sábado, 17 de dezembro de 2022

José Pacheco Pereira - A cultura do papel e a democracia — os limites da “transição digital”

Opinião

.Resolvi colocar a questão sobre a “cultura de papel” e a democracia a um robot. Este texto é meio meu, meio dele.

José Pacheco Pereira

17 de Dezembro de 2022, 0:15

A “transição digital” tornou-se um dos slogans com mais sucesso dos nossos dias e faz parte das “modernidades” dos programas de governo e é fortemente financiada. Este novo jargão exprime realidades sólidas, mas também muito lixo retórico. O que é e como “transita” para o digital? O que é que se ganha ou se perde numa sociedade democrática?

Resolvi colocar a questão sobre a “cultura de papel” e a democracia a um robot, a um mecanismo de inteligência artificial. Isto que digo não é uma metáfora, nem uma procura na Internet, nem um texto da Wikipédia, mas uma realidade própria usando um dos programas mais interessantes da OpenAI, neste caso, o ChatGPT.

O robot respondeu-me em português, embora seja o português do “acordês”, e, de um modo geral, das várias vezes que tenho experimentado este programa, as respostas são capazes e sensatas, embora com uma certa tendência para o truísmo e para o cânone. Ou seja, o programa não oferece nenhuma originalidade, nem ultrapassa a informação existente na Internet, mas vai mais longe do que tudo o que tenha sido tentado até hoje. Por isso, este texto é meio meu, meio de um robot.

HAL 9000, o melhor robot de sempre DR

Confrontado com a questão da relação entre a “cultura de papel” e a democracia, esta foi a resposta em meia dúzia de segundos:

A cultura de papel tem sido um elemento importante da democracia em muitos países, pois é através de documentos impressos em papel que muitas decisões políticas são tomadas e registradas. Além disso, a impressão em papel tem sido um meio importante de disseminação de informação e de comunicação, especialmente através de jornais e livros.

No entanto, a tecnologia digital está mudando rapidamente a forma como as informações são compartilhadas e acessadas, e isso tem levado a uma diminuição da dependência da cultura de papel em alguns aspectos da democracia. Por exemplo, muitos documentos oficiais agora são disponibilizados eletronicamente, e muitas pessoas obtêm suas notícias e informações através de meios digitais, como sites de notícias e redes sociais. Isso tem levado a uma mudança na forma como as pessoas participam da democracia e na forma como as decisões políticas são tomadas.

A última frase sobre “a mudança na forma como as pessoas participam na democracia”, escrita em tom neutro, é muito significativa. O robot não vai às várias questões que a substituição do papel pela digitalização levanta, por exemplo, no escrutínio dos actos da governação, que supostamente a lei obriga a ficarem registados.

Um exemplo clássico português foi a utilização de um computador de um membro da troika por um ministro para comunicações sobre o programa da troika, que impede que haja um registo facilmente acessível sobre o que foram opções políticas portuguesas ou imposições da troika, um elemento essencial para se perceber a política de austeridade do governo Passos-Portas-troika. Claro que o governante podia também nunca as colocar em papel e o computador da troika pode ainda conter traços desse material, mas o que é certo é que o escrutínio se torna mais difícil e o acto de sonegar informações relevantes, mesmo que ainda permanecessem hoje confidenciais, é ilegal.

Este problema remete para a questão da segurança em que o papel ainda é mais eficaz e durável. O robot, confrontado com as vantagens e inconvenientes do arquivo em papel, refere:

Durabilidade: o papel é relativamente durável e pode resistir ao manuseio e armazenamento sem se deteriorar rapidamente. Ele é menos suscetível a danos físicos do que outros materiais, como dispositivos eletrônicos, que podem ser facilmente danificados por água ou impacto.

Estabilidade química: o papel é resistente a muitas reações químicas que podem causar degradação. Ele não corrói ou escurece com o tempo e não emite gases ou vapores que podem danificar outros materiais.

Qualidade arquivística: alguns tipos de papel são especialmente projetados para o armazenamento a longo prazo (…).

Fácil armazenamento: o papel é relativamente leve e fácil de armazenar, o que o torna conveniente para guardar grandes quantidades de informação em um espaço pequeno.

Em geral, o papel é um material confiável e prático para a preservação de informações, pois é durável, quimicamente estável e fácil de armazenar. Além disso, é relativamente barato, o que o torna uma escolha prática para muitas organizações e indivíduos.

Se colocarmos a questão ao contrário, sobre as vantagens “em armazenar documentos e informações digitalmente em vez de em formato de papel”, o robot acentua várias vantagens de poupança do espaço físico, maior segurança no acesso a documentos reservados protegidos por senhas, menor desperdício do que o do papel e menor custo de armazenagem. Mas as verdadeiras vantagens são a acessibilidade remota e a “facilidade de busca”.

Parto do princípio de que ler é um elemento fundamental da civilização, e que uma crise ou desqualificação da leitura é má para a democracia. Aqui, a resposta do robot é particularmente dúbia

Porém, a resposta não refere duas coisas relevantes, a perecibilidade e a ilegibilidade a prazo dos materiais electrónicos. Disquetes de vários tamanhos, Zip drives, CD, etc., exigem hoje o mesmo esforço de conversão que cassetes áudio e vídeo e vários formatos de filmes. Não é impossível, admito que este problema seja conjuntural e que, a seu tempo, se encontrem soluções para garantir mais facilidade de transcrição e fiabilidade. Mas, entretanto, muita coisa se perde ou fica irrecuperável.

Mas vamos mais longe para aspectos mais complexos da “transição digital”, o que se lê, como se lê, o que não se lê ou se deixou de ler. Parto do princípio de que ler é um elemento fundamental da civilização e que uma crise ou desqualificação da leitura é má para a democracia. Aqui, a resposta do robot é particularmente dúbia. É o que vamos comentar a seguir.

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2022/12/17/opiniao/opiniao/cultura-papel-democracia-limites-transicao-digital-2031775


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