ou íntimo, da forma como pensamos hoje”, diz Alcir Pécora, um dos maiores especialistas brasileiros em Vieira, cujos 400 anos de nascimento são comemorados neste ano. Ele assina o prefácio do primeiro volume de "Cartas" (Globo, 484 págs.), organizado pelo historiador português João Lúcio de Azevedo e editado pela primeira vez no Brasil.
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“Vieira via basicamente o ato de escrever como um ato negocial, uma forma de atuação fortemente política”, diz Pécora. Essa concepção, no entanto, não impedia o jesuíta de usar recursos emocionais para conquistar a boa disposição do leitor. Ele imprimia um “temperamento” às correspondências, por meio das quais estimulava uma partilha solidária com o destinatário, transformado em cúmplice. Se existe um caráter particular nas correspondências, ele aparece no comprometimento, até a medula, do jesuíta com suas crenças religiosa e política. “A meu ver, o destinatário virtual ou ideal de todas as cartas de Vieira é o Príncipe, aquele que exercia no momento o mand
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Padre Antônio Vieira acreditava na idéia de uma monarquia cristã universal. Ele via o império português como o Estado que concretizaria essa monarquia no mundo todo. Era o Quinto Império, fundado por um rei português, um longo período de paz na terra, antes da chegada ao anti-Cristo e do Juízo Final. “Pode-se dizer que essa crença está pressuposta em todas as cartas”, diz Pécora. “Mas sempre de forma dramática, problemática, por vezes contrariada, por vezes no limite do desengano.” O volume 1 contém a carta conhecida como Esperanças de Portugal, V Império do Mundo, de 29 de abril de 1659. O Tribunal do Santo Ofício de Coimbra se baseou nela para acusar Vieira.
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A esperança no Quinto Império teria de vir com a graça dos céus, mas ela só se concretizaria se o rei de Portugal a transformasse numa razão de Estado. “Esta, entretanto, na perspectiva de Vieira, invariavelmente faltava ao governo português.” Pécora lembra que o jesuíta se valia das cartas para reforçar “o corpo místico” do poder imperial. O padre Antônio Vieira (1608-97) chamava para si a missão de interpretar os sinais divinos para daí aconselhar o rei que lhe desse ouvidos. Não à toa, d. João IV, seu protetor, foi um dos principais correspondentes.
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Alcir Pécora explica que Antônio Vieira obedecia a procedimentos ditados pela Companhia de Jesus para escrever as cartas. Era a ars dictaminis, que previa a seguinte divisão da estrutura do texto: salutatio (saudação ou cumprimento); captatio benevolentiae (obtenção de simpatia ou boa disposição); narratio (narrativa e relação); petitio (pedido, solicitação); e conclusio (fecho, conclusão). Embora sejam práticas de escrita convencionais, as cartas e os sermões têm diferenças no que se refere às suas determinações. “No sermão, o fundamental é a demonstração de um tema extraído do Evangelho do dia, tendo em vista o calendário litúrgico e o tempo histórico vivido pelo auditório”, diz Pécora. “Nas cartas, o que conta é a composição de uma narrativa que desemboca num pedido: os procedimentos de conquista são mais desenvolvidos”, completa.
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Autor de "História de Antônio Vieira", a mais completa biografia do jesuíta, dividida em dois tomos, João Lúcio de Azevedo adotou um procedimento cronológico de organização. O volume 1 reúne 93 cartas, escritas entre 1646 e 1661, disposta em cinco seções. Previsto para ser lançado em outubro, o 2 apresenta 321 correspondências, redigidas entre 1662 e 1673, distribuídas em duas seções. Previsto para dezembro, o terceiro volume tem 305 epístolas, escritas entre 1674 e 1697, dividido em cinco seções. Pouquíssimas cartas surgiram depois dessa organização, feita entre 1925 e 1928. Os três volumes são considerados a compilação mais sólida das cartas de Antônio Vieira.
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Sobre o autor:
AZEVEDO, JOAO LUCIO DE
João Lúcio de Azevedo nasce em 1855 em Portugal e morre em 1933. Aos 18 anos, embarca para Belém do Pará, onde torna-se caixeiro de uma grande livraria, da qual viria a ser chefe ao casar-se com a filha do proprietário. Autodidata, aprende várias línguas e começa a escrever suas obras. Ainda no Pará, publica cinco artigos que, reunidos, formariam seu primeiro livro Estudos de História Paraense. Depois de morar alguns anos em Paris, volta a Portugal iniciando o período mais produtivo, publicando diversas obras importantes, como O Marques de Pombal e a sua época, História de Antônio Vieira, A evolução do sebastianismo e História dos cristãos-novos portugueses. Organiza ainda a melhor edição das cartas do Padre Antônio Vieira. Um dos maiores historiadores portugueses do início do século XX, é editado regularmente em Portugal até hoje. Amigo dos historiadores brasileiros Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, dedicou-lhes seu livro Épocas de Portugal Econômico.
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