VISTO DE FORA
por Tiago Franco // dezembro 14, 2022
________________________________________
CATEGORIA: OPINIÃO
TEMAS: TIAGO FRANCO, VISTO DE FORA
________________________________________
Em Campo Maior, numa rua cheia de lama, com carros ao monte, há pessoas de galochas e pás na mãos, encasacados até à cabeça, recolhendo o entulho e empurrando a água para as entradas de esgoto.
Percebe-se, em apenas cinco segundos, o que estão ali a fazer.
A jornalista, obrigada a criar qualquer coisa para o directo, aproxima-se, obriga um dos senhores a parar tarefa e atira-lhe a pergunta do milhão de dólares:
“Então, o que estão aqui a fazer?”
O camarada alentejano levantou os olhos da enxada, olhou para a jornalista e deve ter pensado num “f***-se!! O que é que te parece que estamos a fazer??”. Mas respirou, lembrou-se que tinha ali uma câmara, e disse, de rajada e em volume aceitável: “LIMPEZAAA!”
Os directos são um mistério para mim. Nunca percebi o interesse de, por exemplo, ter alguém numa cidade a 1.000 quilómetros de uma frente de batalha para entrar à noite, em directo do hotel, a tempo de nos contar o que alguém lhe disse que está a acontecer a oito horas de carro dali.
Compreendo, obviamente, o interesse da reportagem em directo, que nos traz as imagens do que está a acontecer. Mas a necessidade extrema de criar conteúdo com interesse informativo nulo, para além de deixar uma sensação de vergonha alheia, acaba apenas por atrapalhar quem, de facto, está a tentar fazer algo de jeito.
A história de Campo Maior fez-me lembrar um dos incêndios deste Verão, quando uns jornalistas, da CNN julgo, tentavam entrevistar bombeiros enquanto estes apagavam o fogo, o que é, só por isso, bizarro. Acabaram por ouvir, entre corridas desesperadas, que “têm que desviar o carro para o camião conseguir passar”.
Ou pior, quando perguntavam a populares o que por ali faziam, num incêndio junto ao Fundão, se a memória não me falha, e uma senhora, a carregar baldes de água, lhes disse: “se largassem o microfone e agarrassem nuns baldes é que era de valor!”
Que informação relevante é que pode dar um popular, no meio de uma aflição, a quem precisa de encher uns minutos de directo? Não entendo, a sério que não.
Mas pior do que as horas de irrelevância informativa, é a estratégia editorial. Seja qual for o tema, desde que apareça como novo, é espremido até à exaustão, como se deixasse de existir mundo a partir desse momento informativo.
Quando a covid-19 rebentou tínhamos directos do aeroporto de Lisboa para acompanhar a chegada dos portugueses que tinham sido evacuados da China. O pessoal médico estava vestido com uns fatos da NASA, como naquele filme Outbreak dos anos 90 (com Dustin Hoffman), e lá atrás da rede de protecção, as câmaras das televisões faziam o zoom possível para nos mostrar qualquer coisa.
Dois anos com directos dos hospitais, conferências do Infarmed, powerpoints do Costa, vacinas do almirante, regras e mais regras. Polícias na rua a correr com velhotes que comiam sandes num banco de jardim, restauração na falência, palminhas nas varandas. Mal nos apercebemos que já havia rockets no Donbass.
Nos Verões são os incêndios, nos Invernos as cheias. Enquanto acontecem, temos horas e horas de directos, debates, diagnósticos do que está mal (matas, num caso, e sarjetas sujas, no outro) para, um ano depois, repetirmos todo o processo: directo, debate, diagnóstico. Pelo meio, mete-se o Natal e os directos passam para os centros comerciais ao som de Mariah Carey ou Wham.
Chega a guerra – a de 2014 até 2022 foi só o aquecimento – e durante meses temos tanques no quintal e mapas de ocupação. Desaparece o resto do Mundo novamente. Acaba a covid-19 de forma oficial.
Em Novembro, a guerra acalmou para ligarmos aos diretos do Qatar. Até a selecção portuguesa ser eliminada, ninguém se magoou em Donetsk. Por essa altura, interessou saber tudo, mas mesmo tudo, que Ronaldo disse, pensou, fez, disse mas não fez, pensou mas não disse, disse mas não queria dizer, e todas as demais combinações.
É importante massacrar um jogador até que já ninguém, nem sequer entre os seus colegas, consiga ouvir falar mais no tema. É importante não discutir o que joga ou podia jogar uma equipa de 25 e criar, em vez disso, uma gigantesca onda negativa em torno de uma equipa que, afinal, todos queríamos que vencesse.
O golo marroquino acontece e o São Pedro começou a castigar o território ibérico. Os mouros estão de volta. Há água por todo o lado, carros a boiar, casas alagadas, cidades transformadas na Veneza dos subúrbios.
Percebo a gravidade, os problemas e os dramas, mas, tal como nos demais temas, o Mundo volta a desaparecer. Como se, com tantos recursos de recolha de informação, cada linha editorial só conseguisse lidar com um tema de cada vez. Ou até como se, para representar uma calamidade, seja necessário entrevistar pessoas que limpam as ruas em cada aldeia do país. Vi um directo do Muxito. Do Muxito!
Para vós que sois menos versados em cultura urbana da margem sul, o Muxito era uma mata que, na minha juventude, era conhecida por ser um sítio de paragem para profissionais de um ramo profissional muito antigo, ligado à venda de sensações cutâneas. Não é uma zona que tenha visto os seus primeiros líquidos nesta enchente.
E enquanto escrevia isto, pensando que então que terminara o texto, notei que o directo regressou a Campo Maior e apanhou outro senhor. O homem estava a carregar móveis, cheio de lama na cara e nas mãos, e, mal lhe cheira a pergunta, vira as costas ao jornalista que, para desenrascar, diz: “as pessoas não querem falar, mas as imagens falam por si”.
Aleluia irmão!, aleluia!
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
https://paginaum.pt/2022/12/14/a-magia-do-directo-a-portuguesa/
Sem comentários:
Enviar um comentário