* Miguel Sousa Tavares
Eva Kaili não é apenas uma mulher
bonita, é linda. Linda, nova, prestigiada, com um emprego de luxo e uma vida
magnífica a fazer aquilo que gosta: a participar directamente na definição das
políticas europeias como deputada e vice-presidente do Parlamento Europeu
durante os últimos oito anos. É difícil de perceber e, menos ainda, de aceitar
o que mais poderia ainda esta grega desejar para si ao ponto de agora estar
fechada numa cela de uma prisão belga acusada do mais indigno dos crimes que
podem recair sobre alguém que faz política em representação dos cidadãos:
ter-se deixado subornar para sustentar no Parlamento Europeu opiniões
contrárias a todo o seu historial político e, a troco de um montão de dinheiro
a perder de vista, acabar a defender a política de direitos humanos e laborais
do Catar. Vem-me à memória uma reportagem que fiz na Grécia, quando Portugal
entrou na então CEE, com um dono de uma exploração agrícola, que me explicava
que era costume estenderem grandes superfícies de redes verdes nos campos para
que os satélites de observação pensassem que eram plantações e Bruxelas lhes
pagasse os subsídios acordados, ou as 140 profissões de “desgaste rápido” que
permitiam aos gregos reformarem-se com a pensão por inteiro ao fim de 25 anos
de trabalho, ou o recurso aos especialistas do Goldman Sachs para os ensinarem
a martelar as contas públicas antes de entrarem em inevitável default, ou
algumas outras experiências desagradáveis de simples honestidade de tratamento
lá vividas, e pergunto-me se haverá alguma coisa de errado com os gregos e o
dinheiro. Mas sei que é injusto e perigoso generalizar e que o mais justo e
mais seguro é tomar o caso de Eva Kaili e dos seus associados (incluindo o
namorado italiano) por aquilo que é à vista: mais um caso da aparentemente
insaciável cobiça de alguns humanos por cada vez mais dinheiro. O síndroma Tio
Patinhas, que aprendemos na infância sob a forma de brincadeira e não de coisa
séria.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
Como quer que seja, este é um
caso-limite que, pelos seus contornos e natureza, atinge profundamente um país,
uma instituição fundamental da UE e toda a classe política que os inimigos da
democracia tanto prazer têm em destruir. Muitos colegas de Eva Kaili, sobretudo
do seu grupo parlamentar socialista, declararam-se a posteriori espantados com
a veemência da defesa do Catar que ela levou ao PE, de forma espontânea e
inesperada. De facto, mesmo paga para tal, é surpreendente que um deputado
europeu se tenha permitido argumentar contra factos públicos e notórios e, para
alguém cuja área de trabalho são os direitos humanos, fazer tábua rasa de tudo
aquilo que se sabe sobre os infelizes que puseram de pé, ao preço das suas
vidas, o Mundial do Catar. Pelo que a dúvida tem toda a razão de ser: como é
que ela se atreveu a tal?
Atreveu-se por duas razões: a
primeira porque, com o Mundial a decorrer e milhões no mundo inteiro
concentrados nos destinos dos jogos, a hora era de esquecer o resto, como disse
o nosso Presidente. E a segunda porque, como o próprio PE estabeleceu há duas
semanas, de momento, para a Europa, só há um Estado no mundo à margem da lei e
da decência: a Rússia, o primeiro e único país até hoje declarado “patrocinador
do terrorismo”. Pelo que Eva Kaili concluiu que tudo o resto podia ser
branqueado porque também aqui as atenções estavam todas concentradas noutro
lado. Ainda esta semana o nosso eurodeputado Paulo Rangel assinou, a meias com
um colega lituano, um artigo a justificar aquela resolução do PE, tomando como
justificação primeira os 8400 mortos civis já causados pela guerra na Ucrânia
(como se fossem todos causados pelo lado russo e não por ambos os lados…), num
texto que, aliás, é uma grosseira manipulação de números, de conceitos e de
conclusões. Mas todos os dias há textos semelhantes na imprensa europeia
escritos por eurodeputados ou por uma imensa legião de alinhados acríticos com
as posições da NATO, de tal forma que é de perguntar se tamanho Blitz opinativo
não esconde o medo de que as pessoas comecem a pensar pela própria cabeça.
Entre nós, várias vozes chegaram mesmo ao delírio de tentar passar a ideia de
que Putin é igual a Estaline e que os bombardeamentos russos às centrais
eléctricas ucranianas são o novo Holodomor — a Grande Fome, de 1932/33, quando
Estaline, em represália pela resistência dos camponeses ucranianos à
colectivização das terras, lhes confiscou todos os cereais, condenando 7 a 10
milhões a morrerem de fome. Deliberadamente, confunde-se o que é uma guerra em
si mesma ilegítima com os actos inevitáveis decorrentes dessa ou de qualquer
outra guerra, como os ataques a instalações civis, que neste caso passam a ser
todos “crimes de guerra” e “terrorismo”.
