03.06.22
Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região.
Professora Emérita de História Contemporânea da Universidade Paris VII-Denis Diderot, Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região.
Nos meios de comunicação social, fica-se com a impressão de
que a guerra na Ucrânia aconteceu a partir do nada. O que nos pode dizer sobre
o contexto histórico desta guerra?
Em primeiro lugar, os elementos históricos estão praticamente
ausentes daquilo que nos é frequentemente descrito como uma "análise"
da situação. No entanto, há dois aspetos importantes a ter em conta nos
acontecimentos atuais. Em primeiro lugar, existe uma situação geral, ou seja,
uma agressão da NATO contra a Rússia. Depois, há uma espécie de obsessão contra
a Rússia – e até contra a China. Esta obsessão não é nova e, portanto, permite
relativizar o atual frenesim anti-Putin. A essência da alegada "análise
ocidental" assenta na ideia de que Putin é um lunático paranóico e/ou um
novo Hitler. Mas o ódio contra a Rússia, assim como o facto de não se suportar
que esta possa ter um papel mundial, são tão velhos quanto o imperialismo americano.
Como é que explica esta obsessão?
É uma obsessão característica de um imperialismo dominante
que foi hegemónico durante, praticamente, todo o século XX. Este imperialismo
não quer perder a sua hegemonia, ainda que, na realidade, a esteja a perder. Com
efeito, hoje já não estamos na mesma situação em que estávamos na década de
1950, quando os Estados Unidos representavam 50% da produção mundial. A China
está a aproximar-se do primeiro lugar, no mundo, e isso não agrada aos Estados
Unidos. Nos últimos anos, atingimos um momento particularmente agudo neste
confronto, marcado por uma série de ataques surpreendentes.
Neste confronto, a Rússia também é um alvo. Temos a impressão
de que haveria uma espécie de rancor contra os bolcheviques, mas é preciso saber
que esta Russofobia do imperialismo americano remonta à era czarista, e
continuou depois, incluindo após a dissolução da União Soviética. Os
compromissos assumidos pelos Estados Unidos de não avançar militarmente na zona
ex-soviética foram, desde então, todos violados. De 1991 a fevereiro de 2022, a
NATO estabeleceu-se nas fronteiras da Rússia e a nuclearização da Ucrânia
tornou-se numa realidade imediata.
Qual é o lugar da Ucrânia nos conflitos entre potências
imperialistas?
A Ucrânia é inseparável da história da Rússia, desde o início
da Idade Média. A Rússia, com toda a sua riqueza natural, é uma gruta de Ali
Baba e a Ucrânia foi a sua mais bela jóia: é uma fonte extraordinária de
carvão, de ferro e de tantos outros recursos minerais, e um formidável depósito
de trigo e de outros cereais - o que, aliás, atraiu a cobiça de muitos, desde
há muito tempo. Para nos mantermos no período imperialista (desde a década de
1880), podemos dizer que foi a Alemanha que, num primeiro momento, se
interessou pela Ucrânia. Antes da guerra de 1914, o Reich alemão tinha
decidido, a fim de controlar o Império Russo, garantir o controlo dos seus
"mercados" mais desenvolvidos: a Ucrânia e os Estados bálticos.
Durante o conflito, a Alemanha fez destes Estados e da Ucrânia um verdadeiro
reduto militar, a base do seu ataque ao Império Russo. Durante a Primeira
Guerra Mundial, se a Alemanha falhou na Frente Ocidental, logo em 1917, o mesmo
não se pode dizer da Frente Oriental, a qual foi dominada pela Alemanha até à
sua derrota. E, apesar de, desde janeiro de 1918, a recém-soviética Rússia
estar a sofrer uma agressão adicional de todas as outras potências
imperialistas (14 países invadiram a União Soviética, sem que tenha havido uma
declaração de guerra), Berlim conseguiu impor-lhe, em março de 1918, o Tratado
de Brest-Litovsk, confiscando-lhe a Ucrânia. A derrota da Alemanha no final da
Primeira Guerra Mundial não fez com que a Ucrânia fosse devolvida à União
Soviética, dada a guerra travada no seu solo pelos "Aliados", apoiada
por todos os elementos anti-bolcheviques, russos e ucranianos.
A Ucrânia conheceu, então, uma curta independência...
