domingo, 18 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Casas e causas



* Carlos Coutinho

   PRECISÁMOS de chegar a 1941 para, finalmente, ficarmos com a certeza de que o genial orador e mitómano Padre António Vieira não foi o autor desse também genial texto clássico que é “A Arte de Furtar”. Aquela que é considerada a edição princeps da obra apresenta o seguinte título:  Arte de Furtar,/ Espelho de Enganos,/ Theatro de Verdades,/ Mostrador de Horas Minguadas,/ Gazua Geral/ Dos Reynos de Portugal./ Offerecida a Elrey/ Nosso Senhor/ D. João IV./ Para Que A Emende. Indica seguidamente ter sido “composta pelo Padre António Vieira, Zeloso da Patria” e impressa em Amsterdão, “na Officina Elvizeriana 1652”. 

    Todavia, a autoria da obra, o local e o ano de impressão, bem como o impressor aí indicados, são falsos (a oficina tipográfica é duplamente falsa, pois o seu nome deveria grafar-se como Elzeviriana, mas tudo indica tratar-se de um erro propositado). 

   O manuscrito, composto em 1552, atesta a Wikipédia, “manteve-se inédito durante mais de noventa anos, não sendo de excluir absolutamente que durante esse período possam ter sido feitas algumas cópias. A obra teve, enfim, a sua primeira impressão em1743 ou 1744, em Lisboa, pelo livreiro genovês João Baptista Lerzo, dono de uma tipografia no sítio do Loreto”, atual Largo de Camões.

   A verdade é que António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua imprescindível “História da Literatura Portuguesa”, já tinham desautorizado tal hipótese, atribuindo a façanha a outro jesuíta, o Padre Manuel da Costa (1601-1667). Saraiva e Lopes destacam na Arte de Furtar a "graça literária" e o alto "valor informativo", de que, segundo eles, “só a Fastigímia, de Tomé Pinheiro da Veiga, se aproximaria no século XVI. 

   A obra de Manuel da Costa é “um depoimento literário muito completo da realidade social do tempo de D. João IV”, em que “se espelham ao vivo todos os principais problemas com que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais. Ao nível da descrição dos factos isolados e dos comportamentos sociais típicos, Saraiva e Lopes acham que o realismo da Arte de Furtar é imbatível, “superando em muito o melhor dos Apólogos Dialogais (de Francisco Manuel de Melo). E acrescentam: 

   "Possivelmente, nenhum panfleto da nossa literatura o iguala.”

 Em 1941, por fim, Francisco Rodrigues explica em parte essa má aceitação e aponta o estudo de J. Pereira Gomes intitulado "Manuel da Costa, autor da Arte de Furtar" (1965), que revelou finalmente os trechos inéditos do dito documento, que “tinham sido mantidos secretos para não enxovalharem a imagem da Companhia”.

   Por outro lado, autores como o português Joaquim Ferreira e o brasileiro Afonso Pena Júnior (1944) não reconhecem ao obscuro jesuíta de Mourão, Alentejo, a “qualidade literária, a veia polémica e satírica, bem como os conhecimentos necessários (militares, administrativos, económicos, jurídicos, etc.) para escrever obra crítica de tão grande vulto, preferindo-lhe as autorias de, respetivamente, D. Francisco Manuel de Melo e de António de Sousa de Macedo”. 

   Mais grave, porém, que a ruína de uma hipótese ou de uma falsa autoria é a de uma casa, sobretudo se for um casarão como o de Romarigães, no concelho de Paredes de Coura, uma casa nobre barroca que passou longos anos em avançado estado de degradação e pertence desde 1921 ao Município que já iniciou obras de reabilitação para musealizar o edificado.

   Aquilino foi genro do dono, o Presidente Bernardino Machado e conta magistralmente a história da mansão no seu romance homónimo A Casa Grande de Romarigães publicado inicialmente em 1957. 

   Há que frisar que o beirão Aquilino se notabilizou, além do mais, pelo estilo pícaro, pela apurada descrição de sensações e pelo vasto léxico utilizado. ~

   Da sua bibliografia hoje pouco visitada pelos leitores comuns - obras de ficção, de história, contos infantis, ensaios e traduções – há que ler ao menos, Quando os Lobos Uivam (1959) e Terras do Demo (1919).

   À tarde

   DO que eu havia agora de me lembrar? Da “Operação Marosca”, mais conhecida por Massacre de Wiriamu, em que uma força especial de comandos, às ordens de um major aerotransportado chamado Jaime Neves assassinou indiscriminadamente pelo menos 380 civis de todas as idades, violou mulheres e até foi capaz de degolar crianças. 

   Homens, mulheres e crianças foram comprovadamente queimados vivos nessa hedionda carnificina.

   Conheci pessoalmente esse futuro general que haveria de criar em Lisboa uma controversa empresa de segurança privada que ficou associada, com ou sem fundamento, ao incêndio necessário ocorrido numa pensão da Avenida da Liberdade que devia ser apropriada por alguém para outros fins. 

   Cruzei-me com Jaime Neves ainda capitão, em 1968, em Vila Cabral, hoje Lichinga, no norte de Moçambique, e mais tarde vim a saber que ele havia sido encarregado de uma operação a que faltou na noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Ano e meio depois, foi um dos mais decisivos comandantes operacionais do golpe reacionário de 25 de novembro.

