Bruno Carvalho: «Nenhum jornalista é mais imparcial por
esconder as suas convicções»
AbrilAbril
POR JOÃO MANSO PINHEIRO 4 DE DEZEMBRO DE 2022
De regresso do Donbass, onde trabalhou nos últimos
meses, Bruno Carvalho falou ao AbrilAbril sobre
o papel do jornalista em situação de guerra, os perigos a que se
sujeitou e a ausência de pluralidade na comunicação social.
Numa cena do documentário Salvador, Itália (2018),
Nanni Moretti entrevista um torturador chileno, preso pelos crimes cometidos
durante a ditadura de Pinochet. Sendo confrontado pelo torcionário pela forma
tendenciosa como estaria a conduzir a conversa, Moretti, embora dê todo o
espaço para o torturador afirmar tudo o que lhe interessa, esclarece
rapidamente: Ele, o realizador, o homem, não é imparcial.
Nanni Morreti não renunciou à parcialidade.
Foi o ponto de partida para a conversa com Bruno Amaral de
Carvalho, jornalista que passou seis dos últimos nove meses na região do
Donbass, a cobrir os efeitos devastadores da guerra na Ucrânia nestas
populações, martirizadas por oito longos anos de guerra civil, bombardeamentos
e milhares de vítimas.
Das fornalhas de Azovstal, em Mariupol, aos massacrados
bairros de Donetsk, das movimentações relâmpago das tropas ucranianas e russas
na região de Luhansk aos referendos promovidos pelas autoridades pró-russas nas
quatro províncias anexadas, Bruno Carvalho não foi apenas o único jornalista
português a acompanhar, de perto, a guerra no Donbass. Foi um de poucos
jornalistas europeus que se recusou a ceder ao unanimismo prevalente nas
redacções.
Um jornalista tem de abdicar das suas convicções para cumprir
correctamente as suas funções? O código deontológico exige um trabalho
independente, mas nunca imparcial ou que atente contra a consciência do
jornalista...
Todas as pessoas têm convicções, incluindo os jornalistas. Eu
prefiro o Joe Strummer ao Sid Vicious, gosto mais de García Márquez do que de
Vargas Llosa, sou mais Maradona do que Pelé, prefiro Gillo Pontecorvo a Steven
Spielberg. Cada um de nós traz um mundo dentro de si.
Resistência
antifascista em Donbass
Nenhum jornalista é mais independente ou imparcial por
esconder as suas convicções. Por isso é que há um conjunto de ferramentas
jornalísticas para contornarmos o mais possível a influência das nossas
escolhas no nosso trabalho. Até porque há outros factores no jornalismo que
também têm influência nas nossas abordagens aos acontecimentos. Por exemplo, a
linha editorial, que depende muito das convicções e dos interesses de quem
financia os meios de informação.
Eu nunca escondi as minhas convicções porque sou um cidadão
consciente dos seus direitos e disposto a exercê-los também como forma de os
defender. Os jornalistas não têm menos direitos do que o resto da população.
Felizmente, tive um grande jornalista como professor que
dizia aos seus alunos que o primeiro objectivo de quem trabalha na imprensa
deve ser a ambição de mudar o mundo. Nesse sentido, o Oscar Mascarenhas
valorizava os alunos que tinham uma vida cívica activa, fosse em teatros,
associações desportivas, humanitárias ou políticas. Vivemos num mundo que nos
quer impôr a não política. Ou seja, a ideia de que a política deve ser
exclusiva dos que exercem cargos políticos e a democracia quer-se fechada nas
instituições, com cidadãos cada vez menos activos e incómodos.
Faz-me confusão que haja quem ache que os jornalistas devem
abdicar dessa intervenção enquanto cidadãos na vida colectiva. Sobretudo quando
houve vários jornalistas que o fizeram. Recordo o caso do Mário Mesquita, do
Alfredo Maia, da Carla Castelo e de tantos outros. A Comissão da Carteira
estabelece algumas incompatibilidades, não apenas no exercício da actividade
política, e apenas cargos a tempo inteiro são incompatíveis com o jornalismo.
Acabaste por te tornar mais notório do que muitas
das tuas reportagens. Não é uma posição desconfortável para um jornalista,
que supostamente não devia ser notícia?
Isso aconteceu, sobretudo, quando diferentes figuras me
atacaram, como a ex-candidata presidencial Ana Gomes, a jornalista Fernanda
Câncio, o secretário de Estado João Galamba, a escritora Inês Pedrosa, entre
outros. O Correio da Manhã fez eco dessas acusações, assim
como a revista Visão. Admito também que, para alguns
jornalistas, o facto de eu ser um outsider os tenha deixado
desconfortáveis. De repente, alguém que nunca esteve nos principais meios
portugueses publicava reportagens no Público e na CNN.
Devido a esses ataques, o Público, com o qual
tinha um compromisso verbal, apenas me comprou uma reportagem. Essas pessoas
tentaram desacreditar-me e eu não podia ficar calado. Houve acusações,
colando-me à ideia de eu que era putinista ou pró-russo, que num contexto de
guerra são perigosas. Imagina que eu era capturado pelas forças ucranianas e
que esses soldados compravam essas acusações contra mim.