De 1918 a 1920, houve, de facto, um curto período de
"independência" folclórica, tendo como pano de fundo a agressão dos
exércitos brancos (pogromistas) de Denikin, e do pogromista Petlyura,
oficialmente "independentista" e aliado da Polónia (que pretendia,
para si, toda a Ucrânia ocidental). A Ucrânia continuou, então, a ser alvo do
Reich, o qual sucedeu ao império austríaco, depois "austro-húngaro"
dos Habsburgos (possidentes da Galicia oriental, a oeste da Ucrânia, depois de
dividida a Polónia[i]). Esta tutela germânica constituiu,
assim, desde o tempo dos Habsburgos, uma base preciosa para o enfraquecimento
da Rússia e do Eslavismo Ortodoxo, tendo-se baseado, sobretudo, no Uniatismo[ii], liderado pelo Vaticano.
Que papel tinha o Vaticano?
O Uniatismo Católico constituiu o apoio ideológico da
conquista germânica, tendo seduzido parte das populações do oeste da Ucrânia,
graças à sua aparência formal, muito próxima da Ortodoxia. Este instrumento da
conquista austríaca foi tomado em mãos pela Alemanha, na era imperialista: o
Vaticano, compreendendo que já não podia contar com o moribundo império
católico, submeteu-se, definitivamente, ao poderoso Reich protestante, no
início do século XX, incluindo na Ucrânia. No período entre-guerras, a Ucrânia
desempenhou, assim, um papel decisivo na aliança entre a Alemanha e o Vaticano,
a quem Berlim confiou a espionagem militar, realizada através dos clérigos
uniates. Podemos observar, deste modo, como foi organizada a tentativa de
conquistar a Ucrânia, consagrada, aliás, na Concordata do Reich de julho de
1933, assinada entre Berlim e o Vaticano. Um dos seus dois artigos secretos
estipulava que a Alemanha e o Vaticano seriam aliados na tomada de posse da
Ucrânia, que era um dos principais objetivos da guerra da Alemanha, tanto
durante a Primeira Guerra Mundial, como durante a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto a militarização, a ocupação e a exploração económica estariam sob a
alçada da Alemanha, a "recristianização" católica seria entregue ao
Vaticano.
Os Estados Unidos também estavam interessados…
A Ucrânia é, não apenas um elemento importante no quadro
mundial, como a porta de entrada para o Cáucaso, rico em petróleo. Os Estados
Unidos juntaram-se ao imperialismo alemão para penetrar na Rússia e, em especial,
na Ucrânia, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Em 1930, todos os
imperialismos sonhavam em devorar a rica Ucrânia. No meu livro Aux
origines du carcan européen [Sobre as Origens do Colete-de-Forças
Europeu], mostrei como Roman Dmovski, um político polaco de
extrema-direita, tinha analisado na perfeição, em 1930, "a questão
ucraniana". Roman Dmovski escreveu que todos os grandes imperialismos
queriam devorar a Ucrânia, sendo que, no topo, dois se atarefavam febrilmente
para o conseguir: o alemão e o americano. Este autor disse, também, que, se a
Ucrânia fosse arrancada da Rússia, tornar-se-ia num país puramente
"consumidor", obrigado a comprar os seus produtos industriais fora.
Ela nunca poderia suportar tal perda, acrescentou.
Isso não funcionou, pois a Ucrânia continuou no seio da União
Soviética. Ainda assim, havia, ou não, um nacionalismo ucraniano?
O nacionalismo ucraniano foi, primeiro, alemão e, depois,
americano (ou melhor, ambos), porque não tinha capacidade real de
independência: o Reich financiou-o antes de 1914, e nunca mais cessou de o
fazer. Na verdade, estas pessoas que diziam querer uma Ucrânia
"independente" (como Bandera e os seus seguidores) pertenciam ao
inatismo que, no período entre-guerras, e durante toda a Segunda Guerra Mundial,
se confunde com o nazismo.
É difícil não fazer a ligação com estes movimentos que hoje
encontramos: o batalhão Azov, Pravy Sektor, etc., são os herdeiros diretos que
se reivindicam do movimento autonomista ucraniano do período entre-guerras, que
viu a criação, em 1929, do movimento banderista. Denominado "Organização
dos Ucranianos Nacionalistas" (OUN), foi inteiramente financiado pelo
Reich de Weimar e, depois, por Hitler (depois de o "autonomismo" ter
sido subsidiado pelo Reich wilhelminiano).
Como é que este movimento se desenvolveu?