E como todos os olhares, todas as
atenções e todos os esforços estão concentrados em fazer frente ao único
patrocinador do “terrorismo”, que é a Rússia, presume-se, ao menos por um
interregno, que o resto do mundo é um oásis de paz e de respeito pelos direitos
humanos. Para o qual a Europa olha com o seu olhar complacente, ingénuo e
bem-intencionado. Porém, lá longe, o louco da Coreia voltou aos seus ensaios de
mísseis de longo alcance, mas agora nem há um louco americano que o ache
suficientemente simpático para falar com ele e Biden está demasiado preocupado
com Putin e Xi para prestar atenção a Kim. No Irão, o acordo que estava
iminente para travar a bomba nuclear congelou e o enriquecimento do urânio
prossegue a bom ritmo. Aliás, tanto com a Coreia como com o Irão a participação
da Rússia nas negociações de desarmamento era crucial, mas, embora isso suceda
por vezes nas séries de espionagem, neste caso pedir a um “terrorista” que
ajude a negociar com outros terroristas está fora de questão. E, contudo, tanto
no Irão como no Afeganistão, devolvido aos talibãs por falta de interesse
estratégico, o Ocidente assiste, mudo e quieto, ao maior retrocesso
civilizacional em matéria de direitos humanos desde que Genghis Khan invadiu a
Europa. O nosso aliado saudita prossegue no Iémen uma guerra escondida dos
olhares televisivos onde diariamente morrem 10 vezes mais civis do que na
Ucrânia, mas o príncipe regente que mandou cortar o americano às postas na
Embaixada de Ancara viu Biden ir visitá-lo para lhe beijar a mão e pedir
petróleo que não fosse “terrorista”, e agora, que mediou a libertação da
basquetebolista americana das garras dos “terroristas” russos, está
definitivamente limpo. O aliado israelita está transformado num Estado racista
declarado, onde o apartheid é doutrina oficial do Governo e jurisprudência dos
tribunais e todos os dias invade e expropria mais um pedaço de um país alheio:
a Palestina. Mas os Estados Unidos consentem e a Europa cala. E, enfim, temos o
caso verdadeiramente bicudo do aliado turco, membro da NATO, e que não é
parceiro europeu porque a Europa lhe bateu com a porta na cara há uns anos. Até
ver, a Turquia é, juntamente com os Estados Unidos, um dos únicos ganhadores
desta guerra. Havia uma grande oportunidade a passar em frente da porta e
Erdogan não a desperdiçou. E para a história (para quem a sabe) ficará o feito
notável do Ocidente, e sobretudo da Europa, de conseguir empurrar a Rússia para
os braços da Turquia, e vice-versa.
Para já, o que preocupa Bruxelas
é que Erdogan está a dar a Putin a possibilidade de furar o isolamento
comercial a que as sanções pretendiam condenar a Rússia. Mas, para além de uma
via alternativa para o escoamento da energia e dos cereais russos, a Turquia,
aliada da Rússia, dar-lhe-á o controlo do mar Negro e da saída através do
Bósforo para o Mediterrâneo Oriental, no flanco sul da NATO e numa zona
estratégica da Europa. Porém, a desforra de Erdogan vai mais longe: para não
vetar a adesão da Suécia e da Finlândia à NATO, ele exige a humilhação destes
dois países (apoiada por Stoltenberg) e carta branca para, invadindo países
vizinhos, dizimar os curdos — que foram os aliados decisivos do Ocidente para
derrotar no terreno os verdadeiros terroristas do Daesh. E, cego pela sua nova
ambição imperial, cresce agora sobre a Grécia, ameaçando tomar as ilhas do Egeu
e atingir Atenas com os seus novos brinquedos de morte. Explicitamente.
Eis onde estamos. Eis onde
chegou a Europa. A obsessão de ver tudo a preto e branco fez esquecer a
geopolítica, fechou a porta à diplomacia, confundiu infiltrados com aliados e
facilitou nos valores apregoados em benefício da narrativa que se quis impor às
opiniões públicas. No fim, a Europa irá descobrir que ficou sozinha num
continente em desagregação e num mundo sem eixos de referência nem pontes entre
realidades diversas e interesses diferentes, onde triunfará a lei dos mais
fortes. E não será a nossa.
https://estatuadesal.com/2022/12/17/bonita-ingenua-bem-intencionada-a-europa/
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