   Vem a propósito recordar que Jaime Alberto Gonçalves das Neves, nasceu na aldeia de Miguel Torga, São Martinho de Anta, no duriense concelho de Sabrosa, no aziago dia 28 de março de 1936 e faleceu em Lisboa a 27 de janeiro de 2013.     

   Quando, muito mais tarde, foi questionado sobre a sua responsabilidade no massacre de Wiriamu, negou qualquer ligação sua à “Operação Marosca” e afirmou secamente: “Sobre isso não falo”. 

   É, no entanto, conhecido que, em 1971, Jaime Neves assumiu a direção do Batalhão de Comandos de Montepuez que reunia as companhias de comandos portuguesas em Moçambique, tornando-se o responsável máximo por 2 500 subordinados, que dirigia por rádio e, na frente de combate, a bordo de um helicóptero. 

   Veio a ser condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe em consequência de ser atingido de raspão por uma bala e, com a patente de major graduado, ainda comandou a 28.ª Companhia de Comandos, em Moçambique. 

   Posteriormente, Jaime Neves irá a Moçambique uma última vez com a missão de impor a rendição de duas companhias de comandos que, acabada a guerra, se negavam a terminar o combate e continuavam a assassinar independentistas contra as ordens do Exército Português. Assim colocou fim à insurreição destas duas companhias, a 20-43 e a 20-45, acordando com os militares revoltosos que nenhum seria detido nem castigado pelos crimes cometidos.

   Já era um tenente-coronel graduado em coronel quando participou nas conspirações da direita ao longo de todo o Verão Quente de 1975. Comandava então o Regimento de Comandos. Em 1981 passou à reserva, depois de proferir declarações que fizeram o Exército aplicar-lhe um castigo disciplinar de dez dias, durante os quais ficou detido no Quartel General da Região Militar de Lisboa, pena dada por cumprida a 12 de dezembro de 1981. 

   Aposentado do Exército, Jaime Neves fundou a 1 de março de 1990, com o capitão comando Sousa Gonçalves, a empresa de segurança privada 20-45, cujo uniforme incluía uma boina vermelha e preta, como alusão aos Comandos Portugueses, e o nome era igualmente uma alusão à companhia de comandos revoltosa, a 20-45 que Jaime Neves dirigia em Moçambique e que se recusou a deixar de combater após decretado o fim da Guerra Colonial.

   Com forte implantação em Angola e Moçambique, onde Jaime Neves e os comandos portugueses combateram, os negócios da empresa 20-45 apenas com o Estado português foram avaliados em 40 milhões e 800 mil euros entre os anos de 2008 e 2020.

   Diferentemente do que fez ao golpista Spínola, que promoveu a marechal, Mário Soares, o então Presidente da República, agraciou Jaime Neves, a 13 de julho de 1995, com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. As chefias militares também consideraram o seu "mérito e os serviços prestados à Pátria", justificando até a "promoção por distinção" a major-general. 

   Mais tarde, quando já era presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço, que esteve com ele no 25 de Novembro, acabou por declarar ao “Expresso” que "o currículo militar de Jaime Neves não justifica" aquela promoção, considerando que tal só se entende se "quiserem refundar Abril, substituindo Salgueiro Maia por Jaime Neves. Estão a hostilizar e a ofender profundamente os militares de Abril e o próprio 25 de Abril", concluiu. 

Também o PCP se insurgiu contra a promoção soarista de Jaime Neves, ao que ele respondeu: "Os cães ladram, a caravana passa".

   Vale lembrar que o general graduado Vasco Lourenço, durante o seu tempo como governador militar de Lisboa e comandante de sua região militar (desde agosto de 1976), não tinha sob as suas ordens uma única unidade militar da região: nem sequer os comandos do coronel Jaime Neves, aos quais o general Rocha Vieira, chefe do Estado Maior do Exército, decidiu manter sob seu controlo direto. Em 30 de março de 1978, os dois generais – Vasco Lourenço e Rocha Vieira – foram demitidos de seus cargos pelo Presidente da República, Ramalho Eanes.

 A promoção de Jaime Neves a major-general foi também confirmada pelo Presidente seguinte, o marquês de Boliqueime e Aldeia da Coelha, Cavaco Silva, a 14 de Abril de 2009.

 Assim se consagrava para a História Universal da Infâmia o dia 16 de dezembro de 1972, em que quatro caças-bombardeiros largaram várias bombas sobre as povoações de Wiriamu, Juwau e Chawola. Enquanto isso, cinco helicópteros desembarcavam quatro secções especiais da 6.ª Companhia de Comandos.

    Romarigães – a casa a que Aquilino Ribeiro chamou “Grande” e cuja ruína já esteve iminente está a ser recuperada, mas o seu abandono foi tão longo e erosivo que nem as heras o conseguiam disfarçar


2022 12 18
Foto - Casa Grande de Romarigães - Paredes de Coura - Portugal
Autor Vitor Oliveira, de Torres Vedras, PORTUGA
in https://www.flickr.com/photos/vitor107/148717143/ 

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