sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Daniel Oliveira - Estava fadado

SEMANÁRIO#2618 - 30/12/22

* DANIEL OLIVEIRA


A demissão de Alexandra Reis tornou-se inevitável desde que saiu o comunicado da TAP. Já era evidente que a presidente da empresa a tinha querido fora do Conselho de Administração, convidando-a a rescindir. O que resulta do comunicado foi que a TAP optou por negociar a rescisão para não seguir o Estatuto do Gestor Público. Depois do esclarecimento, Medina não podia fazer outra coisa. Como iria uma secretária de Estado do Tesouro que custou meio milhão ao Estado explicar que, apesar dos excedentes orçamentais, não há dinheiro para travar a degradação de serviços públicos? A demissão de Hugo Mendes tornou-se inevitável quando se percebeu que autorizou uma solução que lhe foi vendida como a melhor. A ex-administradora teria sempre de ser pressio­nada para devolver o que não lhe era devido depois de ir para a NAV. E a administração da TAP nunca mais poderá conti­nuar a dizer que os trabalhadores em greve põem em perigo uma empresa salva com dinheiros públicos depois de ter estourado meio milhão para se ver livre de uma administradora. Quanto a Pedro Nuno Santos, mesmo que não soubesse do acordo final, nunca deixariam de dizer que tinha de saber. Atirar a culpa para o “porteiro” seria feio. As legítimas dúvidas legais e a revolta popular com esta indemnização não o abandonariam.

Em circunstâncias normais, Pedro Nuno Santos sairia chamuscado mas não precisaria de se demitir. Não se pode ser responsável pelo que se sabe mais tarde. Só que a TAP não é um dossiê como os outros, o ambiente social não é o normal e governar sabendo que não se tem a solidariedade do primeiro-ministro é insustentável. Ainda mais num Governo que está tão distante das suas convicções políticas. Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste Governo. Assim, sai assumindo a responsabilidade política do que acontece no seu ministério. Nem todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos em nove meses, nunca assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e do que prefere não saber.

O natural impacto desta demissão deixa um debate por fazer. Ao contrário do que diz a voz popular, não é preciso ter cartão partidário para subir depressa na vida. E Alexandra Reis foi exemplo disso. Sem passado político, chega à administração pela mão de Humberto Pedrosa e dá nas vistas como gestora pela tenacidade com que participou na reestruturação da TAP, reduzindo com eficácia salários e pessoal. Foi por causa dessa qualidade exterminadora, e não por ter cartão do PS, que foi parar ao Governo. A política deve abrir-se à sociedade civil. É um dos mantras impensados que mais se repete. Se a ideia é que a política deve estar mais próxima do povo, subscrevo o ideal democrático. Mas não é bem isso. É a ideia de que a política suja se purificará abrindo uma janela para uma “sociedade civil” onde se respira competência e virtude. E quem fala de “sociedade civil” não está a pensar em sindicatos, associações ou ONG. Está a pensar, na melhor das hipóteses, na academia e, mais frequentemente, nas empresas. Porque é lá que o mercado já selecionou “os melhores”.

Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste Governo. Sai assumindo a responsabilidade política do que acontece no seu ministério. Nem todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos em nove meses, nunca assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e do que prefere não saber

A tecnocracia trata a democracia como um processo de recrutamento dos “melhores”, e não como uma forma de representação de alternativas políticas. E quando passou a ir buscar “os melhores” às empresas, transferiu, quer na lógica de direção do Estado, quer na cultura dos decisores, a eficácia empresarial para as políticas públicas. O que quer dizer que quem consegue reduzir drasticamente a massa salarial e despedir com rapidez dará, em princípio, uma boa secretária de Estado do Tesouro.

Se as empresas públicas devem ser geridas como as privadas, a ideia de serviço público faz pouco sentido. Se os gestores, públicos ou privados, coabitam no mesmo mercado concorrencial, partilham, para além de salários semelhantes, a convicção de que fazem parte de um clube restrito, onde lhes está garantido um regime de proteção especial, como acontece hoje em quase todas as grandes empresas. Alexandra Reis (e a TAP) limitou-se a seguir o critério da casta a que ela julga pertencer e onde o Governo a foi buscar. Uma casta à qual não se aplicam as leis laborais que os gestores querem para os trabalhadores, mas o regime de exceção que garantem para si mesmos. A flexibilidade é para os outros. Porque, vale sempre a pena recordar, eles são “os melhores”.

O Presidente da República teve razão quando disse que meio milhão de indemnização faz impressão ao português comum. Não porque o português comum seja impressionável, mas porque é impressionante a diferença de critérios para a indemnização de um trabalhador ao fim de uma vida numa empresa e de um gestor que por lá passa dois anos a despedir pessoas. Na torre de marfim onde vive, esta casta convenceu-nos de que, por serem “os melhores”, merece o privilégio único da segurança. Habituámo-nos a isto nas empresas. Ainda nos incomoda na política. Só quando lá chegam suspeitamos do seu mérito e revoltamo-nos com as falhas éticas do seu passado. Tivesse Alexandra Reis seguido a sua vida e ninguém saberia. Pedro Nuno Santos, esse, acabaria por sair. Talvez por razões melhores.

 

https://expresso.pt/opiniao/2022-12-30-Estava-fadado-dbd809af

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