By Paulo Ribeiro da
Silva Posted in Antologia LITERATURA
Posted on 10/05/2022
Exterminem todas as bestas («Exterminate
all the brutes» no original) é uma citação do clássico Heart of
Darkness de Józef Teodor Konrad Korzeniowski, mais conhecido como
Joseph Conrad (1857-1924), base de Francis Ford Coppolla para o filme Apocalipse
Now (1979). Estas referências servem de espinha dorsal ao raciocínio
de Sven Lindqvist (1932-2019) neste livro onde traça uma
história das origens do imperialismo, do colonialismo e do racismo, assim como
as suas consequências, escolhendo como conclusão o brutal desenlace da II
Guerra Mundial.
“quando aquilo que fora feito no
coração das trevas se repetiu no coração da Europa, ninguém o reconheceu.
Ninguém quis admitir o que toda a gente sabia”, [isto é, que] “O imperialismo é
um processo biologicamente necessário que, de acordo com as leis da Natureza,
resulta na inevitável destruição das raças inferiores.” (267).
A formulação desta e outras pérolas de sabedoria veio de algumas das mais doutas personagens da ciência e da vida pública ao longo de séculos, subvertendo e inventando teorias “científicas” para validar conveniências, com o apoio expresso de vários Estados ditos evoluídos, como Portugal, Espanha, Bélgica, Estados Unidos da América, França, Inglaterra, Holanda e Alemanha (ironicamente o mais lembrado, apesar de ter sido o último a entrar nesta “corrida”).
O livro propõe-se reconstituir o percurso dessas falácias fatais, escolhendo
factos históricos documentados, protagonistas (como escritores, cientistas,
governantes) e as consequências das suas palavras, actos e omissões. É de morte
e luto que aqui falamos, da extinção planeada de vários povos pelo lucro
proveniente das terras que ocupavam e o poder que daí advinha durante mais de
meio milénio (perpetuado na actualidade por outras formas a que Lindqvist
também alude).
Ao contrário do que se passara aquando das Cruzadas, em que o Ocidente se
confrontou com povos melhor preparados (cultural, diplomática e
estrategicamente, mas também na área da saúde, com experiência de epidemias), a
expansão de séc. XV foi bem diferente. Nessa altura, “eram eles próprios
portadores dessas bactérias superiores. As pessoas morriam por onde os europeus
passassem.” (178)
O início da expansão europeia trouxe consigo a extinção do povo guanche que
habitava nas Canárias. Entre 1478 e 1453 passaram de oitenta mil a dois mil e
cem. Em 1541 havia apenas um guanche. O resultado da guerra foi decidido pelas
bactérias, a modorra como lhe chamavam. As terras foram roubadas pelos
colonizadores e os indígenas perderam a sua subsistência. A desinteria, a
pneumonia e as doenças venéreas fizeram o resto. Porquê este exemplo tão
específico?
“Este grupo de ilhas no Atlântico
foi o infantário do imperialismo europeu. Os principiantes aprenderam aí que as
pessoas, as plantas e os animais europeus se dão muito bem até mesmo em zonas
onde não existiam por natureza. Aprenderam também que, embora os habitantes
indígenas possam ser superiores em número e resistir até às últimas, são
vencidos, sim, exterminados – sem ninguém saber realmente como aconteceu.”
(177)
A expansão americana, iniciada por Colombo em 1492 foi ainda mais desastrosa. À época, a população europeia e a americana tinham dimensão equivalente (aproximadamente setenta milhões), mas nos trezentos anos seguintes, a população europeia aumentou até 500% e a americana reduziu até 95%. Novamente, a causa de morte maioritária foi a doença (assim como a fome e as condições de trabalho desumanas), mas “a causa subjacente era a seguinte: os índios eram demasiado numerosos para terem qualquer valor económico no quadro da sociedade dos conquistadores.” (179)
A diferente valoração das vidas humanas, de acordo com a cor da pele e a
origem, foi o motor deste avanço imparável e demasiado lucrativo para ser
abandonado, suportado pelo sistema financeiro mundial, que desenhou a
distribuição de riqueza pelo mundo tal como a conhecemos hoje. Lindqvist
exemplifica:
“Quando Darwin publicou A
Origem do Homem em 1871, a caça aos índios na Argentina ainda
prosseguia, financiada por um empréstimo obrigacionista. Depois de expulsarem
os índios da sua terra, esta era partilhada entre os detentores das obrigações,
dando cada obrigação direito a dois mil e quinhentos hectares.”
