domingo, 11 de dezembro de 2022

João Castro - [Elogio da leitura]

* João Castro

 
As minhas origens não são humildes, são humilíssimas. Na sala da casa dos meus pais existe, desde que me lembro, um velho móvel de contraplacado de quinta categoria, dobrado com o peso dos livros. Centenas de livros. Recordo a pesada enciclopédia, ilustrada a preto e branco, que eu, miúdo, folheava sentado no chão da sala. Os livros do Saramago. Religiosamente o senhor do Círculo de Leitores visitava-nos, não me lembro se mensal ou bimensalmente. Com excepção de um ou outro efémero período de alívio, o dinheiro escasseava. Havia sempre, no entanto, que chegasse para encomendar um livro, às vezes dois. Ler é essencial, dizia-se lá em casa. Dizia-se e praticava-se. Nunca o fiz por obrigação. Tomei-lhe o gosto e li. Li muito. Li sempre. Sei que sou o que sou muito porque na sala dos meus pais há um móvel de contraplacado de quinta categoria dobrado pelo peso dos livros. Centenas de livros. Livros que mês após mês, ano após ano, década após década, zelosamente se acumularam, porque ler é essencial, não te esqueças filho. Da ruralidade salazarista pobre, de casebres, da guerra colonial injusta onde perante a fúria muda de um jovem cabo os pides torturavam os enviados cubanos, para a azáfama suburbana do Portugal moderno da CEE, da UE, depois do Euro, trouxeram este ensinamento, também legado pelo meu avô materno, comunista. Ler é essencial, atenção, lê.

Não ler é ter os olhos fechados. De olhos cerrados também se sente dor, também se adivinha o desdém dos outros, também se tem fome, mas não se percebe porquê, nem quem, nem como. É possível ler muito e não entender nada do mundo, mas não é possível entender o mundo, na sua complexidade dialética, sem ler muito.

O livro é um privilégio, mas é também uma arma. Não venham, portanto, apoucar snobemente o povo na sua ignorância iletrada, mas muito menos se ponham a neorrealisticamente fetichizar o pimba e o anti-intelectualismo que o mantêm atomizado, entorpecido, indefeso. 
Ler é essencial, atenção, lê.

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