Estado da Noção
* Francisco Louçã,
Deixou de ser preciso demonstrar como
se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si,mesmo que seja
notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga
de demissões
Édemasiado fácil, embora verdadeiro, ver nesta vertigem
de minirremodelações governamentais a prova do pudim da maioria absoluta e da
impunidade dos governantes na escolha de gente que lhes chega medalhada pelo
partido (Miguel Alves) ou pelo trânsito meteórico entre empresas (Alexandra
Reis). Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de
favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem
um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões a uma polémica
impopular. A declaração do primeiro-ministro sobre os “casos e casinhos”, essas
maléficas inventonas das oposições, é deste modo engolida com fel em cada um
destes episódios, que chegam a ser desconcertantes de tanta prosápia e
cumplicidade. Deixando o nevoeiro sempre capitoso destes casos, proponho-vos a
tese de que isto não é o resultado de erros ocasionais, é antes a prova da
natureza do nosso regime social, o resultado de uma construção meticulosa de
redes de poder, ou de como uma casta se incrustou no uso do Estado. Essa casta
é o passado de Portugal e quer ser o nosso futuro.
UM PASSADO QUE NOS MORDE
Malgrado a polémica historiográfica,
vou tomar como aceitável a tese de que a emergência da burguesia moderna se fez
em Portugal, ao longo do século XIX, ancorada numa aliança entre o capital
comercial e a propriedade fundiária, sob a tutela do Estado. Daí terá resultado
um conservadorismo arreigado, expresso, nomeadamente, na frágil
industrialização e na fantasia imperial, vista como uma protegida reserva de
acumulação de capital. Ao chegar à segunda metade do século XX, este sistema
radicalizou-se na Guerra Colonial, mas, entretanto, ia mudando por dentro, seja
pela consolidação da fusão entre a banca e o imobiliário, com a urbanização e a
primeira turistificação, seja pelo impulso europeu, sobretudo na finança. Como
este processo foi brevemente interrompido pelo 25 de Abril e depois recomposto
com uma nova concentração de capital, é útil estudar como têm sido produzidos
os governantes.
Com dois colegas, João Teixeira Lopes
e Jorge Costa, publicámos, em 2014, um livro, “Os Burgueses”, que estudava
esses processos. Um dos capítulos dedica-se a uma investigação detalhada do
perfil de todos os ministros e secretários de Estado de todos os Governos
constitucionais até ao ano anterior, 776 pessoas (mas de 78 não conseguimos
dados). Queríamos perceber como a hegemonia da burguesia sobre a economia e a
reprodução social seleciona os governantes. E, para isso, observámos a sua
trajetória pessoal, tendo registado que, se bem que uma parte deles tivesse
chegado ao Governo vinda do Parlamento ou de funções públicas e sem ligação
empresarial anterior, o facto mais notável era a passagem posterior para as
chefias de empresas. Assim, se só 89 chegaram ao Governo vindos de
administrações, quase metade dos governantes emigrou para o topo de empresas da
finança (248) e imobiliário (95). Naturalmente, trata-se de cargos
estratégicos: 170 desses governantes foram para grandes grupos económicos, 107
para os que gerem parcerias público-privado. Nestes casos, a casta foi formada pela
cooptação económica que consolidou um novo estatuto social. O seu circuito
fundamental tem sido partido-Governo-empresas.
OS OUTROS CAMINHOS PARA ROMA
Chegar ao topo destas empresas, seja
como facilitador com o partido, seja para abrir uma nova carreira, não é de
somenos. Quando, há anos, propus no Parlamento uma lei que determinava que os
pagamentos aos administradores de empresas cotadas fossem publicados no
relatório anual, e era difícil recusar que esta informação era um direito dos
acionistas e do público, o presidente de um grande banco, cuja administração se
fazia pagar um prémio de 10% dos resultados líquidos, veio indignar-se e
garantir que, se a lei fosse aprovada, haveria uma revolta social. Para os
beneficiados, com ou sem revolta, a promoção vale a pena.
No entanto, a formação de ligações de
casta também segue outros caminhos. Há a corrupção e, se alguns casos têm sido
investigados, ainda teremos de esperar pelo dia em que um qualquer Rui Mateus
conte as ligações angolanas de financiamentos de alguns partidos e outras
tropelias. O processo sobre os pagamentos do BES a Manuel Pinho arrasta-se em
tribunal, bem como outros. Há ainda os vínculos do financiamento declarado: em
2021, o IL recebeu dinheiro do CEO da EDP, que os Champalimauds e Mellos
pagaram ao Chega e que o PS continua a receber donativos da gente fiel da Mota
Engil.
As redes de compromisso são as mesmas
que levaram tantos ex-governantes a ocupar posição nas empresas das PPP. Por
isso a defesa extravagante dos vistos gold, dos benefícios a não-residentes, de
que a EDP não pague imposto pela venda de barragens, tudo merece ser visto à
luz da casta que ocupa e ocupará estes lugares.
Alexandra Reis não inventou nada.
Reclamou para si a regra que protege os gestores, se forem despedidos recebem
tudo (há mesmo quem chame a isto meritocracia?). Passou da TAP para a NAV e
desta para o Governo, tendo sido escolhida pela experiência brevíssima nestas
empresas, aliás mal sucedida numa delas. Disso beneficiou, achando que
começaria uma carreira política sem que alguém questionasse o privilégio
daquele pagamento. Nisso cometeu o erro de exibir a arrogância da casta. Mas a
regra não mudou nem mudará, pois não? Pois esperemos pelo próximo casinho.
30.12.2022
https://expresso.pt/opiniao/2022-12-30-Casos-e-casinhos-ou-como-ser-governado-por-uma-casta-7abd5012
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