Hoje os activos e as oportunidades diversificaram-se, a narrativa tornou-se mais sofisticada, mas a fome de poder e influência mantém-se insaciável, com efeitos facilmente comprovados a cada novo ciclo noticioso. Onde antes o território detido por cada nação era o factor identificador de supremacia, hoje o poder económico e financeiro (e bélico) é o barómetro.
Nada melhor do que as eloquentes e urgentes palavras do autor para a conclusão
deste e do seu texto:
“Em todos os lugares do mundo em
que o conhecimento é reprimido (…) O Coração das Trevas está a ser posto em
cena./Já sabe quanto baste. Eu também. Não é de informação que carecemos. O que
nos falta é coragem para compreender o que sabemos e tirar conclusões.”
Um livro essencial, uma das
inspirações para o excelente documentário homónimo de Raoul Peck que encontram
na HBO.
https://www.intro.pt/exterminem-todas-as-bestas-sven-lindqvist-caminho-2022/
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«Exterminem todas as bestas» é uma frase do conhecido romance O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Por que razão a põe Conrad na boca do sinistro Kurtz? Que realidade reflete ela? Na época em que Conrad escrevia, todo o ambiente ideológico e toda uma abundante literatura justificam o colonialismo e o racismo em nome do «progresso» e da «civilização».Uma triste lei ditaria que os povos inferiores morriam ao entrar em contacto com os povos de cultura superior; se não morriam rapidamente, era um ato de caridade encurtar o seu sofrimento. O holocausto nazi foi único – na Europa.Mas, afirma Sven Lindqvist, Auschwitz foi a aplicação industrial moderna de uma política de extermínio sobre a qual há muito assentava o domínio europeu na América, Austrália, África e Ásia.Ao longo de 168 capítulos deste livro fascinante – misto original de livro de viagens, relato autobiográfico e história das ideias – Sven Lindqvist penetra cada vez mais profundamente no continente africano e ao mesmo tempo revela uma espécie de geografia cultural «oculta», a teoria e a prática da expansão imperialista.
https://www.amazon.es/Exterminem-Todas-as-Bestas-Portuguese-ebook/dp/B09R6N2TPS
Este livro é uma história, não
um contributo para a investigação histórica. É a história de um homem que
percorre de autocarro o deserto do Sara e, ao mesmo tempo, percorre no seu
computador a história do conceito de extermínio. Em pequenos hotéis no deserto,
varridos pela areia, o seu estudo concentra-se numa frase de O Coração
das Trevas de Joseph Conrad: «Exterminem todas as bestas.»
Por que razão concluiu Kurtz o
seu relatório sobre a tarefa civilizadora do homem branco em África com estas
palavras? Que significado tinham elas para Conrad e os seus contemporâneos? O
que levou Conrad a destacá-las como um resumo da retórica bombástica sobre as
responsabilidades da Europa para com os povos de outros continentes?
Eu julgava saber as respostas
para estas perguntas quando, em 1949, com a idade de 17 anos, li pela primeira
vez O Coração das Trevas. Por detrás das «sombras negras da
doença e da fome» no bosque da morte vi mentalmente os sobreviventes
esqueléticos dos campos de morte alemães, que tinham sido libertados somente
alguns anos antes. Li Conrad como um autor profético que previra todos os
horrores vindouros.
A leitura de Hannah Arendt era
mais penetrante. Ela constatou que Conrad estava de facto a escrever sobre os
genocídios do seu tempo. No seu primeiro livro, O Sistema
Totalitário (1951), Arendt demonstrou como o imperialismo requeria o
racismo como a única desculpa possível para os seus atos. «À vista de toda a
gente encontravam-se muitos dos elementos que, reunidos, possibilitavam a
criação de um governo totalitário com base no racismo.»