O movimento de Stepan Bandera, o agora "herói
nacional" oficial do Estado ucraniano, e ao qual o batalhão Azov e outros
grupos pró-nazis constantemente prestam homenagem, desenvolveu-se a partir de
1929, na Ucrânia polaca e na Ucrânia eslovaca. Não estava, contudo, presente na
Ucrânia soviética e ortodoxa. Os "banderistas", como as outras
correntes do "nacionalismo ucraniano", eram anti-judeus, anti-russos
e, também, violentamente anti-polacos. Atacavam de forma igualmente radical
ucranianos não-autonomistas e ucranianos que tinham permanecido próximos da
Rússia.
Estas bandas de auxiliares da polícia alemã, já em 1939, na
Polónia ocupada, e, depois, a partir de 22 de junho de 1941, na URSS ocupada,
formaram um autodenominado “exército de insurreição”, a UPA. Estes 150.000 a
200.000 criminosos de guerra massacraram, indiscriminadamente, centenas de
milhares dos seus "inimigos": judeus, ucranianos leais ao regime
soviético, russos e polacos, os quais odiavam indistintamente. Tomando, apenas,
o exemplo dos polacos, é importante referir que entre 70.000 e 100.000 civis
foram mortos pelas milícias banderistas, durante a guerra. O argumento de
propaganda popular de que o Estado polaco acolheu calorosamente os
"vizinhos" ucranianos, sentimentalmente tão perto, é, à luz desta
longa história criminosa (iniciada antes da guerra), grotesco.
Em 1944, quando a União Soviética recuperou o controlo de toda a Ucrânia,
incluindo Lvov (em julho), 120.000 destes criminosos de guerra fugiram para a
Alemanha. Os Estados Unidos usaram-nos, ao chegar, na primavera de 1945.
Um livro sobre o assunto, disponível online em inglês, Hitlers Shadow,
foi publicado por dois historiadores americanos. É ainda mais interessante é o
facto de os seus dois autores serem historiadores acreditados pelo Departamento
de Estado, com quem trabalham oficialmente sobre a história do extermínio dos
judeus: Richard Breitman e Norman J.W. Goda. Estes autores mostram como os
Estados Unidos, assim que chegaram à Alemanha, na primavera de 1945,
recuperaram todos os criminosos de guerra, alemães ou não. Alguns dos
banderistas permaneceram na Alemanha, nas zonas ocidentais, principalmente na
zona americana, sobretudo em Munique. Outros banderistas foram recebidos de
braços abertos nos Estados Unidos, através da CIA, em detrimento das leis de
imigração, enquanto outros permaneceram na Ucrânia Ocidental.
Este último grupo, com dezenas de milhares de homens, travou
uma guerra inexpidável contra a União Soviética: entre o verão de 1944 e o
início da década de 1950, assassinou 35.000 funcionários civis e militares, com
o apoio financeiro alemão e americano, o qual foi particularmente elevado em
1947-1948. Um excelente historiador germano-polaco, Grzegorz Rossolinski-Liebe,
demonstrou que o banderismo continua a ser, hoje, um terreno de reprodução
pró-nazi inextinguível: os inúmeros herdeiros de Bandera têm igual ódio por
polacos, russos, judeus e ucranianos que não são fascistas. Escusado será dizer
que este investigador tem tido grandes problemas de censura, desde a Revolução
Laranja de 2004, e, sobretudo, na era Maidan, especialmente desde que estudou
como, desde 1943, os banderistas fabricaram a lenda de "resistência aos
nazis", tal como a vermelhos e judeus. Uma lenda muito útil para que
aqueles grupos possam ser incluídos na lista de grupos
"democráticos", apoiados por Washington.
Quais foram as consequências desta colusão?
Entre os criminosos de guerra calorosamente acolhidos pelos
Estados Unidos, os intelectuais tiveram um acolhimento particular. Desde 1948,
foram recrutados em grande número por universidades americanas, sobretudo as da
Ivy League, incluindo Harvard e Columbia. Nos "Centros de Investigação
sobre a Rússia", que proliferam desde 1946-1947, aqueles intelectuais
participaram, juntamente com os seus prestigiados colegas americanos, numa
frenética guerra ideológica contra a Rússia. É neste contexto que é difundida a
lenda do "Holodomor", cujas aventuras pontuaram, desde então, as
etapas decisivas da conquista da Ucrânia. Esta "investigação" e este
"ensino", implantados há mais de 70 anos, e espalhados massivamente,
com a ajuda dos principais meios de comunicação social, ao longo de décadas na
Europa americana, literalmente "apodreceram" os conhecimentos
"ocidentais" sobre a história da Ucrânia (e, mais amplamente, sobre a
da URSS).
