sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Melancolia agravada


* Carlos Coutinho
  

 UMA notícia melancólica na rádio, ao acordar, melancolizou-me para o resto da manhã: faz hoje 134 anos que o pintor Vincent van Gogh cortou a orelha esquerda e a entregou a uma prostituta. Estavam ambos em Auvers-sur-Oise, no Norte da França. 

   É hoje consensual entre críticos e historiadores da arte que nos últimos dois meses de sua vida, o malogrado pintor entrou num dos seus períodos mais criativos, quase eufóricos, a ponto de executar uma obra absolutamente inesperada por dia. Uma simples cadeira, por exemplo, ou uma cama, ou uma esplanada ao luar, ou um bando de corvos a sobrevoar um campo de trigo. 

   Alguns dos fatores-chaves para essa produtividade foram a sua libertação do asilo em Saint-Remy e a sua mudança para a referida vila piscatória. 

   Talvez seja o negrume dessas aves contra um céu azul o que agora se adensa na minha mente, enquanto folheio o jornal e me esqueço de que tenho de ir almoçar.  
 
   No Peru, um presidente de esquerda fez-se acompanhar de uma vice-presidente que, aparentemente, instigou e aproveitou um golpe de Estado para se tornar presidente. 

   Chama-se Pedro Castilho o destituído e está preso. 

   Os governos latino-americanos que Washington não controla completamente – México, Argentina, Bolívia e Colômbia, para já – emitiram uma nota conjunta em que declaram ser Castillo “vítima de assédio antidemocrático”. Lopes Obrador, o Presidente mexicano, afirmou que continua a reconhecê-lo como legítimo presidente do Peru, país que, até à recente eleição do deposto Presidente Pedro Castillo, era governado por Francisco Sagasti, um pau-mandado dos EUA que encabeçava a Organização dos Estados Americanos, especialmente ativa contra a Venezuela. 

   Mas, para azedar ainda mais a minha melancolia de cidadão português em tempo de guerra, ainda faltava mais um tempero. E este, muito forte: O ex-comissário europeu Dimitris Avramópoulos, um grego parecido com tantos outros no seu país e no resto da União Europeia, confessa que recebeu 60 mil euros e várias prendas do Qatar e de Marrocos, como paga de influências solicitadas e exercidas, mas apenas quando já não era deputado. Ou seja, quando já não valia nada…
            
   Foi intermediário nestas maroscas o ex-euro-deputado italiano Pier Paolo Panzeri, que foi apanhado no seu quarto e de Eva Kaili pela polícia belga com uma mala cheia de dinheiro vivo e é o companheiro atual desta demitida vice-presidente do Parlamento Europeu, também ela grega e filha de outro ex-euro-deputado grego que geria as receitas e também está preso...

É quase insuportável este cheiro a estrume, mesmo em Lisboa, que, nem por estar tão longe de Estrasburgo, consegue respirar bom ar.

   À noite 

   DESLIGADA a televisão e já a caminho do vale de lençóis, olhei de relance para os livros e reparei na lombada de um que recentemente revisitei, a “Arte de Furtar” e que, não por acaso, está encostado à “Peregrinação”.  

   Não me suscitou inoportuno interesse o livro do moralista Padre Manuel da Costa, que era jesuíta e muito hábil naquela escrita barroca, mas a obra antimoralista de Fernão Mendes Pinto, que nunca foi imoral, fez-me parar à frente da estante e sacar o segundo tomo, encostado que está, sintomaticamente, ao volume antigo e em capa dura da portuense Livraria Chardron que, em esmerada quarta edição, na sua Coleção Lusitânia, junta as “Cartas de Amor”, de Soror Mariana Alcoforado, e a ultramoralista “Carta de Guia de Casados”, de D. Francisco Manuel de Melo.

  Abrindo o livro do velho residente, em pó e em bronze, junto à foz do Tejo, mas nasceu em Montemor-o-Velho em 1510 e dorme agora e desde 1583 no Pragal, Almada, depois de ter sido escravo, mercador, corsário, jesuíta, missionário, aventureiro e explorador de paragens euroasiáticas, no entendimento dos seus biógrafos, vejo de Fernão Mendes Pinto resolveu passar a escrito as suas vivências e observações, tendo falecido antes de as ver publicadas.  

   Já com o sono adiado, parti na minha pesquisa irreprimível e encontrei a seguinte delícia:
   “O tamanho da obra também era um obstáculo considerável naquela época, ainda mais sem o auxílio financeiro de nenhuma instituição ou mecenas.

   “Independente disso, a Casa Pia submete os escritos de Pinto ao crivo da Inquisição, que o aprova em 1603, o mesmo ano em que o processo de análise se iniciou. Somente em 1614 o famoso editor Pedro Craesbeeck aceita a empreitada, ainda que o contexto da época não lhe fosse favorável. O livro, organizado por Frei Belchior Faria, fora publicado com o seguinte título (na íntegra e em português clássico): 

Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus.” 

   Não resisto a transcrever aqui também o começo do capitulo 180:

    “Depois que ficámos senhores desta triste jangada, à custa de tanto sangue, tanto nosso como dos chins, nos metemos nela trinta e oito pessoas, das quais doze eram portugueses; e os mais, moços nossos, e alguns meninos filhos de portugueses; e os mais de nós íamos muito feridos, de que depois nos morreram quase todos, e por sermos muitos e a jangada muito pequena, íamos nela metidos na água até ao pescoço. Contudo desta maneira nos desamarrámos desta triste restinga, um sábado, dia de Natal do ano de 1547, e com um só pedaço de colcha nos fomos ao som do mar para onde a água nos queria levar.” 

   Talvez eu me lembre deste parágrafo depois de amanhã, dia 25 de dezembro de 2022, porque o tempo anda tempestuoso e os média, há uns dias para cá, apenas falam ora de futebol, ora da guerra, ora do Natal.

2022 12 23

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