A tese de Arendt de que o
nazismo e o comunismo têm origens comuns é bem conhecida. Contudo, muita gente
se esquece de que ela considerou também os «terríveis massacres» e os
«assassínios selváticos» perpetrados pelos imperialistas europeus responsáveis
pela «introdução triunfante de tais meios de pacificação em políticas
estrangeiras comuns e respeitáveis», dando assim origem ao totalitarismo e aos
seus genocídios.
No primeiro volume de The
Holocaust in Historical Context [O Holocausto em Contexto Histórico]
(1994), Steven T. Katz iniciou uma demonstração do caráter fenomenologicamente
único do Holocausto. Em algumas das setecentas páginas do seu livro refere-se
com desprezo aos que salientam as similaridades. No entanto, por vezes é mais
tolerante e declara: «A sua abordagem poderia considerar-se, não
pejorativamente, um paradigma de similaridade; a minha, pelo contrário, é um
paradigma de distinção.»
As duas abordagens parecem-me
igualmente válidas e complementares. O meu viajante no deserto, empregando um
paradigma de similaridade, descobre que a destruição das «raças inferiores» de
quatro continentes por parte da Europa preparou o terreno para a destruição de
seis milhões de judeus na Europa por Hitler.
Cada um destes genocídios
teve, evidentemente, as suas caraterísticas próprias e únicas. No entanto, não
é obrigatório que dois acontecimentos sejam idênticos para que um deles crie as
condições para a ocorrência do outro. A expansão mundial da Europa, acompanhada
como foi por uma defesa impudica do extermínio, criou hábitos de pensamento e
precedentes políticos que abriram o caminho para novos atos terríveis,
culminando por fim no mais horrendo de todos: o Holocausto.
Primeira parte — Rumo a In
Salah
1
Você já sabe quanto baste. Eu
também. Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para
compreender o que sabemos e tirarmos conclusões.
2
Tademait, «deserto dos desertos»,
é a zona mais morta do Sara. Nenhum sinal de vegetação. A vida quase extinta. O
solo coberto por aquele verniz negro e brilhante com que o calor bruniu a
pedra.
A viagem no autocarro da noite, o
único que faz a ligação entre El Goléa e In Salah, demora sete horas na melhor
das hipóteses. Luta-se por um lugar no autocarro contra cerca de uma dúzia de
soldados com botas militares grosseiras, que aprenderam a arte bélica de fazer
fila na escola de combates corpo-a-corpo do exército argelino em
Sidi-bel-Abbès. Quem traga debaixo do braço o cerne do saber europeu acondicionado
num computador antiquado encontra-se obviamente em desvantagem.
Antes de virarmos para Timmimoun,
através de um buraco na parede servem-nos uma sopa quente de batata e pão.
Depois, a estrada de asfalto estriado acaba e o autocarro continua viagem pelo
deserto.
É um puro «rodeo». O autocarro
comporta-se como um jovem cavalo selvagem. Com as janelas a abanarem e as molas
a chiarem, sacode-se, bate com o pé e salta para a frente; e cada sacudidela é
transmitida ao disco duro do computador que levo no regaço, assim como à pilha
de peças encaixadas que são os discos da minha coluna vertebral. Quando já não
é possível continuar sentado, seguro-me às grades da bagageira ou
agacho-me.
Era isto que eu receava. Era por
isto que eu ansiava. Sob a Lua, a noite é um espetáculo fantástico. Hora após
hora, o deserto branco escorre perante os meus olhos: pedra e areia, pedra e
cascalho, cascalho e areia – com o brilho da neve. Hora após hora. Nada
acontece, até que se acende subitamente um sinal no escuro e um passageiro
manda parar o autocarro, sai e começa a caminhar, embrenhando-se no
deserto.
O som dos seus passos desaparece
na areia. Ele próprio desaparece. Também nós desaparecemos na escuridão branca.
3
O cerne do pensamento europeu?
Sim, há uma frase, uma frase curta e simples, somente algumas palavras, que
resume a história do nosso continente, da nossa humanidade, da nossa biosfera,
do Holocénico1 ao Holocausto.
