* José Pacheco Pereira
Opinião
A leitura mudou muitas vezes na história, mas de um modo geral para melhor. Só que hoje tudo nos atira para a superficialidade.
27 de Julho de 2019, 6:10
Costumo dizer, bastante a sério,
que dou um prémio a quem for capaz de ler a Guerra e Paz de Tolstoi num
ecrã de telemóvel. Não é num tablet, nem num ecrã de computador, é num
ecrã de telemóvel comum. Já que circula por aí, nestes tempos de deslumbramento
com os devices, que é indiferente ler-se num livro ou num ecrã de
telemóvel, o que conta é ler-se, eu penso que este
desafio mostra que não é bem assim. Existe aqui um problema? Penso que sim,
penso que há limitações objectivas nos nossos sentidos que precisam de “espaço”
para ler, e acima de tudo precisam de uma forma especial de tempo, tempo lento,
para ler determinados textos, em particular ficcionais. A não haver problemas
colocaríamos os livros de Tolstoi, de Thomas Mann, de Musil, de Proust, só para
citar autores contemporâneos, num limbo do esquecimento, onde, em bom rigor, já
estão, por serem grandes de mais. Eu sei que o problema não vem só do tamanho,
vem de mudanças culturais mais profundas e mais complicadas que estão a
acentuar novas formas de ignorância. Mas, admitindo que já está tudo muito mal,
não vale a pena agravar-se por modismos.
O teste da leitura da Guerra e
Paz (em bom rigor já deveria ser de outra obra, visto que, ao se saber o
título, já tínhamos concorrentes a irem ler na Wikipédia uma cómoda síntese…)
teria de ser controlado. Durante o tempo da leitura o telemóvel não teria
acesso nem à rede, nem faria telefonemas, e o concorrente aceitaria ficar
isolado enquanto não acabasse de ler o livro, sobre o qual seria a seguir
interrogado. Admito que possa haver quem fosse capaz de fazer o sacrifício, se
o prémio fosse elevado, mas, mesmo assim, não provaria nada, visto que o mero
bom senso diz-nos que tal seria absolutamente excepcional. Se aceitarmos que a
leitura migra para os pequenos ecrãs como se não se perdesse nada pelo caminho,
então teríamos de admitir que um número significativo de grandes obras da
literatura mundial deixaria de ser de todo lido. Todos sabemos que já é assim e
nem foi preciso chegar ao telemóvel, mas escusamos de agravar uma tendência
para a indigência cultural que já está bastante instalada nos nossos dias.
Batalha de
Austerlitz, gravura de Gérard DR
Para exorcizar os lugares-comuns
habituais, que se têm de repudiar como se fosse um mantra, não tenho nenhum
fetichismo dos livros, nem do papel, nem saudades do cheiro, ou do pó, dou-me
bastante bem com computadores, tablets e telemóveis. E se houvesse
hipnopedia, como no Admirável Mundo Novo, também experimentava com a Enciclopédia
Britânica. Não uso algumas das coisas que hoje são triviais, não tenho
Facebook, por exemplo, mas é por razões de princípio quanto à privacidade e
porque não me faz falta nenhuma. Mas não tenho a mais pequena saudade das
máquinas de escrever, agora que escrevo num processador de texto e por aí
adiante.
Hoje há muita gente deslumbrada
com as novidades tecnológicas que acha três coisas perigosas: uma é que estes
processos são inelutáveis e temos de aceitar tudo que as grandes empresas nos
querem vender e que a moda nos faz comprar; outra é que elas são inócuas nas
mudanças sociais que ajudam a implementar; e, por fim, que criticar estas
tendências é uma atitude passadista.
A leitura é um adquirido
civilizacional tão frágil como todos os outros. Não vive sozinha, vem em pacote
com o modo como as sociedades evoluem, com a economia, a política e a religião,
incrusta-se na educação para o bem e para o mal, e acompanha as grandes
tendências dessa coisa intangível que é a “mentalidade”, a “visão do mundo”,
aquilo que os alemães, que têm as melhores palavras para a filosofia, chamam Weltanschauung.
A leitura é bem mais do que a leitura ficcional — é saber ler as legendas das
séries televisivas, um grande progresso, se a fasquia for o analfabetismo, mas,
se olharmos para a frente, o modo como lemos pode tornar-nos mais ricos ou mais
pobres. A leitura mudou muitas vezes na história, mas de um modo geral para
melhor. Só que hoje tudo nos atira para a superficialidade, a preguiça da
rapidez, o comodismo do pensamento débil, mesmo com diploma universitário. E
havendo mais gente que lê, o que é muito positivo, existe também o movimento
inverso, para ler pior.
É um movimento social, e nem tudo
o que muda é positivo do ponto de vista, chamemos-lhe assim, civilizacional.
Tudo nos atira para um presente assente no consumo e nos placebos, melhor ainda
no consumo de placebos, de substitutos de Ersatz de vida, de sexo, de
relacionamentos humanos, de saber transformado em soundbites, de gente
sem verdadeiro poder. O problema da presentificação da vida, que é o grande
negócio das empresas de tecnologia, retira qualquer densidade de que se faz a
cultura, a favor de um tempo e um modo de não-pensar. Se a expressão não
estivesse tão maltratada, é do “ópio do povo” que estamos a falar. E
ler com espaço, silêncio e tempo, sem aquela febre ruidosa dos telemóveis
em que pouco mais se diz do que “estou aqui” e “tu estás aí”, não faz parte do
mundo de Tolstoi que não queria que houvesse escravos. Nesse mundo, de facto, a
Guerra e Paz não serve para nada.
José Pacheco Pereira
interrompe a sua coluna em Agosto. O Ruído do Mundo regressa em Setembro
https://www.publico.pt/2019/07/27/culturaipsilon/opiniao/ler-guerra-paz-ecra-telemovel-1881428
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