Os apoios políticos do Euromaidan, avatar destas inúmeras
revoluções coloridas dos últimos vinte anos, formaram a espinha dorsal de 2014,
fazendo uma aliança com oligarcas que, desde 1991, monopolizam toda a riqueza
da Ucrânia. Note-se que este tipo de saque não é exclusivo da Rússia de Putin,
sendo observado em quase todos os países da ex-União Soviética. Na Ucrânia, os
oligarcas confiaram nestes elementos herdeiros do banderismo. O Estado ucraniano
de Poroshenko e os seus sucessores, desde 2014, confiaram abertamente nestes
movimentos nazis que os Estados Unidos alimentaram, incansavelmente, desde
1944-1945.
Os Estados Unidos tinham como programa explícito, codificado
em junho de 1948, no âmbito da CIA, a liquidação, pura e simples, não só da
zona de influência soviética, mas o próprio Estado soviético. Foi sob a
administração democrata que foi posta em prática a política de repulsão ou de
"retrocesso", com o objetivo de esmagar o comunismo onde quer que
fosse que este se encontrasse instalado (e impedindo-o de se instalar em zonas
de influência americana). Como uma série de trabalhos históricos têm
demonstrado, incluindo o trabalho de investigadores americanos com uma forte
ligação ao aparelho de Estado, e muito antissoviéticos, este programa foi
definitivamente implementado pela CIA, desde o seu nascimento, em julho de
1947.
Podemos compreender a sua extensão graças ao texto de
fevereiro de 1952 de Armand Bérard, um diplomata francês, em Bona, a quem cito
em Aux origines du Carcan européen. Bérard profetizava que a
Rússia, tão enfraquecida pela guerra alemã travada contra ela, entre 1941 e
1945 (27 a 30 milhões de mortos, com a URSS da Europa devastada) capitularia
sob os golpes dos Estados Unidos e da Alemanha de Adenauer, oficialmente
perdoado pelos seus crimes e rearmado até aos dentes. Moscovo acabaria por
ceder toda a Europa Central e Oriental, que era a sua "zona de
influência" e que tinha sido alvo de "mudanças fundamentais, de natureza
democrática, que, desde 1940, ocorreram na Europa de Leste". Estas
são as palavras deste diplomata "ocidental". E a data de 1940
refere-se à então sovietização dos Estados bálticos e de uma parte da Roménia e
da Polónia, cada um destes países mais fascista do que o outro.
Foi, no entanto, necessário, esperar alguns anos.
Depois de 1945, este tipo de projeto exigia tempo, uma vez
que o governo soviético era menos antipático aos olhos do seu povo, assim como
dos povos vizinhos, do que a história de propaganda "ocidental" nos
quer fazer crer. Mas foi conduzido com uma notável continuidade e enormes meios
financeiros. Toda a população foi visada, ainda que tenha sido dada uma
especial atenção ao Estado e às elites intelectuais do país, as quais
cconstituíam uma questão prioritária, procurando-se separá-las do Estado
soviético. O esforço acelerou-se consideravelmente após a vitória dos EUA de
1989, e com uma maior eficiência, num momento em que a Rússia conhecia uma
década de decadência total. Recorde-se que, sob Ieltsin, as potências
estrangeiras, com os Estados Unidos em primeiro lugar, impuseram a sua lei, a
economia russa foi vendida por um nada e entrou em colapso, a população caiu
0,5% por ano (de forma especialmente dramática na Sibéria e no Extremo
Oriente), sendo que, em 1994, a esperança de vida da população russa diminui
drasticamente (de quase dez anos, para os homens).
Durante estes anos, o trabalho de formiga germano-americano,
que Breitman e Goda descreveram para os anos 1945-1990, obviamente que se
intensificaram. Certamente, a National Endowment for Democracy (NED),
querida a Victoria Nuland, a eminência das administrações Bush e, depois, de
todos os seus sucessores democratas, Biden incluído, acaba de apagar do seu
site os seus ficheiros de financiamento, até agora públicos (pelo menos, em
parte), da secessão da Ucrânia e da sua inserção no aparelho de agressão contra
a Rússia. Mas o site do Departamento de Estado não censurou as declarações, de
13 de dezembro de 2013, da Subsecretária de Estado Nuland, a senhora das boas
obras de Maidan, tão presente em Kiev em fevereiro de 2014, perante o
Congresso: Nuland orgulhosamente declarou que, desde a queda da URSS (1991), os
Estados Unidos tinham investido mais de 5 mil milhões de dólares para ajudar a
Ucrânia. Tratava-se, naturalmente, de assegurar o controlo definitivo da
agricultura e da indústria ucraniana, o objetivo final desta longa cruzada. Mas
também trazer este país para a NATO, da qual são membros quase todos os países
da antiga zona de influência soviética e várias das antigas repúblicas
soviéticas. Isto foi admitido há muitos anos. Isto foi, aliás, claramente
reafirmado pela “Carta de Parceria Estratégica EUA-Ucrânia”, assinada em 10 de
novembro de 2021 pelo Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba: o seu conteúdo
consta, aliás, da redação da "Resolução de 16 de dezembro de 2021 sobre a
situação na fronteira ucraniana e nos territórios da Ucrânia ocupados pela
Rússia", orgulhosamente exibida pelo Parlamento Europeu, em Estrasburgo.