Nada diz sobre a Europa como
local de origem do humanismo, democracia e solidariedade social na Terra. Nada
diz sobre tudo aquilo de que nos orgulhamos com razão. Simplesmente conta a
verdade que preferimos esquecer.
Estudo essa frase há vários anos.
Reuni uma grande quantidade de material que não tive ainda tempo para analisar.
Gostaria de desaparecer neste deserto, onde não estou ao alcance de ninguém,
onde tenho todo o tempo do mundo, desaparecer e não regressar até ter
compreendido aquilo que já sei.
4
Saio do autocarro em In
Salah.
A Lua já não brilha. O autocarro
leva consigo a luz e desaparece. A escuridão à minha volta é cerrada. Foi nos
arredores de In Salah que o explorador escocês Alexander Gordon Laing foi
atacado e assaltado. Sofreu cinco golpes de sabre na coroa da cabeça e três na
têmpora esquerda. Um dos golpes, na face esquerda, fraturou-lhe o maxilar
e cortou-lhe a orelha. Uma ferida terrível no pescoço afetou-lhe a traqueia,
uma bala na anca atingiu de raspão a coluna vertebral, cinco golpes de sabre no
braço e na mão direitos, três dedos partidos, os ossos dos pulsos trespassados,
e assim por diante.2
Algures, lá ao longe, na
escuridão, vislumbro uma fogueira. Arrasto-me com o computador pesado e a mala
ainda mais pesada na direção da luz.
Bancos de areia vermelha
impelidos pelo vento atravessam a estrada e os grãos de areia acumulam-se em
camadas na encosta. Dou dez passos, mais dez. A luz não parece mais
próxima.
Laing foi atacado em janeiro de
1825. Mas o medo é intemporal. No século XVII, Thomas Hobbes sentia tanto
receio da solidão, da noite e da morte como eu neste momento. «Alguns homens
são tão cruéis por natureza», disse ao seu amigo Aubrey, «que o seu deleite em
matar homens é maior do que o que deveria sentir-se ao matar uma ave»3.
A fogueira parece continuar à
mesma distância. E se deixasse ficar o computador e a mala para poder avançar
mais facilmente? Não, sento-me na poeira à espera do amanhecer.
Cá em baixo, junto ao solo, uma
brisa traz subitamente a fragrância de madeira queimada.
Será que os odores do deserto
parecem tão fortes por serem tão raros? Será que as achas da fogueira do
deserto são mais concentradas e por isso ardem mais aromaticamente? O que
é certo é que o lume, que parece tão distante à vista, chega-me de súbito ao
nariz.
Levanto-me e avanço a
custo.
Quando por fim chego junto dos
homens acocorados à volta da fogueira, tenho uma enorme sensação de vitória.
Cumprimento-os. Interrogo-os. E sou informado de que tomei uma direção
completamente errada. A única coisa a fazer, dizem-me, é voltar para
trás.
Sigo o meu trilho de regresso ao
lugar onde saí do autocarro. Depois, dirijo-me para sul na mesma
escuridão.
5
«O medo permanece», diz Conrad.
«Um homem pode destruir tudo dentro de si, amor e ódio e crença, e até mesmo a
dúvida, mas, enquanto se agarrar à vida, não pode destruir o medo»4.
Hobbes teria concordado. A uma
distância de séculos, dão um aperto de mão.
Por que é que eu viajo tanto, se
tenho tanto medo de viajar?
Talvez no medo procuremos uma
perceção mais intensa da vida, uma forma mais potente da existência. Receio,
logo existo. Quanto mais receio, tanto mais existo?
6
Existe apenas um hotel em In
Salah, o Tidikelt Hotel, propriedade estatal, grande e caro; e, quando por fim
dou com ele, a única vaga é um quarto pequeno, escuro e gélido no qual os
aquecedores há muito deixaram de funcionar.
