"D. João IV tornou-se rei simplesmente por
correspondência, sem ser necessário disparar um tiro"
Professor Catedrático na Universidade Nova de Lisboa,
especialista na expansão marítima portuguesa e biógrafo do Infante D. Henrique
e de D. Manuel I, João Paulo Oliveira e Costa acaba de publicar um fascinante
livro intitulado Portugal na História - Uma Identidade, que procura explicar a
nossa existência como país há quase nove séculos. E a Restauração da
Independência, de que hoje se celebra o 382.º aniversário, é um momento-chave
da nação portuguesa, sublinha o historiador.
Leonídio Paulo Ferreira
01 Dezembro 2022 — 00:10
Em 1640, todo o reino e todo o Império, com exceção de Ceuta,
responde positivamente a D. João IV. É a grande prova de vida da nação?
Creio que sim. O golpe realizado em Lisboa no dia 1 de dezembro não foi o
corolário de um período de motins ou de revoltas, mas o seu sucesso derivou da
adesão generalizada que suscitou em todos os territórios, fosse na Península
Ibérica e nas ilhas, fosse nas cidades e vilas do império, desde o sertão
brasileiro até Macau. O caso de Ceuta é excecional, dada a sua localização e a
impossibilidade de se defender simultaneamente de ataques marroquinos e
espanhóis. D. João IV tornou-se rei simplesmente por correspondência, sem ser
necessário disparar um tiro, depois do assalto ao Paço em Lisboa, e recebeu
inclusive cartas de adesão à Restauração de populações das capitanias
brasileiras que estavam sob domínio neerlandês. A unidade do país e do império
nunca foi beliscada durante os 60 anos do governo de Madrid e a esmagadora
maioria da população continuou fiel a Portugal. Como é habitual, algumas elites
preferiam a integração na Monarquia Católica, mas a nação suportou firmemente
uma longa guerra de 27 anos praticamente sem fraquejar e sem que houvesse
motins graves reclamando contra a guerra ou contra os impostos que a
sustentaram.
Mesmo a seguir a 1580, as Cortes em Tomar conseguiram
garantir que Portugal continuaria a existir, ainda que com um rei estrangeiro.
Filipe II aceitou essas condições de boa vontade?
Não sabemos exatamente o que se passava no espírito do rei, mas é certo que
apesar de ter "herdado, comprado e conquistado" o país, e de dispor
de um grande Exército, dominando Lisboa, Filipe II aceitou negociar com as
cortes e reconhecer a autonomia institucional e cultural dos portugueses.
Também é certo que durante o seu reinado, o monarca respeitou escrupulosamente
o Juramento de Tomar, mesmo em relação a áreas longínquas, onde persistia uma
rivalidade entre mercadores e missionários de Portugal e de Castela, como
sucedia a propósito dos negócios e da evangelização do Japão e da China.
Sublinha que a orografia da nossa fronteira defende, até
certo ponto, a independência, mas não totalmente, se a Espanha no passado
tivesse usado todo o seu poder e Portugal não tivesse aliados marítimos. Mas o
curioso é Espanha, tirando o caso de Olivença, nunca ter tentado conquistar
porções de território. Há uma explicação?
Castela e depois a Espanha, desde que foi assinado o Tratado de Alcanizes, em
1297, nunca reivindicaram pedaços do território português. Sempre que invadiram
Portugal com ambições territoriais, o alvo preferencial foi Lisboa, como
sucedeu logo em 1373 na invasão de Henrique II. O estuário do Tejo foi a chave
da independência portuguesa, pois foi o principal esteio dos negócios
internacionais, sobretudo desde a criação das rotas ultramarinas, e porque a
sua autonomia em relação ao centro peninsular tornou-se num interesse da
Inglaterra desde a segunda metade do século XIV. Aliás, a tomada de Lisboa pelo
duque de Alba, em 1580, sucede no único momento em que as relações anglo-portuguesas
afrouxaram no turbilhão do cisma protestante. O facto de o nosso vizinho nunca
ter reivindicado porções do território português desde que a linha da fronteira
estabilizou, ajuda a compreender a formação de um sentimento precoce de nação
entre os portugueses, pois falavam a mesma língua e o próprio vizinho
reconhecia que o território português formava uma unidade. O facto de em 1297,
a linha de Alcanizes ter encerrado dentro de si todos os falantes de português,
e só os falantes de português, criou desde logo um estado-língua, caso único na
Europa, o que decerto contribuiu para que o reino fosse visto como uma unidade
natural, tanto pelos seus habitantes, como pelos demais povos europeus.