Ainda assim, recebi muitas mensagens de solidariedade de
muita gente, incluindo jornalistas, mas o Sindicato dos Jornalistas evitou
defender-me. Houve vários jornalistas com muitos anos de experiência que me
disseram que nunca viram nada assim.
Naturalmente, tive de assumir publicamente a minha própria
defesa, assumindo um destaque que nunca me foi confortável, quando a única
coisa que queria era dedicar-me, de forma plena, ao meu trabalho no
Donbass.
Porque é que achas que, num estado de
direito democrático, com uma imprensa livre e plural, as
redacções tenham tomado a opção consciente de rejeitar qualquer
investigação a um dos lados de uma guerra na zona do Donbass?
Repara, ao longo de todos estes meses foram vários os
jornalistas portugueses e estrangeiros que me contactaram para os ajudar a
entrar no Donbass. Eles queriam. Em vários desses casos, as direcções de
informação não os deixaram ir. Portanto, há, desde logo, uma intencionalidade
em cobrir apenas um lado da guerra, o que deixa a descoberto a excepcionalidade
da CNN. Até agora, nas últimas décadas, estes meios sempre tiveram
repórteres no lado do invasor. O problema é que agora o invasor não se chama
Estados Unidos da América.
Agora, nunca me verão dizer que não deve haver jornalistas no
lado controlado pela Ucrânia. Essa é a grande diferença.
Hoje, jornalistas como Kapucinsky, Hemingway ou Robert Fisk
são vistos como exemplos. O primeiro escreveu um grande livro sobre o trabalho
que fez quando acompanhava a guerra civil em Angola, no lado controlado pelo
MPLA, o segundo esteve no lado republicano da guerra civil espanhola e o
terceiro fez uma entrevista ao Bin Laden. Entrámos num nível tal de controlo
editorial e político, onde encaixo a proibição de canais russos na Europa, que
são vários os meios que rasgaram de forma aberta e pública as antigas
declarações de amor à objectividade e imparcialidade.
Sob a acusação de ser um espião russo, prenderam um
jornalista basco na Polónia [Pablo González, colaborador frequente do Público espanhol
e ao serviço do La Sexta TV, está preso há mais de 9 meses,
sem julgamento] quando cobria a crise dos refugiados e ninguém parece
demasiado preocupado com isso. Voltámos à guerra fria e ao maccarthismo.
Como analisas a cobertura da guerra feita pelos orgãos
noticiosos portugueses? Notas algum contraste em relação a outros meios mainstream europeus?
Não. Em geral, seguem a mesma linha. Há excepções, contudo.
Por exemplo, três canais italianos, incluindo a RAI, tiveram
repórteres no lado controlado pelos russos. A Grécia também. De resto, há uma
informação muito uniforme, o que não deixa de ser curioso.
Durante muitos anos justificava-se essa uniformidade porque a
maioria dos meios não queria gastar dinheiro a enviar jornalistas para
determinados cenários de guerra. Então, todos compravam as mesmas reportagens
das principais agências. Agora, houve uma aposta muito grande em enviar
repórteres mas a abordagem é praticamente igual em todo o lado. Algo que falta
muito e, parece-me intencional, é a ausência de contexto.
O objectivo é claro: que não haja uma leitura histórica do
conflito.
As populações de Donetsk, Mariupol, estranhavam a tua
presença? Em certo momento eras dos únicos jornalistas a trabalhar na
região. Com tão pouca presença mediática europeia, não estranhavam um
português? Estavam satisfeitas por alguém as ouvir?
Houve um momento em que era o único repórter a trabalhar para
meios ocidentais em todo o lado controlado pelos russos. Não olho para isso
como um feito mas como uma tragédia. É a morte do jornalismo.
Naturalmente, havia muita surpresa e também desconfiança. Afinal
de contas, eu venho de um país cujos impostos são usados também para financiar
as armas que matam civis em Donetsk. No Hospital de Traumatologia da cidade,
houve vários pacientes que se recusaram a falar comigo por isso mesmo, por ser
um jornalista de um país da NATO. Numa reportagem num mercado, houve uma idosa
que gritou comigo e outro repórter acusando-nos de sermos responsáveis pelo que
lhes estava a acontecer. Mas aconteceu em muitas ocasiões o contrário,
entendendo o nosso trabalho, agradecendo e até encorajando.
Em Mariupol, a situação era tão desesperante que nos pediam
ajuda para comunicarmos com familiares a viver no estrangeiro. Ali, até de
enfermeiros fizemos para salvar a vida a uma idosa que apanhou com os
fragmentos de uma mina anti-pessoal. Evitar quase sempre trabalhar em excursões
organizadas pelas forças russas tornava o trabalho mais livre mas também mais
perigoso. Foi um trabalho que exigiu muito tacto e sensibilidade com os civis,
também com os militares, mas creio que a avaliação geral é positiva.
Já trabalhaste noutros cenários de guerra e conflito. Todos
os conflitos são diferentes, mas há alguma características no Donbass que
destaques?