Tudo é como habitualmente no
Sara: o cheiro de desinfetante forte, o rangido das dobradiças mal oleadas da
porta, a persiana meio partida. Reconheço tão bem a mesa instável, com uma das
pernas demasiado curta, e a película de areia no tampo da mesa, na almofada e
no lavatório. Reconheço a torneira que começa a pingar lentamente quando se
abre e desiste com um suspiro depois de se encher meio copo de água. Reconheço
a cama, feita com uma firmeza tão militar que os pés não cabem nela, pelo menos
não a um ângulo normal em relação às pernas, e com metade das roupas tão bem ancoradas
debaixo do colchão que o cobertor apenas chega ao umbigo, tudo isto para
preservar a virgindade dos lençóis.
Está bem, talvez viajar seja uma
necessidade. Mas porquê exatamente para este lugar?
7
O som de pancadas pesadas de um
taco desferidas sobre a laringe. Um som crepitante como cascas de ovo e depois
um gargarejo quando tentam desesperadamente inspirar.
Já quase de manhã acordo por fim,
ainda com as roupas vestidas. A cama está vermelha, da areia que trouxe
comigo do autocarro. Cada pancada esmaga ainda uma laringe. A última
esmagará a minha.
8
O hotel está incrustado em areia
acumulada, isolado junto a uma estrada deserta que atravessa uma planície
deserta. Avanço a custo pela areia funda. O sol martela tudo sem misericórdia.
A luz cega tanto como a escuridão. O ar contra o meu rosto é como gelo fino a
rachar-se.
Demoro meia hora a chegar aos
Correios, que ficam a igual distância do banco e do mercado. A cidade velha é
um amontoado de casas, inacessível ao sol e às tempestades de areia, mas a
cidade nova estende-se no espaço, num planeamento urbano moderno que faz todos
os possíveis por acentuar a desolação do Sara.
As fachadas de barro castanho
avermelhado do centro da cidade são avivadas por pilares e portais brancos,
pináculos e remates brancos. A este estilo chamam sudanês, negro, de «Bled
es sudan», o país dos negros. De facto, trata-se de um estilo
imaginário, criado pelos franceses para a Grande Exposição de Paris de 1900 e transplantado
em seguida para o Sara. A cidade moderna é de betão armado cinzento ao estilo
internacional.
O vento sopra do leste.
Fustiga-me o rosto quando regresso ao hotel, onde predominam estrangeiros e
camionistas de longo curso, todos em viagem «para cima» ou «para baixo», como
se estivessem numa escadaria. Todos fazem perguntas uns aos outros sobre a
estrada, gasolina, equipamento, todos eles preocupados com a ideia de
prosseguirem viagem tão rapidamente quanto possível.
Colo o mapa na parede e calculo
as distâncias. São 273 quilómetros até ao oásis mais próximo a oeste, Reggane.
São 386 quilómetros de estrada do deserto até ao oásis mais próximo a norte, El
Goléa, de onde acabo de chegar. São 402 quilómetros em linha reta até ao oásis
mais próximo a leste, Bordj Ornar Driss. São 644 quilómetros até ao oásis mais
próximo a sul, Tamanrasset. São 966 quilómetros em linha reta até ao mar mais
próximo, o Mediterrâneo, e 1287 quilómetros em linha reta até ao rio mais
próximo, o Níger. São 1450 quilómetros até ao mar a oeste. Para leste, o mar
fica tão longe que não vale a pena calcular distâncias.
De cada vez que vejo as
distâncias que me rodeiam, de cada vez que me compenetro de que aqui, no ponto
zero do deserto, é onde eu estou, uma guinada de prazer trespassa-me o corpo. É
por isso que eu fico.
9
Se pelo menos conseguisse pôr o
computador a funcionar! A questão é saber se sobreviveu aos solavancos e à
poeira. As disquetes não são maiores do que postais ilustrados. Tenho uma
centena, em caixas hermeticamente fechadas, uma biblioteca completa que ao todo
não pesa mais do que um só livro.
Sempre que queira, posso ir a
qualquer ponto da História, desde o dealbar da paleontologia, quando Thomas
Jefferson achava ainda inconcebível que uma só espécie pudesse desaparecer da
economia da Natureza, até ao conhecimento atual de que 99,9% de todas as
espécies se extinguiram, a maioria num punhado de extermínios de massa que se
abeiraram da destruição de toda a vida.5
A disquete pesa cinco gramas.
