sábado, 24 de dezembro de 2022

Ana Porfírio - Ginjas

* Ana Porfírio

Ginjas 1

Existia uma ginjeira no quintal da minha infância.

Tinha por companhia duas laranjeiras, uma nespereira, um limoeiro e é claro a figueira que era forte, barco, baloiço e o que mais queríamos.

Lembro-me da gingeira florida e de rapinar uns frutos, ralhavam comigo, as ginjas eram para pôr em aguardente e fazer doce, embora a produção da árvore não fosse suficiente para tal.

Mas fazia-se as duas coisas, recorrendo a mais uns quilos de fruta encomendada para o efeito.

A tarefa que me calhava era a de tirar os pés, lavar, e no caso do doce, descaroçar.

Até tinha uma ferramenta para isso.

Depois de misturadas com açúcar e pau de canela, e aguardente, evidentemente, eram colocadas em garrafões ou garrafas, preferencialmente de vidro escuro e guardadas no recanto mais escuro da dispensa.

Na melhor das hipóteses, eram provadas no ano seguinte, mas o ideal era deixar estar mais tempo.

O doce era feito em tachos de cobre, até ter o ponto de açúcar pretendido, todos os frascos eram fervidos antes, ainda hoje faço o mesmo.

A semana passada vazei o garrafão sobrevivente da dispensa da minha mãe.

Foi uma garrafa de meio litro (vidro escuro) para o meu filho e fiquei com outra.

Fiquei também com uma caixa cheia de ginjas, mandei um frasco para ele.

Atendendo à doença da minha mãe, à pandemia e os seus constrangimentos e ao facto de ter morrido quase há um ano, aquela ginja tem no mínimo cinco anos.

Quanto ao doce de ginja, não costumo fazer, não é um fruto abundante, nem tenho a ferramenta de descaroçar.

A ginjeira já não existe, nem a figueira.

Mas a ver se para o ano encomendo ginjas e retomo esta coisa.

2022 12 20

Ginja 2

A minha memória remete para um ritual, não tenho pretensão que seja esta a origem da "Ginja Operária" que se tornou tradição natalícia na mina cidade.

Hoje fecha-se o trânsito e milhares de pessoas juntam-se no final do dia 24 de Dezembro, para a ginja.
Acabamos por encontrar amigos, não deixa de ter piada.

Nem sempre vou, por motivos vários e vários motivos.

Mas a minha memória é a seguinte:

Todos os sábados cumpriam-se vários rituais, as compras na praça, o pequeno almoço na Boleira e no fim da manhã os homens juntavam-se e iam  grupo beber uma ginja ao "Manuel da Galega".

Nem sempre eram os mesmos, mas eram no essencial o mesmo grupo.

O meu pai também.

Eu também, como os outros miúdos implorava por uma ginja, e davam-me.

O senhor Manuel enchia aqueles pequenos copos com a "ginja" feita por ele com a pergunta "com elas ou sem elas?".

Também se ia á Taberna do Senhor Manuel para almoçar, lembro-me de comer iscas ou pataniscas com arroz de feijão no quintal debaixo das parreiras.

O senhor Manuel era grande, calmo, dono de uma grande pachorra.

Eu só o conhecia atrás do balcão com avental, uma vez, na minha adolescência, um homem grande, com cabelos brancos e sobretudo disse "Boa tarde Aninhas".

Cumprimentei de volta mas demorei uns dez minutos a reconhecer o Sr Manuel de sobretudo, sem estar de avental atrás do balcão.

Na véspera de Natal, faziam-se as compras de manhã, já se tinham feito parte das filhoses no dia  anterior, depenado a perua ou temperado o leitão, feito os rissóis e alguns bolos.

Nessa manhã também se comprava rama verde, uma bola de barro, que com velas e um laço servia para fazer um centro de mesa.

Por volta das 13h tudo fechava, tudo mesmo.

Portanto ao meio dia e meia os homens da ginja juntavam-se junto á estátua, todos.

Eram muitos, não eram milhares.

E iam á sacramental ginja do Manuel da Galega.

Desejavam boas festas e recolhiam, só voltava tudo á rua a 26 de Dezembro.

Com o tempo as mulheres também se juntaram, e até eu,passada a barreira dos 16 anos ia.

Esta é a minha memória do evento.

Nem sempre vou, mas mesmo não indo, bebo sempre uma ginja.~

Com elas, é claro

Boas festas.


2022 12 22

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