* Carlos Coutinho
MESMO que sejamos muito complacentes ou tolerantes, não temos de nos resignar perante dislates universalizados como o de chamar betesga a uma rua, por mais extraordinária que seja a sua vizinhança orgânica, já que, em bom e consagrado português, este étimo significa beco, coisa que, por definição, simplesmente não tem saída.
Ora, a Rua da Betesga, na Baixa nobre de Lisboa, além de pleonástica nos termos, tem saídas simétricas e amplas, tal como recordações muito más da Inquisição e dos frequentadores da zona, eclesiásticos ou não. Liga, como é sabido, o Rossio à Praça da Figueira, onde avulta a envergadura do cavalo metálico de D. João I que só não vai de metro para a Praça do Comércio porque já lá impera o cavalo de bronze, tão metálico como o cavaleiro, que pisa serpentes sob o olhar cauteloso e arguto do Marquês de Pombal que dali consegue ver Almada.
Além disso, com um pequeno D. Sebastião de pedra, em frente, que tomba de vez em quando do seu nicho na fachada revivalista da Estação da CP, quem quiser ir a pé para os Restauradores, que é sempre a melhor ideia, tem de passar pelas traseiras pouco nobilitadas do Teatro Nacional, deixando para trás, o largo de má memória para onde dá a porta macabra da sinistra Igreja de S. Domingos. Era daí que partiam em procissão as vítimas dos autos de fé para a fogueira do Santo Ofício, cujo cheiro a churrasco fazia as delícias dos clérigos fundamentalistas mais gulosos, 'verbi gratia' o jesuíta Malagrida.
Isto para não falar em ruas de ricos como a dos Douradores, a dos Correeiros, a dos Sapateiros, a dos Fanqueiros, a da Prata, a do Ouro e a Augusta. Foi ali que o terramoto de 1755 arrasou o Hospital de Todos os Santos que nenhuma santidade prévia conseguiu defender das convulsões telúricas, do maremoto que veio a seguir e do incêndio geral que veio fazer o resto, em obediência aos alegados desígnios de Deus.
Como se vê, a toponímia nem sempre tem em conta a realidade e muito menos a História, como Voltaire comprovou, os iluministas estudaram e o Marquês inaugurou, ao pôr em prática a sua ideia revolucionária de ordenamento urbano.
Ainda hoje, nas disciplinas de planeamento urbanístico, o desarrincanço erudito do nosso Sebastião José e da sua equipa é um 'case study' imprescindível.
À noite
Vendo bem, este dia 1 de dezembro também é um 'case study' no calendário português: em 1640 os fogosos restauradores defenestraram o Miguel de Vasconcelos e proclamaram a independência do nosso país, instalando uma quarta dinastia, a dos Braganças que deram ao Marquês a oportunidade de lançar a cidade do futuro; e em 1910 foi apresentada oficialmente a nova bandeira de Portugal, após a implantação da República.
Mas no resto do mundo esta data não é menos significativa: no ano 800, um concílio especial levou Carlos Magno, rei dos francos, ao Vaticano para julgar as patifarias do Papa Leão III; em 1822, D. Pedro I foi coroado imperador do Brasil, vindo a Portugal dez anos depois caucionar a Revolução Liberal; em 1862, no discurso sobre o Estado da União, o Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, que também usava ainda mão-de-obra escrava, reafirmou a necessidade de se pôr termo à escravidão, conforme o estipulado dez semanas antes na Proclamação da Emancipação; em 1952, “The New York Daily News” relatou o primeiro caso de mudança cirúrgica de sexo; em 1960, os cachorros Pchelka (Abelhinha) e Mushka (Mosquinha) viajaram para o Cosmos a bordo do Korabl-Sputnik 3; em 1976, Angola foi admitida como estado-membro da ONU; em 2009 entrou em vigor o Tratado de Lisboa que instituiu a nossa nova perda da independência.
E hoje, o esgrouviado ministro Cravinho anunciou uma nova dádiva de Portugal à Crimeia - um milhão de euros, para que a guerra possa durar mais algum tempo...
2022.12.01
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