Insiro-a na ranhura e ligo o computador. O ecrã ilumina-se e a frase que
investigo há tanto tempo brilha perante os meus olhos na escuridão do
quarto.
A palavra Europa deriva de uma
palavra semítica que significa apenas «escuridão»6. A frase que
brilha no ecrã é verdadeiramente europeia. O pensamento desenvolveu-se ao longo
de muito tempo antes de ser posto em palavras na viragem do século (1898-1899)
por um escritor polaco que pensava em francês mas escrevia em inglês: Joseph
Conrad.
Kurtz, o protagonista de O
Coração das Trevas de Conrad, remata o seu ensaio sobre a tarefa
civilizadora do homem branco entre os selvagens de África com uma frase que
resume o verdadeiro conteúdo da sua prosa retórica.
É esta frase no ecrã que desfecha
os seus raios sobre mim: «Exterminem todas as bestas.»
10
O latim extermino significa
«conduzir para fora», terminus, «exilar, banir, excluir». Daí
deriva o português exterminar, que significa «conduzir para fora, para a morte,
banir da vida».
O sueco não tem um equivalente
direto. Os suecos têm de dizer utrota, embora se trate na
verdade de uma palavra bastante diferente, «arrancar pela raiz», que em
português é extirpar, do latim stirps, «raiz,
tribo, família».
Tanto em português como em sueco
o objeto da ação raramente é um indivíduo, sendo antes grupos inteiros, como
por exemplo escalracho, ratazanas ou pessoas. Os seres brutos, evidentemente,
reduzem o objeto ao seu mero estatuto animal.
Os africanos têm sido apelidados
de animais desde os primeiros contactos com os europeus, quando estes os
descreveram como «rudes e bestiais», «semelhantes a bestas brutas» e «mais
brutos do que as bestas que caçam»7.
11
Há alguns anos, julguei ter
encontrado a fonte da frase de Conrad na obra do grande filósofo liberal
Herbert Spencer. Em Social Statics [Estática Social]
(1850), Spencer escreve que o imperialismo se pôs ao serviço da
civilização ao limpar as raças inferiores da face da terra. «As forças que
acionam o grande esquema da felicidade perfeita, sem tomarem em consideração o
sofrimento incidental, exterminam qualquer parcela da humanidade que se
atravesse no seu caminho... Seja ser humano ou seja besta – o obstáculo tem de
ser afastado»8.
Aqui se encontravam em simultâneo
a retórica civilizadora de Kurtz e as palavras-chave exterminar e besta, e
o ser humano era expressamente posto em pé de igualdade com o animal como
objeto de extermínio.
Julguei ter feito uma pequena mas
interessante descoberta académica, que mereceria figurar um dia como nota de
rodapé na História da Literatura, a frase de Kurtz «explicada» pelas fantasias
de aniquilação de Spencer. Estas, por sua vez, pensava eu, eram uma
excentricidade pessoal, talvez explicável pelo facto de todos os irmãos de
Spencer terem morrido quando ele era ainda criança. Uma conclusão calma e
reconfortante.
12
Não tardei a descobrir que a
interpretação de Spencer não era de forma nenhuma singular. Era comum, e
durante a segunda metade do século XIX tornou-se ainda mais comum, a tal ponto
que o filósofo alemão Eduard von Hartmann escreveu mesmo o seguinte no segundo
volume da sua obra Filosofia do Inconsciente, que Conrad
leu em tradução inglesa: «É tão pequeno o favor que se faz a um cão cuja cauda
vai ser cortada quando esta é cortada gradualmente, polegada a polegada, como
pequena é a humanidade em prolongar artificialmente a resistência à morte de
selvagens que estão em vias de extinção... O verdadeiro filantropo, se
compreendeu a lei natural da evolução antropológica, não pode evitar o desejo
de acelerar a última convulsão e labutará para esse fim»9.
Na altura, tratava-se quase de um
lugar-comum que Hartmann pusera em palavras. Nem ele nem Spencer eram
pessoalmente inumanos. Mas a Europa a que pertenciam era-o.
