domingo, 25 de dezembro de 2022

José Pacheco Pereira ·- Operações de busca e salvamento

 

Opinião

·        *  José Pacheco Pereira

·    Aqui vão algumas histórias de salvamentos feitos pelo Arquivo Ephemera.

24 de Dezembro de 2022, 7:03

Um ditado na ditadura do Estado Novo Arquivo Ephemera

Como estamos em festas, tiramos umas pseudoférias da agressividade política destes tempos e da conversação com a máquina da inteligência artificial (lá voltaremos) para a mais interessante tarefa de andar aos papéis, actividade a que eu e um bando de goliardos/as/es muito especial se dedica com grande pathos e considerável hubris.

Aqui vão algumas histórias de salvamentos feitos pelo Arquivo Ephemera, fiéis aos factos, mas imitando aquele twist que Mário Soares fazia, quando contava as suas histórias.

Os contentores no meio do campo

Um dia, à saída da missa, na igreja ao lado de casa, naqueles momentos em que numa pequena aldeia se socializa, um senhor disse-me que andava aos papéis, ou seja, era farrapeiro. O nome da profissão não é muito encomiástico, mas para os caçadores-recolectores é uma nobre profissão, quando se chega a tempo, antes dos farrapos. Disse-me que tinha uns livros a que ia arrancar as capas, visto que a cartolina das capas era mais valiosa do que o papel do miolo do livro e perguntou-me se eu queria ver e eventualmente comprar alguns. Queria, claro.

Fui ver. Estavam no meio de um campo em contentores, atirados para dentro como se fossem pedras, madeira ou restos de coisas, porque na verdade eram restos, só que restos muito especiais. Tirei um à sorte. Era uma primeira edição de Jorge Amado. “Compro tudo.” O preço era a peso, no seu conjunto, e ainda havia mais. “Há para lá uns papéis escuros.” “Traga tudo.” Ao todo seis toneladas descarregadas à pá de cestos de vindima. Felizmente não tinha chovido.

Era uma biblioteca e papéis de um autodidacta ribatejano e, como já escrevi, “os livros falam de mais”, e os papéis ainda mais. Era um autodidacta muito especial: agente da Polícia de Viação e Trânsito, integrado na GNR, e, depois de reformado, pastor evangélico. Muito provavelmente homossexual, a julgar pelas revistas pornográficas alemãs que possuía e pela transformação visual nas fotografias depois de sair da GNR. Talvez por isso a família vendeu tudo a peso no dia seguinte à sua morte.


O armazém onde os trolhas andavam em cima de papéis

A vantagem de ser um arquivo pouco ortodoxo que, entre outras estranhezas, tem uma equipa de futebol com camisolas apelando ao papel da conservação da memória e que vai a todo o lado aborrecer as pessoas com “estas coisas” é que dá resultados. É pouco ortodoxo e pouco sisudo, mas resulta.

Vários espólios valiosos têm sido salvos, porque empreiteiros e construtores civis viram falar na televisão ou nos jornais (como aqui) do valor documental dos papéis antigos. Há alguns anos recebi um contacto de um senhor que era responsável pela demolição (ou reparação) de um armazém na zona de Aveiro: “Os trolhas andam em cima de papéis, vocês querem?” Esta é a pergunta que não vale a pena fazer, mas que gostamos sempre de ouvir. Claro que queremos.

'Os trolhas andam em cima de papéis, vocês querem?' Esta é a pergunta que não vale a pena fazer, mas que gostamos sempre de ouvir

E lá vieram em caixotes, cheios de pó e caliça, nem mais nem menos do que um arquivo do MDP/CDE de Aveiro, do jornal Libertação, da JCP, da campanha de Zenha, etc. Correspondência, contabilidade, actas, livros de assinantes, artigos por publicar, cartazes, faixas, tudo. E este salvamento nestas circunstâncias – obras, demolições, limpeza de casas abandonadas para reabilitação – está longe de ser o único.

O partido despejado da sua sede

Um dia, há muito pouco tempo, recebeu-se ao fim da tarde um telefonema: “O CDS encerrou a sua sede de Coimbra e deitaram tudo fora na rua.” Como é que a esta hora se vai conseguir lá chegar antes de os papéis desaparecerem? Felizmente que há amigos e voluntários por todo o lado e em breve se conseguiu uma carrinha que da Figueira da Foz foi a Coimbra ao local indicado. Já não estava lá nada. “Mas há ali ao fundo uns contentores do lixo, vou lá ver.” E viu. Foram salvas pastas com correspondência, contabilidade, panfletos, cartazes, faixas e panos, documentação sobre a intervenção da Juventude Centrista na universidade, documentos sobre a passagem do CDS a CDS-PP, a campanha presidencial de Basílio Horta, etc., etc.

Veio tudo do lixo, e não é excepção. Felizmente nada estava estragado e tudo consideravelmente limpo. Vir do lixo não é novidade, há muitas histórias, desde uma senhora que descobriu que a vizinha da frente deitara para o lixo dezenas de pastas e embrulhos de documentos e recolheu-os. Salvou assim uma parte relevante da história da agricultura angolana, visto que os papéis eram de um alto funcionário administrativo, uma espécie de ministro da agricultura colonial. Ou uma outra senhora que durante dez anos recolheu muito daquilo que as famílias deitavam fora depois de um falecimento, organizou as fotos, as cartas, os documentos pessoais, permitindo assim valorizar o arquivo das “pessoas comuns”, que são mais do que se pensa incomuns, nas suas vidas anónimas e muitas vezes “mal vividas”.

São estes papéis que nos ensinam muito. Acima de tudo a confrontar as pessoas com aquilo que antigamente se dizia ser o olhar “humanista”, que cada vez mais se perde.

Aqui ficam, pois, três histórias para que sejam exemplares, ou seja, para que haja outras para contar. É propaganda? É, mas é de boas coisas. As más estão sempre em vantagem, e têm tudo a seu favor, pelo que se deve aproveitar tudo.

O autor é colunista do PÚBLICO

Historiador

https://www.publico.pt/2022/12/24/opiniao/opiniao/operacoes-busca-salvamento-2032586 

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