* Carlos Coutinho
TENHO há 46 anos os três volumes do “Heptameron”, de Margarida de Navarra, numa muito cuidada edição da Estampa de 1976. Por incrível que pareça, apenas hoje me deu para começar a ler esta obra inqualificável, apesar de ser de um famoso par a presente tradução – Luíza Neto Jorge e Manuel João Gomes. Ela também poetisa e ele também crítico de teatro.
A razão por que só agora tive coragem
de entrar nestas páginas prende-se com o facto de eu, em tempos, muito haver
convivido com ambos e com Herberto Hélder, ao fim da tarde, no café lisboeta “A
Brasileira”, quando este ainda não tinha à porta a estátua de Pessoa sentado,
embora, em frente já estivesse, também em bronze e também sentado, o poeta
Chiado.
Por motivos que não vêm para o caso,
não vou contar a história desta intocabilidade, embora eu já tenha aqui falado
de uma poetisa muito suave chamada Helena Perfeito que também partilhava a
nossa mesa e um dia resolveu suicidar-se.
Foi um golpe terrível em nós os três
e, em mim, o único hoje sobrevivo, nunca cicatrizou completamente.
Mas, voltando à Margarida de Navarra,
sabe-se que nasceu de uma união desvairada do espanhol Carlos V com Margarida
de Gest, tendo entrado para a família dos Médici, em Florença, onde viveu
muitas das suas graças e desgraças e aprendeu o que mais tarde pôs em verso:
"Tão graciosa doença
Não leva ninguém à morte,
Mas faz bem dizer que sim,
Pra se lograr certo consolo.
Há quem se queixe e atormente
Sem ser o mais atingido,
Mas se o mal de amores for grava
Mais vale tê-lo um, que dois."
O “Heptameron” é uma narrativa que se
organiza em dois prólogos e duas jornadas, cada uma com dez curtas novelas. Na
primeira faz-se “uma recolha das partidas que as mulheres pregaram aos homens e
os homens às mulheres” e na segunda “discorre-se sobre aqueles que se deixam
cair nas esparrelas de quem quer que seja”.
A “Primeira Novela”, à semelhança de
“As Mil e Uma Noites”, começa assim:
“Senhoras minhas, tão má recompensa
recebi pelos muitos serviços que prestei que, para me vingar do amor e daquela
que tão crua foi comigo, me vou dar ao trabalho de fazer uma recolha das
partidas que as mulheres pregaram aos pobres dos homens, e nada direi que não
seja pura verdade: Na cidade de Alençon, em vida do duque Carlos, o último
deles, havia um procurador chamado Saint-Aignan que desposara uma formosa jovem
da região, mais bela que virtuosa, a qual, por sua beleza e leviandade, começou
a ser perseguida pelo bispo de Sées…”
Ora, aconteceu que o tal Carlos,
duque de Alençon, foi nem mais nem menos que o primeiro marido da escritora e
ela, nas edições de 1558 e de 1559, substituiu o “bispo de Sées” pela perífrase
“um prelado da igreja cujo nome calarei por reverência para com o seu estado”.
O tal bispo era um felizardo chamado Jacques de Silly, que faleceu em 1539.
O prólogo da “Segunda Jornada” começa
por anotar:
“Levantaram-se na manhã seguinte, com
grande desejo de tornarem ao sítio onde, no dia precedente, tanto prazer haviam
colhido, pois cada um tinha o seu conto tão bem preparado que lhe tardava não o
dar a lume. Depois de terem ouvido a leitura de dona Oisille, bem como a missa,
em que todos recomendaram a Deus no seu espírito”, tal, tal, tal...
Agora, a novela inicial tem uma
pequena mas interessante nota de abertura:
“Estando a senhora de Roncex nos
franciscanos de Touhars, tanta pressa teve de satisfazer as suas necessidades
que, sem reparar que o buraco da sentina não estava limpo, se sentou em lugar
tão sujo que que suas nalgas e vestes ficaram imundas, de tal sorte que, ao
chamar por socorro e tentar encontrar uma aia que a limpasse, foram os homens
que a serviram, os quais a viram nua e no pior estado em que uma mulher se pode
achar.”
Adiante, que o enredo pode seguir
sabe-se lá para onde.
À tarde
COM grande paciência, o Presidente Volodymyr Zelensky, continua na lista de espera para uma canonização 'ante mortem', conseguindo finalmente ser recebido nos EUA com as mais altas honras nacionais, incluindo um discurso ao Congresso e uma conferência de imprensa na Casa Branca ao lado do seu homólogo Joe Biden, cujo único filho vivo, o lobista internacional Robert Hunter Biden, é sócio da Rosemont Seneca Partners que tem há anos na Ucrânia um dos seus principais negócios.
Já não era sem tempo, de facto, esta
cerimónia, visto ter sido em dezembro de 2021 que o virtuoso Presidente
ucraniano, um comediante descendente de judeus russos, concedeu o título de
“Herói da Ucrânia” a Dmytro Kotsyubaylo, líder do grupo Pravy Sketor (Setor
Direito), uma das milícias neonazis mais ferozes e bem conhecidas, precisamente
aquela que queimou vivos 2014, em Odessa, 42 sindicalistas que estavam numa
reunião de trabalho na Casa dos Sindicatos.
Zelensky afirmou no Parlamento de
Kiev, na imagem, que o supremo título era dado ao tal Dmytro “pela coragem
pessoal demonstrada na defesa da soberania do Estado e da integridade
territorial da Ucrânia”.
Infelizmente, nem a nossa inefável
Ana Gomes nem o nosso mal-amanhado ministro Cravinho foram atempadamente
informados das solenidades norte-americanas para poderem dar um saltinho a
Washington e também baterem palmas na justíssima palhaçada que faz do talentoso
Volodymyr Zelensky o cego mais mortífero da premonitória pintura de Pieter
Bruegel o Velho.
À noite
PASSÁMOS ontem pelo mais curto dia do
ano, mas com intermináveis restos de intempérie ainda amontoados em quase todo
o país e, depois de amanhã, vamos atirar-nos à mais católica das comezainas, a
Consoada, que, apesar da sua alegada santidade, impôs a morte a muitos milhares
de aves, caprinos e cefalópodes.
Quanto a amanhã, ainda é tempo de
tentar reparar o que foi estragado pelas chuvadas e pelos ventos deste fim da
primavera, assim como de ir à procura das prendas que falta comprar.
No que especialmente respeita ao dia
de amanhã, a jornada é sobretudo de preparativos muito desigualmente
repartidos, porque há quem passe horas e horas na cozinha, em frenesim
culinário, e quem tenha de sair de casa para ir às compras de última hora.
Claro que também há outros deveres e labores, mas cada um fala do que conhece e
a mais não é obrigado.
É certo que as previsões
meteorológicas só prometem mais chuva para domingo, mas eu tenho muita
esperança em que o S. Pedro já tenha as suas reservas de água muito perto do
esgotamento.
Heil, herr Volodymyr!
2022 12 22
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