A partir de então, tornava-se necessário colocar Moscovo a,
pelo menos, 5 minutos das bombas atómicas armazenadas, desde as origens do
Pacto Atlântico (por vezes, desde o início dos anos 50), nos países membros da
NATO. Bastava exacerbar a disputa da miséria infligida pela Ucrânia de Maidan
ao povo de Donbass, em flagrante violação dos acordos de Minsk. Sobre estas
misérias e sobre a violação dos acordos de que Paris e Berlim foram
"garantes", a propaganda ocidental manteve-se silenciosa de 2014 a
fevereiro de 2022.
A conjuntura histórica e os desenvolvimentos desde 1989, seriamente agravados
desde 2014, têm encurralado a Rússia. Todos os observadores razoáveis apontam
que a Rússia iniciou a guerra contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, uma
vez entrincheirada contra a sua vontade. Este passo faz lembrar o que a União
Soviética deu no final de 1939.
O que quer dizer com isso?
Este é um elemento essencial. No final de 1939, a União
Soviética tentou, com sinceridade, negociar com a Finlândia, apresentada pelos
arquivos históricos e militares como um aliado puro e simples da Alemanha Nazi.
Desde 1935, esta última havia instalado, na Finlândia, uma série de aeródromos
militares e de bases para atacar a URSS - que, na realidade, foram cedidas à
Alemanha, tendo sido, de facto, usadas, durante a guerra de agressão
alemã à URSS. Moscovo falou, em vão, durante semanas, com a Finlândia, anteriormente
parte do Império Russo, mas que em 1918-1919 se havia tornado num país-chave do
"cordão sanitário" anti-bolchevique. Os soviéticos pediram-lhe que
trocasse parte do seu território, para criar uma zona tampão de defesa sólida
em torno de Leningrado, por um território maior (soviético). As discussões
falharam, sob pressão da Alemanha e de todos os países "democráticos"
que, como um diplomata fascista italiano declarou na altura, sonhavam com uma
"Aliança Sagrada" geral contra os soviéticos.
A URSS invadiu a Finlândia em 30 de novembro de 1939. Teve,
então, de enfrentar uma propaganda do mesmo tipo daquela que, atualmente, é
difundida, assim como sanções (incluindo uma exclusão da Liga das Nações,
unanimemente acordada em 14 de dezembro). Tratava-se, no discurso em vigor, de
combater o monstro soviético e de proteger a pobre Finlândia, e o Vaticano do
pró-nazi Pio XII ficou tão incomodado como o atual papa com os "rios de
sangue" ucranianos. A "guerra de Inverno", num país-chave do
"cordão sanitário", no qual a população tinha sido
"preparada" incansavelmente contra o comunismo e a URSS, durante mais
de vinte anos, foi terrível.
Com dificuldade, o Exército Vermelho conseguiu derrotar a
Finlândia. Em 12 de março de 1940, o acordo alcançado deu a Helsínquia
exatamente o que Moscovo havia proposto em 1939 - o que, sem dúvida, permitiu
proteger Leningrado da invasão. É significativo que a atual campanha de
propaganda pregue o longo período de neutralidade que a Finlândia no pós-guerra
observou, isto, contudo, depois de a Finlândia pró-nazi, como se esperava, ter
feito a guerra ao lado da Alemanha.
Isto relembra, então, a situação atual da Ucrânia?
