* Maria Jorgete Teixeira
Na aldeia, nas faldas do Marão, o dia 24 de Dezembro amanhecia com uma auréola especial. Logo cedinho, havia uma azáfama diferente.
Raramente estava sol e o cinzento frio da serra descia e inundava tudo com uma luz fantasmagórica. O fumo subia das chaminés, das casas que as tinham, ou então evolava-se da ardósia que cobria os telhados de xisto. Não parava de fumegar até à altura do apagar de todas as lareiras. No universo feminino das cozinhas, as iguarias eram preparadas pelas mães e avós. A abóbora cozida escorria em pequenos sacos pendurados à entrada da porta das cozinhas, para mais tarde ser frita no azeite, transformando-se nos pequenos bolos de “calondro”. As rabanadas eram feitas com fatias de um pão de massa fina, os cacetes, encomendados na Vila para aquela ocasião, passadas por ovo e por leite, fritas e envoltas por fim, em calda de açúcar. A aletria também não faltava, cozida e disposta em pratinhos, depois enfeitados com desenhos de canela. Na noite de consoada o bacalhau era o rei. E não eram muitas as postas que se coziam na altura, umas lascas para as crianças, meia posta para os adultos e isto nas casas mais abastadas. Nas outras, era apenas um “cheirinho” para dar o gosto às batatas e à couve tronchuda. Essas eram com fartura, cultivadas no campo e escolhidas entre as melhores, assim como as batatas da terra fria, saborosas mesmo que só comidas sem acompanhamento. A ceia era servida cedo e o serão passado a conversar e a jogar o “par ou ímpar” ou o “rapa, tira deixa e põe” que era jogado com um pequeno pião que tinha escritas as três palavras que ditavam a sorte de quem o lançava. A minha avó materna sentava-se no escano e ia espevitando o lume e, de vez em quando, entrava na brincadeira. Acho que era a altura em que a sentíamos mais perto de nós e o seu semblante, sempre um pouco severo, mais se adoçava.
Íamos para a cama cedo e, antes de nos deitarmos, os sapatos eram deixados todos enfileirados na base da chaminé. Nessa noite nem dormíamos descansados e só no dia seguinte saberíamos o que o Pai Natal lá tinha deixado.
De entre os símbolos do Natal o presépio era o mais importante. A sua feitura estava a cargo dos irmãos mais velhos que colhiam o musgo nos soutos e nos pinhais para atapetar o chão onde eram plantados os montes e os vales, os rios e os lagos de um universo em miniatura: a cabana do menino, coberta de colmo, ao centro, os pastores e seus rebanhos, as mulheres com galinhas à cabeça ou cestos de ovos, os velhos com as suas bengalas e claro: os três reis do Oriente guiados pela estrela. A narrativa era contada aos mais novos à medida que o presépio ia tomando forma, qual “História Antiga” de Torga. (...)
A maior parte das crianças da aldeia não sabia o que era ter prendas no Natal. Os tempos eram difíceis e arranjar dinheiro para fazer uma ceia mais aprimorada já era muito bom. Os mimos recebidos resumiam-se a uns confeitos ou rebuçados que eram dados aos montinhos, embrulhados em papel.
Na minha casa sempre tivemos presentes.(...)
Hoje, os natais não têm, para mim, a magia desse tempo, mas procuro guardar um pouco da luz e interioridade de antigamente para passar às gerações vindouras, pois se é certo que não se pode parar o progresso, também é certo que o que somos em adultos é consequência da teia de afectos que nos forma, alimenta e resguarda, quando somos meninos.
2022 12 25
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