Também sublinha no livro nunca ter havido massacres de civis
nas guerras entre Portugal e Leão, Castela e depois Espanha. Tem que ver com a
proximidade cultural, línguas próximas, religião idêntica?
Talvez, mas é uma explicação insuficiente. Quando visitei a Escócia fiquei
muito impressionado com o modo cruel como escoceses e ingleses se bateram
séculos a fio, com carnificinas de parte a parte, que ainda são recordadas, e
algumas celebradas. Nas demais partes da Europa, vizinhos carregados de
semelhanças mataram-se violentamente até ao século XX, mesmo em guerras internas,
como as que devastaram a Itália, nos séculos XV e XVI. Talvez a fronteira
luso-espanhola tenha suscitado um relacionamento diferenciado pelo facto,
referido atrás, de não haver reivindicações territoriais. A linha divisória
cristalizou cedo e Castela e a Espanha, apesar das suas ambições hegemónicas,
respeitaram-na e, aliás, mantiveram-na em paz na maior parte do tempo.
Qual a importância do Tratado de Alcanizes? O tal
estado-língua que precede o estado-nação nasce aí?
O Tratado de Alcanizes é de tal modo importante que, apesar de estar a ser
violado ininterruptamente há 221 anos, permanece intocado. De facto, a
precocidade da nação portuguesa advém, em grande medida de a linha fronteiriça
então acordada ter cristalizado depressa e ter sido consolidada pelo facto de
constituir uma fronteira linguística indiscutível. A hegemonia da língua
portuguesa dentro da fronteira constituiu um elemento agregador excecional.
Quando se reuniam as cortes, todos os nobres, clérigos e representantes dos
concelhos falavam a mesma língua e mantinham uma relação cada vez mais
duradoura com a mesma dinastia. Esta situação cultivou um sentimento de nação
que já se expressa de modo muito generalizado na crise de 1383-85, e passado um
século, em 1498, os representantes do povo dizem a D. Manuel I que não querem
que o rei de Portugal acrescente as coroas de Castela e de Aragão - queriam um
rei exclusivo para o reino, ou seja entendiam que eram um estado-nação.
A precocidade da nação portuguesa advém, em grande medida, de
a linha fronteiriça então acordada ter cristalizado depressa e ter sido
consolidada pelo facto de constituir uma fronteira linguística indiscutível
D. Afonso Henriques, D. João I, D. João IV. Algo em comum
entre os fundadores das três dinastias portuguesas?
D. Afonso Henriques dá expressão a um desejo de autonomia da fidalguia
portucalense, D. João I encabeça a primeira vontade expressiva da nação de
preservar a sua autonomia; ambos ganharam a sua autoridade no campo de batalha,
através de vitórias retumbantes (e mitificadas), especialmente Ourique e
Aljubarrota, e tiveram vidas longas que permitiram a consolidação da sua obra
política. D. João IV, por sua vez, expressou de forma absoluta a vontade de
toda a nação de recuperar a sua independência, e não foi preciso sequer um
reinado longo para consolidar a nova dinastia. Todos foram mais do que os
próprios indivíduos e todos chegaram ao trono apoiados em inequívocas vontades
coletivas - de uma elite aristocrática e eclesiástica com D. Afonso Henriques,
sobretudo, dos povos das cidades principais e das linhagens intermédias da
fidalguia com D. João I, e de toda a nação com D. João IV. Neste caso, aliás,
os conjurados terão admitido proclamar a República se o duque de Bragança não
aderisse à revolução.
Filipe II, I de Portugal, teria mudado a história se tivesse
feito de Lisboa a capital dos seus impérios?
A história dos "ses" é uma tentação para os historiadores, mas é
muito provável que sim, sendo que o que teria sido o curso da História nessas
circunstâncias é imprevisível. Na verdade, o curso da História, como o curso
das nossas vidas vai-se fazendo de escolhas, por vezes dramáticas. A instalação
definitiva da corte filipina em Lisboa teria representado uma mudança dramática
na história da Ibéria; provavelmente teria atraído muitos castelhanos à cidade,
que teriam alterado consideravelmente a sua configuração demográfica, pelo que
talvez tivesse sido uma solução que, a ser bem-sucedida, poderia ter provocado
uma desagregação da nação portuguesa. Mas estas minhas considerações são
obviamente especulativas.
