quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Heil, herr Zelensky

*  Carlos Coutinho

TENHO há 46 anos os três volumes do “Heptameron”, de Margarida de Navarra, numa muito cuidada edição da Estampa de 1976. Por incrível que pareça, apenas hoje me deu para começar a ler esta obra inqualificável, apesar de ser de um famoso par a presente tradução – Luíza Neto Jorge e Manuel João Gomes. Ela também poetisa e ele também crítico de teatro.

A razão por que só agora tive coragem de entrar nestas páginas prende-se com o facto de eu, em tempos, muito haver convivido com ambos e com Herberto Hélder, ao fim da tarde, no café lisboeta “A Brasileira”, quando este ainda não tinha à porta a estátua de Pessoa sentado, embora, em frente já estivesse, também em bronze e também sentado, o poeta Chiado.

Por motivos que não vêm para o caso, não vou contar a história desta intocabilidade, embora eu já tenha aqui falado de uma poetisa muito suave chamada Helena Perfeito que também partilhava a nossa mesa e um dia resolveu suicidar-se.

Foi um golpe terrível em nós os três e, em mim, o único hoje sobrevivo, nunca cicatrizou completamente.

Mas, voltando à Margarida de Navarra, sabe-se que nasceu de uma união desvairada do espanhol Carlos V com Margarida de Gest, tendo entrado para a família dos Médici, em Florença, onde viveu muitas das suas graças e desgraças e aprendeu o que mais tarde pôs em verso:

"Tão graciosa doença

Não leva ninguém à morte,

Mas faz bem dizer que sim,

Pra se lograr certo consolo.

Há quem se queixe e atormente

Sem ser o mais atingido,

Mas se o mal de amores for grava

Mais vale tê-lo um, que dois."

O “Heptameron” é uma narrativa que se organiza em dois prólogos e duas jornadas, cada uma com dez curtas novelas. Na primeira faz-se “uma recolha das partidas que as mulheres pregaram aos homens e os homens às mulheres” e na segunda “discorre-se sobre aqueles que se deixam cair nas esparrelas de quem quer que seja”.

A “Primeira Novela”, à semelhança de “As Mil e Uma Noites”, começa assim:

“Senhoras minhas, tão má recompensa recebi pelos muitos serviços que prestei que, para me vingar do amor e daquela que tão crua foi comigo, me vou dar ao trabalho de fazer uma recolha das partidas que as mulheres pregaram aos pobres dos homens, e nada direi que não seja pura verdade: Na cidade de Alençon, em vida do duque Carlos, o último deles, havia um procurador chamado Saint-Aignan que desposara uma formosa jovem da região, mais bela que virtuosa, a qual, por sua beleza e leviandade, começou a ser perseguida pelo bispo de Sées…”

Ora, aconteceu que o tal Carlos, duque de Alençon, foi nem mais nem menos que o primeiro marido da escritora e ela, nas edições de 1558 e de 1559, substituiu o “bispo de Sées” pela perífrase “um prelado da igreja cujo nome calarei por reverência para com o seu estado”. O tal bispo era um felizardo chamado Jacques de Silly, que faleceu em 1539.

O prólogo da “Segunda Jornada” começa por anotar:

Levantaram-se na manhã seguinte, com grande desejo de tornarem ao sítio onde, no dia precedente, tanto prazer haviam colhido, pois cada um tinha o seu conto tão bem preparado que lhe tardava não o dar a lume. Depois de terem ouvido a leitura de dona Oisille, bem como a missa, em que todos recomendaram a Deus no seu espírito”, tal, tal, tal...

Agora, a novela inicial tem uma pequena mas interessante nota de abertura:

Estando a senhora de Roncex nos franciscanos de Touhars, tanta pressa teve de satisfazer as suas necessidades que, sem reparar que o buraco da sentina não estava limpo, se sentou em lugar tão sujo que que suas nalgas e vestes ficaram imundas, de tal sorte que, ao chamar por socorro e tentar encontrar uma aia que a limpasse, foram os homens que a serviram, os quais a viram nua e no pior estado em que uma mulher se pode achar.

Adiante, que o enredo pode seguir sabe-se lá para onde.

À tarde

COM grande paciência, o Presidente Volodymyr Zelensky, continua na lista de espera para uma canonização 'ante mortem', conseguindo finalmente ser recebido nos EUA com as mais altas honras nacionais, incluindo um discurso ao Congresso e uma conferência de imprensa na Casa Branca ao lado do seu homólogo Joe Biden, cujo único filho vivo, o lobista internacional Robert Hunter Biden, é sócio da Rosemont Seneca Partners que tem há anos na Ucrânia um dos seus principais negócios.

Já não era sem tempo, de facto, esta cerimónia, visto ter sido em dezembro de 2021 que o virtuoso Presidente ucraniano, um comediante descendente de judeus russos, concedeu o título de “Herói da Ucrânia” a Dmytro Kotsyubaylo, líder do grupo Pravy Sketor (Setor Direito), uma das milícias neonazis mais ferozes e bem conhecidas, precisamente aquela que queimou vivos 2014, em Odessa, 42 sindicalistas que estavam numa reunião de trabalho na Casa dos Sindicatos.

Zelensky afirmou no Parlamento de Kiev, na imagem, que o supremo título era dado ao tal Dmytro “pela coragem pessoal demonstrada na defesa da soberania do Estado e da integridade territorial da Ucrânia”.

Infelizmente, nem a nossa inefável Ana Gomes nem o nosso mal-amanhado ministro Cravinho foram atempadamente informados das solenidades norte-americanas para poderem dar um saltinho a Washington e também baterem palmas na justíssima palhaçada que faz do talentoso Volodymyr Zelensky o cego mais mortífero da premonitória pintura de Pieter Bruegel o Velho.

À noite

PASSÁMOS ontem pelo mais curto dia do ano, mas com intermináveis restos de intempérie ainda amontoados em quase todo o país e, depois de amanhã, vamos atirar-nos à mais católica das comezainas, a Consoada, que, apesar da sua alegada santidade, impôs a morte a muitos milhares de aves, caprinos e cefalópodes.

Quanto a amanhã, ainda é tempo de tentar reparar o que foi estragado pelas chuvadas e pelos ventos deste fim da primavera, assim como de ir à procura das prendas que falta comprar.

No que especialmente respeita ao dia de amanhã, a jornada é sobretudo de preparativos muito desigualmente repartidos, porque há quem passe horas e horas na cozinha, em frenesim culinário, e quem tenha de sair de casa para ir às compras de última hora. Claro que também há outros deveres e labores, mas cada um fala do que conhece e a mais não é obrigado.

É certo que as previsões meteorológicas só prometem mais chuva para domingo, mas eu tenho muita esperança em que o S. Pedro já tenha as suas reservas de água muito perto do esgotamento.

Heil, herr Volodymyr!


2022 12 22


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