Sim, se nos cingirmos a factos históricos, e não nos
limitarmos a dizer que estamos perante um monstro louco. Leio, hoje, em
petições ou em jornais de referência, que Putin está a incendiar e a incitar um
derramamento de sangue numa Europa, até agora, calma e tranquila. Mas não
ouvimos estes intelectuais, recrutados maciçamente pela imprensa mainstream, e
revoltados contra o "novo Hitler", manifestarem-se contra as centenas
de milhares de mortes dos bombardeamentos americanos e europeus no Iraque, na
Líbia, no Afeganistão, na Síria. As mesmas pessoas que amaldiçoam Putin acharam
magníficos os 78 dias de bombardeamentos contra Belgrado e contra o "novo
Hitler", Milosevic. A comparação, refira-se, tem sido aplicada a todos os
"inimigos" que o Ocidente forjou, desde a nacionalização de Nasser do
Canal do Suez.
Também não me lembro de nenhuma importante indignação destes
novos anti-nazis por causa das 500.000 crianças que morreram no Iraque, por
falta de comida e de cuidados médicos, como consequência imediata do bloqueio
anglo-americano; crianças, aliás, cujo sacrifício "valeu a pena",
segundo as declarações recentes da ex-secretária de Estado democrata Madeleine
Albright. Porquê esta sistemática aplicação de dois pesos, duas medidas, também
usada no que concerne as populações martirizadas de Donbass (e que Putin é
acusado de ter instrumentalizado durante oito anos contra a tão simpática
Ucrânia)?
Esta guerra, por mais lamentável que seja, foi anunciada há
muito tempo, e as razoáveis vozes de militares, diplomatas,
académicos, a Oeste, que não têm acesso a nenhum órgão importante dito de
"informação", privado ou estatal, são categóricas sobre as
responsabilidades exclusivas, e de longa data, dos Estados Unidos, no
desencadear de um conflito que eles próprios tornaram inevitável.
Na sua opinião, como é que será o futuro?
Não me pronuncio sobre o futuro, pois os historiadores não
têm de desempenhar o papel de meteorologistas, especialmente tendo em conta a
informação execrável a que, atualmente, têm acesso. Mas posso afirmar que os
Estados Unidos são o poder imperialista cujas guerras de agressão acumularam,
desde o fim da Segunda Guerra Mundial, milhões de mortes. Recomendo, aliás, o
livro traduzido de William Blum, um antigo funcionário da CIA (estes são os
melhores analistas), que estabeleceu uma estrita cronologia dos crimes
cometidos pelos Estados Unidos contra uma série de Estados qualificados de
"bandidos".
A Rússia nem sempre foi considerada como tal pelo
"Ocidente", na época da "Grande Aliança" e do "Tio
Joe" (José Estaline). Até às últimas décadas de propaganda unilateral
"ocidental" sobre a libertação da Europa – segundo a qual, a
libertação teria ocorrido graças, unicamente, ao desembarque americano, em
junho de 1944 -, havia sido amplamente reconhecido que só o Exército Vermelho é
que tinha conseguido derrotar a Wehrmacht, e a que custo! De acordo com estimativas
recentes, os Estados Unidos têm a deplorar, durante a Segunda Guerra Mundial,
um total inferior a 300.000 mortes (todas, de militares), nas frentes do
Pacífico e da Europa. Nesta entrevista, há pouco, já havia referido o
monstruoso número de perdas soviéticas: 10 milhões de baixas militares e 17 a
20 milhões de vítimas civis.
Até agora, a Rússia, soviética ou não, não semeou ruínas em guerras externas.
Tem sido objeto de uma ininterrupta agressão das grandes potências
imperialistas, desde janeiro de 1918. Não digo isto porque sou uma seguidora de
Putin. Todos os documentos de arquivo apontam nesta direção, diplomatas
ocidentais e militares são os primeiros a sabê-lo e a admiti-lo, na sua
correspondência não destinada a publicação: ou seja, o tipo de documentação que
tenho vindo a estudar, há mais de cinquenta anos. Com o meu trabalho, e graças
a uma reflexão sobre a conjuntura atual, estou, apenas, a exercer a minha
profissão de historiadora..
1[NT] A Galicia foi uma província do Império Austríaco, formada
em 1772, a partir dos territórios polacos anexados durante a primeira divisão
da Polónia. Permaneceu austríaca até ao final da Primeira Guerra Mundial.
2[NT]
Uniatismo: conjunto de comunidades cristãs, de rito oriental, que reconhecem a
autoridade papal ou que se encontram ligadas à Igreja Católica.
Fonte:https://www.investigaction.net/fr/annie-lacroix-riz-il-y-a-un-contexte-historique-qui-explique-que-la-russie-etait-acculee/,
publicado e acedido em 28.03.22
Tradução: AMS
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