A distância entre a ideia do
extermínio e o coração do humanismo não é maior do que a existente entre
Buchenwald e a Goethehaus em Weimar. Essa perceção foi quase completamente
reprimida, até mesmo pelos alemães, que foram transformados num bode expiatório
por perfilharem ideias que constituem de facto uma herança europeia
comum.
13
Trava-se atualmente na Alemanha
uma batalha sobre o passado vivo. Esta Historikerstreit, como
lhe chamam, centra-se na questão: «O extermínio dos judeus pelos nazis é único
ou não?»
O historiador alemão Ernst Nolte
considerou «o chama do extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich» «uma reação
ou cópia distorcida e não uma ação original». O original foi, segundo Nolte, o
extermínio dos kulaks na União Soviética e as purgas de Stálin na década de 30.
Foi o que Hitler copiou.
A ideia de que o extermínio dos
kulaks causou o extermínio dos judeus parece ter sido
abandonada e muita gente sublinha o facto de todos os acontecimentos históricos
serem únicos e não cópias uns dos outros. Mas é possível compará-los. Assim,
podem encontrar-se tanto semelhanças como diferenças entre o extermínio dos
judeus e outras chacinas, desde o massacre dos arménios no início do século XX
até às atrocidades mais recentes de Pol Pot.
No entanto, neste debate ninguém
menciona o extermínio por parte dos alemães do povo herero no Sudoeste
Africano, ocorrido durante a infância de Hitler. Ninguém menciona os genocídios
perpetrados pelos franceses, pelos britânicos ou pelos americanos. Ninguém
chama a atenção para o facto de, durante a infância de Hitler, um dos
principais elementos na visão europeia da humanidade ser a convicção de que as
«raças inferiores» estavam por natureza condenadas à extinção: a verdadeira
compaixão das raças superiores consistia em facilitar-lhes o
desaparecimento.
Todos os historiadores alemães
que participam neste debate parecem olhar na mesma direção. Nenhum olha para o
Ocidente. Mas Hitler fê-lo. O que Hitler pretendia criar quando procurou Lebensraum no
Leste era um equivalente continental do Império Britânico. Foi nos
britânicos e nos outros povos do Ocidente europeu que ele encontrou os modelos,
dos quais o extermínio dos judeus é, nas palavras de Nolte, «uma cópia
distorcida»10.
Notas
1. O período geológico mais
recente, que teve o seu início no final da Era Glaciar.
2. Kim Naylor, Guide
to West Africa (Londres, 1986), p. 193.
3. John Aubrey, Brief
Lives (1949), p. 157.
4. Joseph Conrad, «An
Outpost of Progress» (1897).
5. B. W. Sheehan, The
Seeds of Extinction, Jeffersonian Philanthropy and the Ame rican Indian (Chapel
Hill, 1973). S. M. Stanley, Extinction (Nova Iorque, 1987).
6. R. C. Lewontin, New
York Review of Books (14 de junho de 1990).
7. Margaret T. Hodgen, Early
Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries (Philadelphia,
1964), p. 410.
8. Herbert Spencer, Social
Statics (1850), p. 416.
9. Eduard von
Hartmann, Philosophy of the Unconscious, vol. 2, p. 12. Citado
em J. E. Saveson, Modern Fiction Studies, vol. 16, n.º 2
(1970).
10. Ernst Nolte em Historikerstreit:
Die Dokumentation der Kontroverse um die Einzifatigkeit der
nationalsozialistischen Judenvernichtung (Munique, 1987), p. 33.
Consultar também Frank Chalk e Kurt Jonassohn, The History and Sociolo
gy of Genocide (New Haven, 1990) e Ervin Staub, The Roots of
Evil: The Origins of Genocide and Other Group Violence (Cambridge,
1989). Nenhum destes autores detetou a ligação entre o genocídio
hitleriano e o imperialismo europeu. Contu do, Richard L. Rubenstein fê-lo, em Genocide
and Civilization (1987). Os meus agradecimentos ao Professor
Sverker Sörlin, que me chamou a atenção para o trabalho de Rubenstein e
para a bibliografia de Helen Fein, Genocide: A Sociolo gical
Perspetive in Current Sociology, vol. 1 (1990).
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