Estive, em 2017, num acampamento das FARC, na Colômbia, num
momento prévio à entrega de armas mas já durante o processo de paz. Havia uma
tensão natural e prosseguiam os assassinatos de líderes sociais. Contudo, era
um contexto totalmente diferente. No ano seguinte, visitei o Donbass e foi o
meu primeiro contacto com a guerra civil que havia começado em 2014. Aí já ouvi
alguns bombardeamentos, mas esporádicos. Apesar da violação constante dos
Acordos de Minsk, havia já um conflito de baixa intensidade.
O que acontece hoje é de uma dimensão totalmente diferente.
Caem cerca de cem projécteis todos os dias em Donetsk. Em média, há mais de um
morto por dia na cidade. Mais de 2 100 feridos desde Fevereiro. E estamos
a falar de uma cidade que não está em disputa, não tem combates terrestres, não
tem homens a combater no seu interior. Mariupol, sim, estava em disputa e foi,
de facto, um inferno. Havia mortos por todas as partes.
Parece-me que é um erro dizer que esta guerra é apenas entre
a Rússia e a Ucrânia. Há milhares de combatentes estrangeiros do lado
ucraniano, armas ocidentais, estrategas militares ocidentais a assessorar
operações, quando não a comandar, Kiev tem o apoio da inteligência dos
satélites ocidentais, etc... Do outro lado, há combatentes das diversas
realidades nacionais da Federação Russa, há os soldados do Donbass a combater
desde 2014, assim como os cidadãos mobilizados desse mesmo território, há o
grupo Wagner... Ou seja, há uma complexa teia diversa de afinidades e
contradições.
Do ponto de vista mais geral, esta guerra representa um
momento histórico de grande significado porque põe frente a frente duas
realidades geopolíticas que se vinham confrontando de forma económica, política
e também militar, mesmo que de forma indirecta, sobretudo no Médio Oriente, em
que o Ocidente vê o seu poder questionado. É ingénuo acreditar que a guerra vai
acabar sem que Washington ou Moscovo tenham uma palavra a dizer. A implicação
do Ocidente é, hoje, tão óbvia que isso tem um preço nas nossas economias.
Como vês a situação actual do Donbass? Depois da realização
de referendos sem particular credibilidade, com enormes migrações internas,
milhões de pessoas a abandonar a região, é expectável uma estabilização da
situação?
A credibilidade dos processos eleitorais há muito que é algo
secundário no contexto internacional. Há uma avaliação subjectiva em função dos
interesses de cada país. O Kosovo tornou-se independente sem referendo, Juan
Guaidó foi reconhecido presidente por muitos países sem qualquer eleição. Isso
parece-me particularmente grave. À luz do que vi, de facto, não foram
referendos que cumprissem aquilo que consideramos serem processos democráticos,
embora não me pareça haver grandes dúvidas sobre a vontade daquela gente.
Basta ver o histórico eleitoral desde 1991 até 2014. Há um
padrão praticamente inalterado de vitórias de forças pró-russas e comunistas.
Toda a gente que entrevistei me disse que pouco lhe importava o não
reconhecimento dos referendos por parte do Ocidente, uma vez que o Ocidente pouco
se importou com a situação destas pessoas nos últimos oito anos. Parece-me que
teria sido um passo para a paz se a Ucrânia e a Rússia aceitassem a realização
de referendos com todas as garantias dando a palavra às populações com
observadores dos dois lados. Não me parece que haja espaço para isso quando
Kiev não cumpriu sequer os Acordos de Minsk em que estava previsto dar
autonomia a estes territórios.
A Ucrânia não vai aceitar nunca a anexação do Donbass e das
restantes regiões, incluindo a Crimeia, e, nesse sentido, a única perspectiva
de estabilização virá com o fim da guerra que dependerá mais de Washington do
que de Kiev. Sozinha, a Ucrânia não tem condições de manter esta dinâmica
militar.
As populações do Donbass fazem ideia da dimensão do apoio à
figura de Zelensky na União Europeia? Nos meios de comunicação, institucionais,
nas redes sociais...
Sim, há essa noção. Para eles, o inimigo não é apenas
Zelensky. São também os Estados Unidos e a União Europeia. E até a ONU é uma
instituição questionada, sobretudo Guterres, acusando-o de declarações
parciais. Há uma visão da Europa, não isenta de preconceitos, em que somos
vistos como individualistas, demasiado apegados ao dinheiro e ao consumo, pouco
dados aos valores da família e da comunidade, pouco solidários e, naturalmente,
somos considerados fantoches dos norte-americanos. Mas também sabem que há
gente que protesta, que não está de acordo com determinadas políticas e que se
mobiliza contra a guerra.
O que me parece grave é que os líderes europeus fazem tudo
para meter gasolina na fogueira como foi o caso de Josep Borrell,
dizendo que a Europa era um jardim e o resto do mundo uma selva.
Isto significa reforçar, no resto do mundo, o antagonismo ao
eurocentrismo e a esta ideia de que a Europa é um oásis civilizacional no
meio dos selvagens.
Sem comentários:
Enviar um comentário