Carlos Coutinho
2022 12 02
NUNCA fui a Veneza nem agora lá tenciono ir. Por muitas e boas razões e, sobretudo, esta: a cidade que edifiquei na minha fantasia, com o cimento da literatura e o ordenamento urbano das inúmeras imagens gráficas que observei, não pode coincidir com a que lá está.
Olhei-a de cima, há uns anos, quando ia sentado junto à vigia num avião de cruzeiro, que fizera escala em Zurique e passaria por Budapeste. Pus-me então a imaginar os odores das suas águas citadinas que só podiam ser idênticos aos do Sena em Paris, onde vi papel de embrulho, preservativos usados, cascas de fruta e outros resíduos faunísticos a flutuar devagarinho entre folhas de árvore e manchas de gordura anódina
O veneziano pavimento líquido feito de águas poluídas e quase paradas, sob pontes antigas ou a bordejar as soleiras das portas de grandes casarões de pedra, sobrepunham-se em verdade imaginária às ficções de Shakespeare, Hemingway e Thomas Mann, que eram e são o que eu tinha e ainda tenho na memória.
Também na capital húngara, apesar de Lizt e Bartok, o Danúbio cheirava mal, já que vinha de muito longe no seu trânsito para o Mar Negro, onde ia entregar os resíduos internacionais de dezenas de urbes, quintas agrícolas e unidades industriais.
Sei que não é isso o que hoje se passa em rios urbanos – o Douro, o Tejo, o Pó, o Reno, sei lá… –, mas a mitificada cidade dos doges e dos carnavais faustosos deixou de me atrair e nada conheço tão desconfortável como caminhar aos encontrões nas torrentes de turistas babélicos que o século XXI continua a densificar, seja no Terreiro do Paço, em Lisboa, seja na Praça de S. Marcos, em Veneza, seja nas ruas do nosso Bairro Alto, seja nas Ramblas de Barcelona.
Peço desculpa, se estou a ser para alguém um pernóstico desmancha-prazeres.
À noite
“SE muitos pensares punham o juízo a arder a D. Quixote antes de derribado, mais eram os que o afligiam depois de dar o tombo.
Estava à sombra da árvore e ali, como já se disse, tal como as moscas ao mel, lhe acudiam e ferroavam os cuidados: uns que diziam respeito ao desencanto de Dulcineia, outros à vida que havia que levar em seu forçado retiro. Chegou Sancho e gabou-lhe a liberalidade do lacaio Tosilos.
“– É possível, Sancho – disse D. Quixote – que ainda estejas na ideia de que aquele homem é realmente lacaio? Já não te lembras que viste Dulcineia convertida numa pategória e o cavaleiro dos Espelhos no bacharel Sansão Carrasco, por malandrice dos encantadores que não me largam?”
Quem assim falava não era Zaratustra, pela boca de Aquilino.
É isto o começo do Capítulo LXVII de “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha”. Encontra-se na reta final do III Tomo do romance que um cobrador de impostos chamado Cervantes, coxo da perna esquerda, escreveu depois de ver as habilidades dos moinhos de vento que encimavam, morro atrás de morro, o planalto manchego.
Na versão aquiliniana, que é bem mais que uma literal tradução, de tão arrevesada que é, este rio de palavras parece divergir algumas vezes do texto que canónico, que era o que o meu pai possuía e vinha acompanhado por gravuras do extraordinário romântico francês Gustave Doré.
Morava o precioso livro de capa dura, com um canto roído por algum rato herege, num sarcófago vertical que havia na parede do fundo da minha desaparecida “casa velha”, concretamente um armário cavado na parede arcaica da “sala grande”, entre garrafas empoeiradas de “vinho fino”, uma pequena cesta com apetrechos domésticos, alguns volumes de Camilo e uma teimosa teia de aranha que sempre reaparecia pouco depois de alguém a ter escorraçado dali.
Emprestei o precioso “Quixote” a um alfaiate que, logo de seguida, partiu com ele para Luanda, donde haveria de regressar alguns meses depois – “apanhado do clima”, como então se dizia –, sem o livro, mas virado do avesso, ou seja, peripatético, desprovido de palavras e com aquele olhar espantado ou simplesmente intraduzível que se lhe plantava sob as sobrancelhas negras, dadas as coisas ou gestos que via nas ruelas da minha aldeia.
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Na extinta sala – lembro-me tão bem! – havia o mosqueiro pendente do teto e, ao lado, no canto do fundo, o alçapão por onde se descia para o “armazém” que nos recebia muito fresco, com os dois toneis, a enlatada caixa do azeite, três pipos modestos, a tulha das batatas e o lagar com a respetiva lagareta à frente.
Hoje interrogo-me se não haveria em Romarigães, num daqueles casarões em ruinas que os Machados deixaram, uma adega tão aprazível como a que na minha “casa velha” era tratada por “armazém”.
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