* Francisco Louçã
Vive Lisboa em pânico, como se os
marcianos tivessem desembarcado, mas é a repetição de cheias como em dezenas de
anos. Faltou o milagre que, afinal, era só um projeto orçamentado e
calendarizado e, claro, nunca concluído. Triste sina, esta de ter autarcas que
sabem que podem enganar a sua cidade
13 DEZEMBRO 2022
Não passa um carro, a cidade
entrou em pânico, as escolas meteram água e as crianças e adultos fecharam-se
em casa. As autoridades, mais assustadas do que o povo que já viu muito disto,
bombardeiam os telemóveis com mensagens apocalípticas, esbracejando uma
diligência que faltou quando foi mais necessária e cuja exibição pretende
ocultar anos de promessas calculistas e indiferença cínica sobre obras urgentes
nunca concluídas ou sequer começadas.
Pela manhã pouco chove, depois
das litradas da noite, mas sentimo-nos como se tivesse passado o maremoto de
1755. As televisões emitem em modo de catástrofe, como se Orson Welles tivesse
voltado a anunciar a chegada dos marcianos e vamos espreitar a esquina para
vermos os disparos dos raios da morte dos sanguinários ocupantes saídos da sua
nave reluzente. E, apesar do espetáculo do medo, isto é mesmo uma cheia,
pequenina aqui, enorme ali. As águas procuram a sua história e marcham pelos
leitos de ribeiras entretanto sepultados em alcatrão, pelo que, sem surpresa,
inundam caves e túneis. Como sempre fizeram.
Triste sina esta de viver em
Lisboa, a mítica cidade fundada por Ulisses e por onde Ulisses nunca passou,
como lembrou com algum sarcasmo Eduardo Lourenço, e onde os autarcas, ministros
e demais entidades se sucederam ao longo de décadas anunciando tranquilizantes
prazos e engenharias que sabiam inutilmente destinadas a uma gaveta.
Se há um risco de calamidade,
aliás comprovada por um longo cadastro de repetições, a melhor solução continua
a ser formar uma comissão ou, se se chegar ao ponto da cabeça perdida, prometer
uma obra, e assim procederam uns e outros ao longo do tempos. Que usem sempre o
mesmo subterfúgio e com os mesmos resultados, já diz tudo sobre a experiência
sobrevivente destes autarcas e de como consideram o seu povo, que esperam que
seja desmemoriado e aceite o próximo enlevo eleitoral como se não houvesse
ontem.
Perante a mesquinhez destas
águas, ouve-se a tristeza, fado repetido. Afinal, tudo corre mal: há inundação
mas, pior, Portugal perdeu com Marrocos. Ora, está tudo relacionado, como não
podia deixar de ser, pelo menos na fantasmagoria: num caso e noutro volta a
agitar-se o espectro de Alcácer Quibir, coisa no primeiro caso excessivamente
dramática para um só jogo, no segundo deslocado do campo de batalha, mas nem
menos por isso revelador de como se enunciam as identidades míticas (e, neste
caso, místicas).
A regra é esta: sempre que há
fracasso, fala-se da grandeza perdida e da saudade do que não existiu, a culpa
é de outro ou, pela certa, das conjugações cósmicas que nos atraiçoam. Mouros e
chuvas têm o mesmo lugar nesse pensamento mágico, que é o que resta quando não
há mais nada a dizer.
O disfarce que permite estes
estratagemas discursivos é somente uma recapitulação do passado. Quando as autoridades
não sabem o que fazer, repetem o que sempre fizeram mal; quando não há
explicações, prometem o que sempre prometeram. Nada de novo neste sebastianismo
serôdio: dizia Lourenço que uma “hiperidentidade” nacional foi constitutiva da
projeção fantasmática de um povo que foi chamado de predestinado aos grandes
feitos do Império, mas a derrota do rei-menino em Marrocos rompeu esse ciclo
desde o seu início e criou desde então uma “não-história”, uma falsificação de
si própria disfarçada na crueza da colonização, do tráfico negreiro, da
escravatura, conduzindo ao “póstumo” fracasso final. Não continuará a ser
assim?
A assombração insepulta desse
Quinto Império transmutou-se na nossa contemporaneidade num discurso delirante
sobre a carruagem da frente, sobre a glória europeia, sobre a voz forte no
concerto das nações, sobre os portugueses “de sucesso”, de banqueiros a
governantes, se bem que nem todos conduzindo o seu mister com o maior
prestígio. Quem diria então que essa modernidade avançada, tecnologicamente
segura, engenhosa e inventiva, desabaria perante uma chuvada, ainda por cima
previsível, anunciada, teimosamente repetida e de resultados antecipáveis.
O ciclo do sebastianismo foi “o
máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; de um máximo de
coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a
consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência
é real”, escrevia Lourenço no “Labirinto da Saudade”. Numa palavra, resumia,
estamos sempre à espera do “milagre”. Fraca consolação será agora saber que
também no caso deste dia cinzento, o milagre era um projeto aprovado,
orçamentado e calendarizado, que ficou enigmaticamente para as calendas, como
parece ser uma regra não escrita da gestão das coisas sérias.
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