Se D. Manuel I, com os projetos para si e para o filho D.
Miguel, Príncipe da Paz, tivesse sido bem-sucedido, Portugal poderia hoje não
existir como país?
A preocupação dos representantes do povo nas cortes de 1498 é essa mesma. De
certa forma, a petição então apresentada ao rei para que não fosse a Castela e
Aragão para ser jurado herdeiro, como que antevê o que viria a ser mais tarde o
destino da Escócia. Ao tornar-se Jaime I de Inglaterra e mudar a sua residência
de Edimburgo para Londres, o rei Jaime VI da Escócia iniciou o processo de
subalternização da Escócia à Inglaterra, de que agora o nacionalismo escocês se
pretende libertar. Podemos admitir, sem ser muito imaginativos, que Portugal
teria seguido um destino semelhante como sucedeu, aliás, com aragoneses e
catalães, ao ficarem sob o governo de um rei que era simultaneamente rei de
Castela e que fixou a corte no centro da Península.
Como contribuiu o império para a construção da identidade
portuguesa?
O império acelerou a integração das ilhas no todo nacional, e criou novas
razões para que a cultura portuguesa se afirmasse e se consolidasse no
confronto com os outros povos. O contacto sistemático com "o outro"
suscitou reações e reflexões, e também o reforço de instituições como os
municípios ou as Misericórdias, mas também provocou lutas políticas que
descambaram em perceções desajustadas de decadência, logo por meados do século
XVI, em pleno crescimento político-militar, económico e religioso das áreas sob
influência ou domínio dos portugueses. O comércio intercontinental reforçou o
tradicional papel dos portugueses como intermediadores, que já eram, aliás,
desde a fundação do reino, ao apoiarem a navegação entre o Atlântico Norte e o
Mediterrâneo. O império contribuiu ainda mais para gerar o mundo lusófono dos
nossos dias, mestiçado, unido pela língua e pela História. Em países como
Israel ou o México, já participei em feiras ou festas sobre Portugal com a
participação de cantores e de músicas cabo-verdianas, brasileiras ou angolanas,
por exemplo.
Além de historiador é um grande viajante. Como Portugal é
visto de fora?
O mundo anglo-saxónico protestante menospreza os latinos católicos e Portugal
não escapa ao estereótipo. No resto da Europa, é muito variável, mas visitando
os museus e os monumentos podemos encontrar a nossa dimensão europeia, pelas
semelhanças, desde as artes e a arquitetura militar, à etnografia. No mundo
ultramarino, Portugal suscita sobretudo curiosidade e admiração pela amplitude
do império e do comércio intercontinental que manteve, tendo em conta a
pequenez do território europeu. A antiga presença dos portugueses é normalmente
valorizada e recordada no espaço público, nos países onde se deu esse contacto,
inclusive nos países de língua oficial portuguesa. Em mais de uma dúzia de
países, antigos edifícios construídos pelos portugueses (sobretudo fortalezas e
igrejas) integram hoje a rede do Património Mundial da UNESCO pela vontade
desses mesmos países. O modo como Portugal ganha votações na ONU, como sucedeu
sempre que concorreu ao Conselho de Segurança, ou na própria candidatura de
António Guterres a secretário-geral, resulta sobretudo do apoio dos países
não-europeus, especialmente os de vocação marítima, fruto da imagem de
intermediadores que foi forjada desde há séculos pelos mercadores que deixaram
um rasto mais amplo e mais duradouro do que os conquistadores.
Iberismo? Nunca foi popular, mesmo que exista admiração por
Espanha, pois não?
Não, como se viu em 1383-85, em 1498-99, em 1580, em 1640 ou em 1860. Só em
1580 é que um certo "iberismo" se impôs, o que só foi possível por o
país viver uma crise dinástica complexa e estar momentaneamente sem a proteção
do seu velho aliado marítimo e mesmo assim, como vimos, Filipe II sentiu necessidade
de reconhecer a especificidade portuguesa.
Portugal na História - Uma Identidade João Paulo Oliveira e Costa
Temas e Debates
672 páginas
24,90 euros
leonidio.ferreira@dn.pt
P
Sem comentários:
Enviar um comentário