Opinião
.Resolvi colocar a questão sobre a “cultura de papel” e a democracia a um robot. Este texto é meio meu, meio dele.
17 de Dezembro de 2022, 0:15
A “transição
digital” tornou-se um dos slogans com mais sucesso dos nossos dias e
faz parte das “modernidades” dos programas de governo e é fortemente
financiada. Este novo jargão exprime realidades sólidas, mas também muito lixo
retórico. O que é e como “transita” para o digital? O que é que se ganha ou se
perde numa sociedade democrática?
Resolvi colocar a questão sobre a “cultura
de papel” e a democracia a um robot, a um mecanismo de inteligência
artificial. Isto que digo não é uma metáfora, nem uma procura na Internet, nem
um texto da Wikipédia, mas uma realidade própria usando um dos programas mais
interessantes da OpenAI, neste caso, o ChatGPT.
O robot respondeu-me em português, embora seja o português do
“acordês”, e, de um modo geral, das várias vezes que tenho experimentado este
programa, as respostas são capazes e sensatas, embora com uma certa tendência
para o truísmo e para o cânone. Ou seja, o programa não oferece nenhuma
originalidade, nem ultrapassa a informação existente na Internet, mas vai mais
longe do que tudo o que tenha sido tentado até hoje. Por isso, este texto é
meio meu, meio de um robot.
HAL 9000, o melhor robot de sempre DR
Confrontado com a questão da relação entre a “cultura de
papel” e a democracia, esta foi a resposta em meia dúzia de segundos:
A cultura de papel
tem sido um elemento importante da democracia em muitos países, pois é através
de documentos impressos em papel que muitas decisões políticas são tomadas e
registradas. Além disso, a impressão em papel tem sido um meio importante de
disseminação de informação e de comunicação, especialmente através de jornais e
livros.
No entanto, a
tecnologia digital está mudando rapidamente a forma como as informações são
compartilhadas e acessadas, e isso tem levado a uma diminuição da dependência
da cultura de papel em alguns aspectos da democracia. Por exemplo, muitos
documentos oficiais agora são disponibilizados eletronicamente, e muitas
pessoas obtêm suas notícias e informações através de meios digitais, como sites
de notícias e redes sociais. Isso tem levado a uma mudança na forma como as
pessoas participam da democracia e na forma como as decisões políticas são
tomadas.
A última frase sobre “a mudança na forma como as pessoas
participam na democracia”, escrita em tom neutro, é muito significativa. O
robot não vai às várias questões que a substituição do papel pela digitalização
levanta, por exemplo, no escrutínio dos actos da governação, que supostamente a
lei obriga a ficarem registados.
Um exemplo clássico português foi a utilização de um
computador de um membro da troika por um ministro para comunicações
sobre o programa da troika, que impede que haja um registo facilmente
acessível sobre o que foram opções políticas portuguesas ou imposições da troika,
um elemento essencial para se perceber a política de austeridade do governo
Passos-Portas-troika. Claro que o governante podia também nunca as
colocar em papel e o computador da troika pode ainda conter traços desse
material, mas o que é certo é que o escrutínio se torna mais difícil e o acto
de sonegar informações relevantes, mesmo que ainda permanecessem hoje
confidenciais, é ilegal.
Este problema remete para a questão da segurança em que o
papel ainda é mais eficaz e durável. O robot, confrontado com as vantagens e
inconvenientes do arquivo em papel, refere:
Durabilidade: o papel
é relativamente durável e pode resistir ao manuseio e armazenamento sem se
deteriorar rapidamente. Ele é menos suscetível a danos físicos do que outros
materiais, como dispositivos eletrônicos, que podem ser facilmente danificados
por água ou impacto.
Estabilidade química:
o papel é resistente a muitas reações químicas que podem causar degradação. Ele
não corrói ou escurece com o tempo e não emite gases ou vapores que podem
danificar outros materiais.
Qualidade
arquivística: alguns tipos de papel são especialmente projetados para o
armazenamento a longo prazo (…).
Fácil armazenamento:
o papel é relativamente leve e fácil de armazenar, o que o torna conveniente
para guardar grandes quantidades de informação em um espaço pequeno.
Em geral, o papel é
um material confiável e prático para a preservação de informações, pois é
durável, quimicamente estável e fácil de armazenar. Além disso, é relativamente
barato, o que o torna uma escolha prática para muitas organizações e
indivíduos.
Se colocarmos a questão ao contrário, sobre as vantagens “em
armazenar documentos e informações digitalmente em vez de em formato de papel”,
o robot acentua várias vantagens de poupança do espaço físico, maior
segurança no acesso a documentos reservados protegidos por senhas, menor
desperdício do que o do papel e menor custo de armazenagem. Mas as verdadeiras
vantagens são a acessibilidade remota e a “facilidade de busca”.
Parto do princípio de que ler é um elemento fundamental da
civilização, e que uma crise ou desqualificação da leitura é má para a
democracia. Aqui, a resposta do robot é particularmente dúbia
Porém, a resposta não refere duas coisas relevantes, a
perecibilidade e a ilegibilidade a prazo dos materiais electrónicos. Disquetes
de vários tamanhos, Zip drives, CD, etc., exigem hoje o mesmo esforço de
conversão que cassetes áudio e vídeo e vários formatos de filmes. Não é
impossível, admito que este problema seja conjuntural e que, a seu tempo, se
encontrem soluções para garantir mais facilidade de transcrição e fiabilidade.
Mas, entretanto, muita coisa se perde ou fica irrecuperável.
Mas vamos mais longe para aspectos mais complexos da
“transição digital”, o que se lê, como se lê, o que não se lê ou se deixou de
ler. Parto do princípio de que ler é um elemento fundamental da civilização e
que uma crise ou desqualificação da leitura é má para a democracia. Aqui, a
resposta do robot é particularmente dúbia. É o que vamos comentar a seguir.
O autor é colunista do PÚBLICO
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